ARTIGO – Justiça que tarda: o assassinato de Oziel Terena e a impunidade no Brasil

    MPF concluiu: foi uma operação policial “fracassada”, realizada com “graves erros” e que resultou na morte do índio terena Oziel Gabriel

    Caramante
    Reprodução do inquérito mostra momento em que policial federal atira contra indígenas – Foto: ASCOM MPF/MS

    O inquérito recém concluído pelo Ministério Público Federal (MPF) comprovou uma suspeita que indígenas já tinham desde que Oziel Terena foi morto numa ação da Polícia Federal (PF): Inquérito do MPF/MS conclui que bala que matou indígena Oziel Gabriel em 2013 foi disparada pela PF

    Foram necessários três anos de investigação, uma justiça tardia. Ainda assim, a notícia desperta a esperança de que este não será um entre os milhares de casos de mortes que se acumulam, ou são arquivados, sem punição no Brasil.

    O tema das violências praticadas contra pessoas e povos indígenas e que seguem impunes foi tratado no Relatório da visita ao Brasil da Relatora Especial da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas, apresentado em setembro ao Conselho de Direitos Humanos da ONU. Ela chamou especial atenção para as violações praticadas por autoridades públicas e relacionou essa situação a um quadro de contínua discriminação estrutural que precisa ser enfretada no Brasil.

    Recomendou, dentre outras coisas: a adoção de medidas imediatas para proteger a segurança de líderes indígenas, inclusive por meio de programas de proteção fortalecidos e culturalmente adequados, e a condução de investigações sobre todos os ataques e assassinatos de povos indígenas para levar os responsáveis à justiça.

    Oziel Terena foi morto em 2013. A maior parte das manchetes anunciou a morte da liderança indígena como como resultado de um “confronto dos indígenas” com as forças policiais.

    Agora, 2016, o inquérito revela:

    O MPF concluiu que foi uma operação policial “fracassada”, realizada com “graves erros”, que resultaram em, pelo menos, uma morte (o indígena terena Oziel Gabriel), 7 vítimas não fatais de arma de fogo (4 policiais, 2 indígenas e um cão militar), 9 policiais feridos por pedras e 19 indígenas feridos por munição de elastômero, totalizando 36 vítimas. E todo esse prejuízo com eficácia zero, já que duas horas após finalizada a operação (17 h), a fazenda foi reocupada.

    Oziel morreu com um tiro na barriga durante duvidoso cumprimento de reitegração de posso em favor do fazendeiro e ex-deputado pelo PSDB e ex-secretário estadual Ricardo Bacha.

    Oziel defendia, junto com seu povo, a Terra Indígena Buriti (reconhecida pelo menos desde 1993 e declarada pelo Ministro da Justiça em 2010) e o direito de viver com dignidade em seu território ancestral.

    Oziel morreu no estado mais violento de se viver se você for indígena: o Mato Grosso do Sul. Sua morte está diretamente relacionada ao racismo que estrutura as relações sociais e econômicas no Brasil.

    No dia seguinte ao assassinato, um delegado da própria Polícia Federal declarou à imprensa a possível responsabilidade da polícia federal pelo tiro fatal. Mas é somente agora, e sobretudo devido aos esforços do MPF em lutar contra mais essa impunidade, que alguns resultados começam a aparecer.

    Após uma visita urgente ao Mato Grosso do Sul, o então Ministro da Justiça havia prometido rigor na apuração do caso. No entanto, fato é que, mesmo depois de sua morte, Oziel ainda “teve que lutar” para ter uma autópsia antes de seu digno enterro na terra indígena Buriti.

    Acompanhei esse sofrimento em 2013, junto com outros colegas da Funai e da então Secretaria de Direitos Humanos. Inicialmente, tentando providenciar o transporte adequado do corpo sem a colaboração da SESAI local e uma autópsia pericial independente que permitisse chegar a conclusões objetivas sobre os fatos que causaram a morte de Oziel. Depois, tentando monitorar, sem sucesso, o andamento da instauração de inquéritos e apurações na Polícia Federal, na Corregedoria (órgão fiscalizador) da mesma.

