Advogados de Rafael Braga afirmam que juiz nega direito à ampla defesa do ex-catador

    Magistrado Ricardo Coronha afirmou ser “impertinente” pedido de acesso aos registros do rastreador que ex-catador usava ao ser preso e também das câmeras da viatura da PM que o levou

    As mãos de Rafael Braga. Foto: Luiza Sansão/Ponte Jornalismo

    O juiz Ricardo Coronha Pinheiro, que julga o atual processo contra Rafael Braga, negou à defesa do ex-catador de latas pedido de diligências que, se atendido, poderia mudar o rumo do caso. Segundo os advogados de Rafael, o magistrado impediu o direito à ampla defesa do acusado.

    Único condenado preso no contexto das jornadas de junho de 2013, acusado de portar material explosivo quando levava dois frascos plásticos lacrados de produtos de limpeza, Rafael encontrava-se em regime aberto com uso de tornozeleira eletrônica havia pouco mais de um mês quando foi preso novamente, em 12 de janeiro do ano passado. A prisão ocorreu quando ele caminhava da casa de sua mãe para uma padaria na Vila Cruzeiro, favela no bairro Penha, zona norte do Rio, onde vive sua família.

    De acordo com a defesa de Braga, seis PMs da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) o abordaram com violência na localidade conhecida como “Sem Terra”, agrediram-no, apontaram-lhe o fuzil para a barriga e ameaçaram-no de “jogar arma e droga na conta dele” caso não delatasse traficantes da região. Desde então, ele encontra-se preso, acusado de tráfico de drogas, associação para o tráfico e colaboração com o tráfico.

    Como os policiais que o prenderam caíram em contradição durante as audiências em que depuseram como testemunhas de acusação, todas acompanhadas pela Ponte, a defesa do ex-catador identificou a necessidade de obter acesso ao registro legível do GPS da tornozeleira eletrônica que Rafael usava no então recém-conquistado regime aberto e também as imagens da câmera da viatura em que ele fora levado pelos PMs e da câmera da UPP Vila Cruzeiro, para onde fora conduzido antes de seguir para a delegacia.

    Mas o juiz negou o pedido da defesa, sob o argumento de que o registro do GPS e as imagens das câmeras seriam desnecessárias para o desfecho do processo. Pouco depois, entretanto, Coronha acatou pedido idêntico do Ministério Público, determinando uma busca e apreensão genérica dos registros que não deu em nada devido à ausência de dados que possibilitassem a identificação da viatura usada pelos policiais que prenderam Rafael. Depois, o juiz voltou a negar novo pedido da defesa do réu de que fosse requerido ao Comando da UPP os referidos dados de identificação da viatura.

    “Entendo que a diligência, da forma como foi requerida, de maneira ampla e genérica, não tem condão de trazer elementos de grande valia ao julgamento do feito, além daqueles já constantes nos autos. Na verdade, a meu sentir, só onera o bom andamento do processo, tornando-a impertinente”, escreveu o juiz na decisão.

    Na interpretação dos advogados do DDH (Instituto de Defesa dos Direitos Humanos), que atuam na defesa de Rafael, o juiz violou o direito à ampla defesa do acusado. “Além de violar a ampla defesa, o contraditório e a igualdade processual entre as partes, o juiz revelou sua parcialidade e demonstrou já ter formado a convicção de que Rafael é culpado”, afirma o advogado Ednardo Mota.

    Uma das contradições dos policiais que poderia ser esclarecido se as diligências fossem atendidas reside no fato de o PM Pablo Vinícius Cabral, primeiro a depor, ter alegado que,  antes de ser conduzido à 22ª DP (Penha), Rafael fora levado à sede da UPP local, versão que consta no registro da ocorrência e também fora relatada pelo ex-catador de latas.

    Já o policial Victor Hugo Lago afirmou que eles o levaram diretamente para a delegacia, sem parar na UPP. Além disso, o primeiro policial afirmou que Rafael foi levado na caçamba da viatura, ao passo que o segundo disse que ele foi colocado no banco de trás, entre outros detalhes. “O registro legível do GPS da tornozeleira eletrônica poderia demonstrar que Rafael estava em casa toda a manhã e havia acabado de sair em direção à padaria momentos antes de ser preso”, diz o advogado.

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    Alegações finais

    Após serem ouvidas cinco testemunhas de acusação (policiais), uma de defesa e, por fim, Rafael, o processo chegou agora às alegações finais — etapa na qual ambas as partes apresentam suas argumentações derradeiras, o Ministério Público e a defesa de Rafael.

    Ao pedir a condenação de Rafael em suas alegações finais, às quais a reportagem teve acesso, o Ministério Público basicamente levou em conta somente a versão dos policiais, desconsiderando o depoimento da única testemunha de defesa do caso, que a Ponte acompanhou em 12 de abril do ano passado, alegando que suas “declarações não são seguras o suficiente para afastar a tese acusatória”.

