Após 16 anos, família espera decisão da Justiça sobre morte de detento em delegacia de SP

    Nilson Saldanha tinha 40 anos quando, em junho de 2000, foi espancado e torturado na carceragem do 50° DP (Itaim Paulista), zona leste de SP, por policiais civis do GOE, espécie de tropa especial da Polícia Civil

    Caramante
    Nilson Saldanha (dest.) tinha 40 anos quando foi morto sob custódia do Estado de São Paulo, na carceragem do 50° DP (Itaim Paulista), zona leste de SP – Foto: Reprodução do jornal ‘Diário Popular’

    A faxineira Quésia Silva Saldanha, 30 anos, estava grávida de quatro meses e tinha 14 anos quando seu pai, Nilson Saldanha, 40 anos, morreu em 19 de junho de 2000, após ser espancado e torturado com choques elétricos por policiais no 50° DP (Itaim Paulista).

    Nilson, o irmão caçula dela, era adolescente. Tinha 12 anos. O menino cresceu traumatizado com a morte do pai. Sofreu um bloqueio mental e não consegue escrever. Apenas lê.  Aos 28 anos, ainda tem problemas psicológicos.

    Jonathan, o filho de Quésia, completou 16 anos em fevereiro de 2016. O adolescente e toda sua família perderam as esperanças na Justiça. Até hoje aguardam o julgamento dos 15 policiais civis processados pelas agressões, crimes de tortura contra 31 presos e o assassinato do detento Nilson Saldanha.

    O processo corre sob segredo de Justiça no Fórum Criminal da Barra Funda, zona oeste. São réus os delegados Enilda Soares Xavier (titular do 50º DP na época dos fatos) e o então delegado-assistente dela, José Manoel Lopes, e um plantonista.

    Também constam na lista de réus o então chefe dos investigadores, José Coelho Gonçalves Filho, o carcereiro Everaldo Aparecido dos Anjos e os policiais Fábio Augusto Lima Campioni e José Arruda Egídio, todos do 50º DP, além de Armando Felizardo e Antonio Arruda dos Santos, da 7ª Seccional (Itaquera).

    Os outros réus são os agentes Eduardo Bonifácio Bueno, Eliseu Lima da Silva, Carlos Tadeu Almeida Lima e Rogério Alves. Os quatro eram do GOE (Grupo de Operações Especiais), unidade de elite da Polícia Civil. Essa tropa sempre era acionada para dar apoio em casos de rebeliões nas carceragens de delegacias e cadeias públicas.

    Mas não foi o que aconteceu no dia 9 de junho de 2000. Os policiais do 50º DP foram avisados que havia uma arma escondida na carceragem. Os agentes do GOE foram chamados para ajudar na revista aos detentos das cinco celas.

    Os presos foram obrigados a saírem nus dos xadrezes. Tinham de ficar agachados ou deitados no pátio até que a arma fosse encontrada. Como nada foi localizado teve início as sessões de tortura.

    Segundo apurou o MPE (Ministério Público Estadual), os policiais, antes de iniciarem os espancamentos, gritavam: Aqui nós estamos com o diabo no corpo.”

    Os presos então passaram a correr até o fim do pátio. Depois se jogavam contra a parede e caíam uns sobre os outros.

    Os policiais em seguida se voltaram, especificamente, contra dois presos: Nilson Saldanha e Cleone Valentim Arcanjo. O primeiro porque era mais antigo e tinha ascendência sobre os demais. O segundo porque era o faxina (chefe da ala).

    Ainda segundo o MPE, os policiais eletrificaram as grades de uma das celas e algemaram os presos em dupla, fazendo com que recebessem o choque ao mesmo tempo. Até tomaram a cautela de molhar o chão do pátio e dos xadrezes com panos encharcados para aumentar a sobrecarga.

    Arcanjo também foi ferido com golpe de barra de ferro na cabeça. Ele sofreu um corte e teve sangramento. Mesmo assim não parou de ser espancado.

    Saldanha ficou sentado pelado sobre panos encharcados com água, no interior da cela 3, longe dos olhares dos outros presos. Depois recebeu choques na cabeça.  Em seguida foi a vez de Arcanjo receber os choques elétricos.

    Caramante
    Familiares no velório de Nilson Saldanha, morto por espancamento e tortura praticada por policiais civis de SP – Foto: Reprodução jornal “Diário Popular”

    Assim que acabava uma sessão de choques, os policiais passavam a golpear Saldanha com barras de ferro, em todo o corpo. De acordo com o MPE, em seguida os policiais do GOE, Eduardo Bonifácio Bueno, Eliseu Lima da Silva, Carlos Tadeu Almeida Silva e Rogério Alves alternaram-se com os policiais José Coelho Gonçalves Filho, Everaldo Aparecido dos Anjos Camargo e José Arruda Egídio, desferindo choques e pancadas contra Saldanha.

    Saldanha, cansado de apanhar, olhou para Arcanjo e, desesperado, disse que não agüentava mais a tortura. O amigo o confortou e suplicou para que suportasse, pois o final estava próximo.

    Mas na carceragem as agressões continuavam. O preso Umberto de Souza Santos perdeu a audição após receber um forte tapa no ouvido esquerdo. Ele não conseguiu ouvir. Porém, os policiais gritavam: “Viva o GOE” e “Deitei e rolei na cinquenta“.

    As torturas só cessaram quando o detento Jailson Bezerra Soares assumiu a posse da arma.  Os presos ainda ficaram três dias nas celas sem comer e sem receber produtos de higiene e limpeza. Os familiares não recebiam notícias.

    Saldanha morreu nove dias depois. A delegada Eneida Soares Xavier chegou a dizer que ele tinha colesterol alto e morreu de parada cardíaca. Mas a perícia constatou que foi politraumatismo e congestão cerebral por causa dos choques na cabeça.

    O então promotor de Justiça Márcio Sérgio Christino, hoje procurador de Justiça, denunciou os 15 policiais civis por crime de tortura e pediu a perda da função pública dos acusados. Segundo Christino, os delegados presenciaram a tortura e, em vez de impedi-la, a incentivaram.

    Outros três policiais foram denunciados por falsidade ideológica e falso testemunho. Eles tomaram os depoimentos dos presos, mas não mencionaram os espancamentos e as torturas nas declarações.

    Ao menos três entre os policiais acusados morreram. Nenhum dos envolvidos pode falar sobre o caso porque o processo é sigiloso. Em depoimentos, os réus negaram a prática de tortura e alegaram que agiram de acordo com a lei.

    A morte de Saldanha foi incluída em 2001 no relatório da Anistia Internacional, intitulado Tortura e Maus-Tratos no Brasil. Também foi denunciada pela Justiça Global à Comissão de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos).

    Em 12 de maio de 2010, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo manteve a decisão de primeira instância de indenizar a viúva Maria Lucidalva Clementino da Silva Saldanha, 56 anos, e os quatro filhos pela morte de Saldanha.

    A indenização por danos morais foi fixada em 150 salários mínimos para cada um, por conta do abalo psíquico sofrido.

    Já por danos materiais foi determinado o pagamento de 2/3 do salário mínimo desde a data em que Saldanha deixasse a prisão e até quando completasse 65 anos.

    A Fazenda Pública, porém, recorreu da decisão nas instâncias superiores, em Brasília. Dona Lucidalva é aposentada e mora com os filhos em uma casa humilde no extremo da zona leste.

    “Dizem que a justiça tarda, mas não falha. No meu caso já se passaram 16 anos. É muita demora, muita lentidão”, desabafou.

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