    Hoje, em 2016, o MPF noticia que processou a delegada Juliana Resende Silva de Lima. Ela foi a responsável pelo parecer que levou ao arquivamento de uma sindicância investigativa da Corregedoria da PF e que deveria ter servido para apurar possíveis irregularidades cometidas pelos policiais durante o cumprimento da reintegração de posse. De acordo com o MPF, a delegada é esposa de um dos delegados responsáveis pela operação.

    Sob intensa pressão política na região nos dias que se seguiram à morte de Oziel, em Brasília ficamos sabendo (e está documentado nos autos do mesmo processo administrativo do MPF) que a bala que atingiu Oziel foi retirada de seu corpo antes da autópsia. Essa bala sumiu juntamente com sua camiseta — que poderia apontar outros indícios relevantes para as investigações.

    Caramante
    Indígenas protestam contra a morte de Oziel Terena- Foto: Dionedison Terena

    Em seguida, fomos informados de que devido a um suposto acordo com o governo estadual, o município de Sidrolândia tinha (ou ainda tem) procedimentos sui generis, assim chamado, para autópsias. Isso incluiria protocolos de manipulação e embalsamento de corpos, que não atendiam aos padrões e procedimento regulares de perícias. Tudo isso dificultava os trabalhos da perícia independente e direcionavam a mais um possível caso de impunidade.

    Oziel foi morto no feriado de Corpus Christi de 2013. Um dia antes, participei audiência de conciliação na Justiça Federal de Campo Grande junto de lideranças Terena, servidores da Funai de Campo Grande, representantes da Procuradoria Federal Especializada, do Ministério Público Federal, do Conselho Nacional de Justiça.

    Nessa audiência judicial, os Terenas levaram ao Juiz uma carta da comunidade relatando a situação de confinamento e injustiça a que estavam submetidos. Contaram sobre o entendimento mantido com o proprietário da Fazenda Buriti e políticos locais, ainda no mês de abril, buscando apoio mútuo para uma solução conjunta e não violenta das reivindicações.

    Relataram que se sentiaram enganados e ameaçados de perderem seus direitos. Relacionaram esse sentimento às notícias sobre o pedido de anulação do reconhecimento da terra indígena levado pelos ruralistas ao governo federal. À época, o Ministério da Justiça conduzia as “mesas de negociações” com a FAMASUL e grandes ocupantes de terras no Mato Grosso do Sul para evitar as demarcações de terras indígenas.

    Durante a mesma audiência judicial, o representante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também falou bonito. Contudo, dias depois da orquestrada, porém, fracassada tentativa de reintegração de posse sem o acompanhamento do MPF e da FUNAI e que resultou na morte de Oziel, convocou uma reunião de suposta mediação.

    A reunião foi entendida pelos Terenas como um espaço de pressão para negociação de seus direitos. Tanto que o “especialista em questões indígenas” indicado pelo CNJ, Gilson Rodolfo, era figura conhecida dos indígenas por ter sido contratado por fazendeiros para elaborar contra-laudos às pericias judiciais no caso da própria Buriti.

    A conversa com o juiz federal, data máxima vênia para usar a expressão retórica do ambiente jurídico, foi um palco de vento para as palavras da Justiça. Antes de encerrar, às 18hs de 29/10/2013, o juiz federal ponderou que caberia discutir o pedido de reintegração somente após o julgamento do agravo (recurso) ainda pendente de decisão no Tribunal Regional Federal. Tribunal este, frisa-se, que estava negando invariavelmente o seguimento de reintegrações similares, mas que, por outro lado, havia negado o pedido de suspeição feito pela Funai com relação ao desembargador cujo sogro é membro da FAMASUL.

