“A prisão da mulher vulnerabiliza toda a família”

    A maioria das mulheres detidas no Brasil é jovem, negra, pobre, mãe, tem baixa escolaridade e é a única responsável pelo sustento familiar

    Foto: Laura Daudén/Conectas
    Foto: Laura Daudén/Conectas

    Alê Alves, Especial para Ponte Jornalismo

    Nascida no Jardim Miriam, na Zona Sul da capital paulistana, Andrelina Ferreira fugiu de casa e foi para a rua aos 14 anos de idade após perder o pai, assassinado, e a mãe, morta por derrame cerebral, no intervalo de um mês.

    Nos anos seguintes, ela passaria doze vezes pela antiga Febem e, maior de idade, por três detenções. “Nunca usei droga e nunca bebi. Na maioria das vezes fui presa por furto e pequenos delitos”, conta. Andrelina diz que chegou a ser presa por tráfico em duas ocasiões.

    A primeira ocorreu logo quando foi morar na rua. Com a ajuda de um amigo, conseguiu um barraco para morar. Um dia, foi ao mercado e, ao retornar, encontrou policiais em frente ao portão de sua casa. “Entrei, eles perguntaram se eu morava ali, eu disse que sim. Na hora, eles já falaram que eu estava presa porque tinham achado uma sacola com droga em casa”, conta.

    Na segunda ocasião, ela era maior de idade e foi presa ao visitar o esposo, na época detido no 35o Distrito Policial, no Jabaquara, zona sul da capital paulista. “Levei palito de artesanato pro meu marido fazer aqueles barcos de time [de futebol] pra eu vender e ajudar nas despesas em casa. Peguei a cola e a madeira com amigos dele. Na visita, a polícia achou cocaína dentro no frasco da cola. Eu não sabia”.

    Condenada por tráfico, Andrelina permaneceu detida por três meses. “Eu ainda não conhecia a Defensoria Pública. Saí porque um advogado de Santos lutou pela minha defesa gratuitamente”, diz. Com o marido detido, Andrelina era a única responsável por dois filhos, de 8 meses e três anos de idade. Com sua prisão, os filhos ficaram sob os cuidados de sua sogra. Entre saídas e voltas, Andrelina passou pelo cárcere dos 14 aos 26 anos.

    Histórias como a de Andrelina não são raras entre mulheres detidas no Brasil hoje. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2014, o perfil mais comum das mulheres detidas no Brasil é de jovens, negras, mães, com baixa escolaridade, oriundas de camadas mais pobres, as únicas responsáveis pelo sustento familiar e que exerciam atividades de trabalho informais antes do aprisionamento. 

    De acordo com o Infopen, o tráfico de drogas é o crime que mais prende mulheres no Brasil. Se entre os homens o tráfico de drogas é responsável por 26% das detenções, entre as mulheres esse número chega a 68%, seguido por roubo (10%) e furto (9%).

    A população negra é maioria nas prisões brasileiras também entre as mulheres. Segundo o Infopen de 2014, duas a cada três detidas eram negras (68%), sendo que os negros constituíam 53,6% da população nacional no mesmo ano, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE). O Infopen mostra também que uma média de 57% das detidas eram solteiras, 50% tinham o Ensino Fundamental Incompleto e 50% tinham entre 18 e 29 anos.

    A linha tênue entre tráfico e uso

    Foto: Gláucio Dettmar/Agência CNJ
    Foto: Gláucio Dettmar/Agência CNJ

    Para especialistas e organizações ouvidas pela Ponte, o perfil das mulheres presas no Brasil hoje revela uma seletividade do Sistema de Justiça. Uma das críticas se refere ao parágrafo 4º do artigo 33 da Lei 11.343/2006, conhecida como “Lei de Drogas”, que não discrimina a quantidade mínima de droga considerada tráfico.

    “A linha é tênue entre tráfico e uso. A aplicação desse artigo é de uma subjetividade absoluta. Qual a quantidade considerada ilícita? Se você é universitária e é pega com drogas, provavelmente vai ser lida como usuária. Agora, se estamos falando de uma mulher negra, pobre, mal vestida, com uma quantidade de droga muitas vezes menor de droga, ela é é presa por tráfico. Não dá para pensar encarceramento feminino sem olhar para interseccionalidade de diferentes marcadores. Quando o Judiciário age muitas vezes é baseado em estereótipos de classe, raça e gênero”, avalia Bruna Angotti, advogada e coordenadora do Núcleo de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

    De acordo com a socióloga Nathália Oliveira, coordenadora do Iniciativa Negra por Uma Nova Política de Drogas (INNPD), essa seletividade ocorre em dois momentos. “Primeiro, se seleciona quem é usuário e quem é traficante. Na maioria dos casos a única testemunha é a polícia, e a pessoa é quem tem que comprovar que não está traficando”.

    A outra seletividade, segundo a ela, ocorre no Sistema Judiciário. “Muitas vezes, ter uma residência e trabalho fixo é requerido pelos juízes para ter acesso a penas alternativas ao cárcere. A partir disso, pessoas acusadas não tem acesso a essas penas porque muitas já eram vulneráveis antes da pŕisão, não tinham moradia ou emprego fixo. Muitas vezes, se é alguém da classe média sob a mesma acusação, o juiz concede liberdade assistida”, afirma a socióloga. “A prisão da mulher vulnerabiliza toda uma família e os que dependem dela ficam mais vulneráveis quando ela é presa”, complementa.