    O MP desconsiderou ainda o relato de Rafael, que depôs em 7 de junho de 2016, afirmando que “o réu não é pessoa tão ingênua quanto se faz transparecer” por não ser primário e que tem “personalidade voltada ao cometimento de delitos”.

    “Mandaram eu abrir a mão, abriram o plástico, botaram pó na minha mão, me forçando a cheirar. Mas eu não cheirei. Aí me levaram para a 22ª DP e apresentaram essas drogas, que não eram minhas não. Nunca participei [de tráfico], nunca vendi droga na minha vida”, contou Rafael na ocasião.

    “É lamentável que o Ministério Público, ao pedir sua condenação, tenha desconsiderado o depoimento da única testemunha que assistiu sua prisão e não faz parte dos quadros do Estado, tenha feito tão pouco caso do firme relato do acusado em seu interrogatório judicial e afirmado, com base apenas na sua folha de antecedentes criminais, que Rafael possui ‘personalidade voltada para o cometimento de delitos’”, afirma o advogado Ednardo Mota.

    “Com respaldo numa lei perversa, que define genérica e abstratamente o crime de tráfico como qualquer relação que se tenha com drogas que não seja exclusivamente o porte para uso próprio, e que, ao contrário do que muitos pensam, não exige violência, ameaça, e sequer a intenção de comércio, Rafael se soma aos cerca de 150 mil presos por este delito no país, e aguarda uma sentença que pode condená-lo a mais de 15 anos de prisão”, completa.

    Em comum, as duas prisões de Rafael, em 2013 e 2016, têm uma característica que determinou, sozinha, sua passagem para a prisão: nos dois casos, ele foi preso apenas com base na palavra dos policiais — algo que uma súmula no estado do Rio de Janeiro propicia.

    Rafael Braga em setembro de 2015 no Escritório de Advocacia João Tancredo, onde trabalhava enquanto estava no regime semiaberto. Foto: Luiza Sansão/Ponte Jornalismo

    Súmula 70

    No TJRJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro), vigora a Súmula 70, que, segundo artigo assinado pelos advogados Carlos Eduardo Martins, responsável pelo caso Rafael Braga, e Thiago Melo, coordenador do DDH, é inconstitucional e “orienta os julgadores a condenar um cidadão com base apenas no relato policial: ‘O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação’”.

    O advogado João Henrique Tristão, que também atua na defesa de Rafael, explica que a Súmula 70 possibilita, em inúmeros casos, por meio de uma construção jurisprudencial do TJRJ, a condenação de acusados com base, única e exclusivamente, nos depoimentos de policiais, em meio à ausência de outros elementos probatórios.

    “Ou seja, o magistrado se utiliza apenas da valoração dessa prova, e muitas vezes em dissonância com os demais elementos do processo, para levar a cabo uma condenação que, do ponto de vista probatório, é extremamente frágil”, afirma.

    Trata-se de algo contrário à lógica do próprio Código de Processo Penal, segundo o advogado, na medida em que se tem, assim, “um sistema de valoração da prova baseado no livre convencimento do magistrado”.

    “Considerando a repercussão de casos de prisões que eram levadas a cabo no TJRJ, em que não existiam outros elementos probatórios a não ser a palavra dos policiais, prisões muitas vezes duvidosas, questionáveis, feitas à margem da lei, a única maneira de você segregar as pessoas era atribuindo um valor demasiado à palavra de um policial, o que é, do ponto de vista jurídico processual, contrário à lógica do sistema acusatório, e é um verdadeiro absurdo”, critica Tristão.

    Outro lado

    Para ouvir o juiz Ricardo Coronha, a reportagem enviou nesta quarta-feira (1/02) e-mail solicitando à assessoria de imprensa do TJRJ que lhe encaminhasse as seguintes questões:

    – Vossa Excelência negou à defesa de Rafael Braga Vieira o pedido das seguintes diligências: acesso à imagens das câmeras da viatura e da UPP Vila Cruzeiro, e registro legível do GPS da tornozeleira eletrônica que o acusado usava quando se encontrava no regime semiaberto, em 12 de janeiro de 2016. Pouco depois, acatou pedido idêntico do Ministério Público e, depois de constatada a ausência de dados que possibilitassem a identificação da viatura usada pelos policiais que prenderam Rafael Braga, negou novo pedido da defesa para que fosse requerido ao Comando da UPP os referidos dados de identificação da viatura.
    – O senhor alegou ser desnecessário o acesso a tais registros. Por que motivo assim considerou?
    – Isto não é o mesmo que negar o direito à ampla defesa do acusado, tendo em vista que existia a possibilidade de tais registros evidenciarem contradições nos depoimentos das testemunhas de acusação?

    Até a publicação desta matéria, não houve retorno.

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