A verdade: o legado maior deixado por Inês Etienne!

    Ex-líder da Vanguarda Revolucionária Palmares (VPR) e única sobrevivente da Casa da Morte de Petrópolis, Inês Etienne Romeu, de 72 anos, morreu nesta segunda-feira (27/04), em Niterói (RJ)

    Maria Amélia de Almeida Teles (*), especial para a Ponte

    Inês Etienne
    Inês Etienne foi a única sobrevivente da Casa da Morte

    Inês Etienne e eu éramos bem jovens quando nos conhecemos em Belo Horizonte. Ela era apenas um ou dois anos mais velha do que eu. Mas já era um ícone. Eu a admirava à distância por sua criatividade e ousadia. Muitas vezes me sentia tímida perto dela.

    Éramos de organizações políticas de esquerda divergentes. Ela era da Polop e eu do PCdoB. A organização dela era tida como trotsquista e a organização a qual eu pertencia era considerada estalinista.  Mas isso não impediu que nos aproximássemos ainda numa fase em que  vivíamos em condições de legalidade. E cada vez que eu me encontrava com ela, eu a admirava mais ainda.

    Era uma intelectual, tinha uma argumentação bastante elaborada e uma convicção profunda na luta por justiça social, o que me fazia esquecer nossas divergências teóricas, políticas ou não sei mais quais. Inês era da Universidade de Minas (UFMG) e lá ela participava das discussões políticas tão frequentes naqueles tempos. Quando me casei, em 1965, ela fez questão de estar presente, comemorando comigo aquele momento.

    Fiquei encantada quando a vi no Butcheco, um bar pioneiro que atraia intelectuais, estudantes e gente que gostava da política. Ficava localizado no centro de Belo Horizonte. Ali se reunia boa parte da intelectualidade e da esquerda mineira. Ela teria sido a fundadora do bar junto com Carlos Alberto Soares de Freitas (Breno)  desaparecido político desde de 1971, quando então era também dirigente da VAR Palmares.  No período da legalidade, Inês era uma das mulheres  mais destacadas na cidade de Belo Horizonte, com aquele ar decidido e cheio de sonhos. Aliás, Inês foi daquelas que esteve à frente de seu tempo.

    A repressão política da ditadura militar nos separou. Ambas fomos para a clandestinidade. Cada uma para um lado, conforme a orientação de nossas organizações. Ela foi preparar a guerrilha urbana e se tornou uma das que integraram o seu comando. Eu fui me ajuntar àqueles que faziam a guerrilha rural.

    A mesma repressão política que nos separou,  fez com que nos encontrássemos novamente. Evidentemente em condições péssimas.  Na prisão, tomei conhecimento do que havia se passado com a Inês. Tudo que ela fez foi importante e teve destaque político na vida do país. [Presa em São Paulo pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, em 5 de maio de 1971, foi levada à Casa da Morte, centro clandestino de tortura, morte e ocultação de cadáveres, em Petrópolis (RJ). Ficou presa durante 96 dias e submetida a torturas e estupros]

    O aparato repressivo misógino da ditadura militar  não suportava a inteligência, a ousadia e capacidade estrategista de Inês. Ela fugia totalmente ao estereótipo da submissão, da subalternidade e da falta de iniciativa.

    Ela foi a única sobrevivente da Casa da Morte. Os torturadores a estupraram, a espancaram, a humilharam, a violentaram de todas as maneiras. Mas ela manteve íntegra sua dignidade e enfrentou o terror e o medo para denunciá-los.

    Graças a sua capacidade de observar e registrar,  ela guardou em sua memória os detalhes do lugar onde estava e assim denunciou a “Casa de Petrópolis”. Suas denúncias feitas, por escrito por ela mesma, ainda em 1971 e 1979, o que significa em plena ditadura,  são valorosas ainda nos dias de hoje, no pós Comissão da Verdade. Com sua atitude ousada, ela antecipou a Comissão da Verdade.

    Seu nome deve se inscrever em espaço relevante na história brasileira. Ela se foi. Seu legado fica no memorial dos que defenderam a democracia e sua consolidação. O seu legado maior sempre foi e será a verdade histórica. Oxalá o estado brasileiro venha, de fato,  investigar os crimes de lesa humanidade, como os estupros, os desaparecimentos forçados cometidos pela ditadura militar, testemunhados por Inês Etienne. Esta seria a maior homenagem a esta mulher que dedicou sua vida a defesa da justiça.

    Maria Amélia de Almeida Teles é ex-presa política, militante feminista, diretora da União de Mulheres de São Paulo, integra a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos

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    Marilia Oliveira
    Marilia Oliveira
    8 anos atrás

    Maria Amélia, parabéns pela homenagem à Inês Etienne. Espero que ela tenha sua história gravada em uma biografia para que nunca seja esquecida.
    Abraços,
    Marilia Oliveira

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