    Para Nara Rivotti, Defensora Pública da União, é preciso repensar a política de drogas. “Essa é a questão central. Por que mulheres estão sendo presas por crimes não-violentos? O Direito Penal prevê medidas alternativas ao cárcere, como liberdade assistida, prestação de serviços à comunidade,reabilitação aos fins-de-semana. São eficientes, tem um efeito e mudam um paradigma de repressão”, afirma.

    Na avaliação da antropóloga Nathália Lago é preciso pensar as mulheres detidas hoje inseridas  no Sistema de Justiça como um todo: “Pensar que pobre é mais criminoso pode levar à criminalização da pobreza. Muitas pessoas cometem ilegalidades e contravenções, mas para onde está direcionado o olhar do Sistema de Justiça e da polícia? Aonde é que a polícia vai atrás de criminosos? Por que o Sistema de Justiça não tem essa mesma capacidade com outros grupos sociais? Há uma distribuição desigual da punição, que é direcionada para pessoas específicas.”

    Classe, raça e gênero

    Nathália Oliveira enfatiza a importância de pensar o contexto de vulnerabilidade  vivida por mulheres detidas antes do aprisionamento. “Há uma super representação da mulher negra no mercado informal de trabalho. Mesmo quando inseridas, recebem remunerações menores e não tem boas colocações. Essa mulher vai ocupar funções em outros mercados e o tráfico é um deles. A maioria é pega com uma quantidade muito pequena de drogas e a maioria é usuária”, pontua a socióloga.

    “Quando não estavam desempregadas, a maioria dessas mulheres exercia uma atividade informal ou precarizada no momento da prisão e vê no tráfico um modo de obter ou complementar renda”, afirma Bruna Angotti. “Além da renda, o  pequeno tráfico permite à mulher trabalhar em casa e cuidar dos filhos”, complementa Michael Mary Nolan, do ITTC, advogada presidenta do ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania).

    Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2014, as mulheres negras estavam mais suscetíveis ao desemprego, aparecendo no topo das taxas de desemprego (10,2%), enquanto, para homens brancos, essa taxa no mesmo ano foi de 4,5%. De acordo com o  estudo “Mulheres e Trabalho: breve análise no período 2000-2014”, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2016, as mulheres recebem 30% a menos do que homens e mulheres negras não chegam a ter 40% da renda de homens brancos.

    Outro aspecto trazido mencionado no Infopen se refere à posição coadjuvante de mulheres no crime. Segundo o levantemento, as mulheres são encontradas principamente em serviços de transporte e pequeno comércio, sendo poucas as que exercem atvidiades de gerência do tráfico.

    “Geralmente a mulher entra no mundo do crime ocupando cargos mais baixos e descartáveis. O mercado de trabalho  do crime é tão machista quanto o mercado de trabalho fora dele”, afirma Bruno Shimizu, defensor do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo.

    Bruna Angotti questiona algumas ideias que considera comuns nas discussões sobre o tema, como a de que mulheres são presas por causa de homens. “Ainda tem aquela ideia de que elas são presas por amor ou por serem ameaçadas. Acho que isso simplifica muito a questão e tira o protagonismo dessas mulheres. Há mulheres que não sabiam sobre a droga em casa, mas há mulheres que sabem – que colocaram essas questões na balança e assumiram o risco de serem presas, pensando no sustento da casa. É uma decisão difícil”, pontua.

    Decisão do STF

    Na última quinta (23), o Supremo Tribunal Federal decidiu que o “tráfico privilegiado” ou “tráfico eventual” – definido quando o réu é primário, tem bons antecedentes e não integra organização criminosa – não tem mais natureza hedionda.

    A Lei 8.072/1990 determinava que o tráfico de drogas era considerado crime hediondo tais como latrocínio, homicídio, estupro e tortura, entre outros. A esses crimes, considerados de extrema gravidade, são aplicadas punições mais severas, como maior tempo de prisão temporária, progressão de regime mais demorada e penas maiores. A decisão do STF foi bem avaliada por organizações e especialistas entrevistados pela Ponte

    Para Bruna Angotti, além de possibilitar penas menores e indultos, a decisão uma nova visão do STF em relação a drogas. “É um posicionamento mais flexibilizado e, quem sabe, não é um primeiro passo para uma revisão mais geral da proibição irrestrita e da maneira como tratamos as drogas no país. Com base na decisão do STF, defensores poderão pedir progressão de regime igual à de crimes não hediondos para tráfico privilegiado”, afirma. 

    “Comemoramos essa decisão, que pode ter um impacto principalmente para as mulheres. Mas não é uma aplicação automática, cada caso é um caso, mulher teve uma pena individualizada. Como a maioria dessas detidas são pobres, vai depender do empenho dos defensores em cada estado. Espero que isso ajude na interpretação de novos casos”, pontua Nathália Oliveira.

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