    No caso em questão, o juízo de Campo Grande acolheu o reclamo dos autores e determinou o cumprimento imediato da reintegração de posse. Ou seja: o despejo da comunidade indígena de suas próprias terras. Antes de despedir-se, o juiz esclareceu  - na presença de representantes das polícias federal e estadual- que a ordem de reintegração não seria cumprida nos próximos dias, em razão do feriado e do pedido feito pela Funai para garantir a devida comunicação prévia à comunidade. Desde o mês anterior, e conforme relatado pelo próprio oficial de Justiça, o clima na região já era tenso e era preciso adotar todas as medidas cabíveis para garantir a integridade física de todos os envolvidos. As palavras do juiz federal, no entanto, foram em vão.

    Às 4hs da manhã do dia seguinte, servidores da Funai já recebiam informações da chegada da Polícia Federal na área ocupada. Eu estava de volta a Brasília, mas o grupo de comunicadores Terena, armados de câmeras e celulares, conseguiu registrar a brutal ação da PF um pouco antes da morte de Oziel. Semanas antes, haviam gravado a atuação da mesma PF, de forma autoritária, confiscando materiais de um jornalista do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), sem apresentar ordem judicial ou qualquer justificativa.

    Nos dias que se seguiram à morte de Oziel Terena, frustrada com absurdos trás absurdos das notícias de novos ataques contra as comunidades e outros indígenas baleados em Sidrolândia, e da ausência de uma mensagem contundente de Justiça e paz pelas autoridades responsáveis, escrevi em algum canto uma esquisita poesia de desabafo da qual extraio um trecho:

    Sem senso de justiça, a negação de direitos indígenas passa a ser uma bandeira política da pior qualidade, pintada com as cores da intolerância, injustiça e da morte.

    Agora, concluiu o Ministério Público: foi a PF quem matou Oziel.

    Na terra indígena Buriti, foi erguido um memorial em sua homenagem e, em menos de um ano depois da trágica operação da PF, a área foi noticiada como exemplar em produção, ou seja, garantindo condições de subsistência aos indígenas  — ao invés do latifúndio para boi- e retirando-os do confinamento que enfrentavam desde a década de 1930, ainda que sob contínua pressão e resistência indígena.

    Entre 2013 e 2016, os povos indígenas do Mato Grosso do Sul sofreram com os crescentes ataques, inclusive promovidos por milícias privadas armadas, além das tentativas de enfraquecer e deslegitimar o movimento indígena, e especialmente o povo Terena.

    Buscando intimidar os indígenas e seus apoiadores, em 2015 foi instaurada uma CPI estadual para investigar o CIMI. A CPI teve por base as alegações do mesmo ex-deputado Ricardo Bacha, reclamante de área na terra indígena Buriti que levou ao episódio da morte de Oziel. A CPI ainda contou com delegado da Polícia Federal responsável pela operação como depoente.

    De acordo com o CIMI, à época, esse delegado era responsável por licenciar e fiscalizar empresas de segurança privada no Estado. Em junho de 2016, outro imporante inquérito do MPF foi concluído e denunciou 12 fazendeiros do Mato Grosso do Sul pelo uso de milícias armadas contra indígenas. Outro fato notório na região, que mancha de sangue a imagem do Estado e segue impune.

    Para a Relatora da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, diante das inúmeras violações de direitos que seguem sem ser investigadas ou remediadas, o Brasil deveria iniciar, em diálogo com os povos indígenas, “um inquérito nacional independente e transparente sobre a violação dos direitos dos povos indígenas no Brasil, objetivando transformar a relação do Estado com os povos indígenas em uma relação baseada no respeito, justiça e auto-determinação.”

    Dos meus escritos de 2013, reitero os votos: Que as vidas indígenas violentamente levadas, juntamente com as dignidades brasileiras afrontadas, mobilizem juristas, políticos, jornalistas, defensores de direitos humanos, movimento social, indigenistas, sindicatos e também fazendeiros de caráter para se manifestarem em prol da verdadeira Justiça. Aquela que merecemos como Povo, porque resolve e não cria conflitos entre nós.

    *Erika Yamada é Relatora de Direitos Humanos e Povos Indígenas da Plataforma Dhesca e Perita no Mecanismo de Peritos da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Advogada, formada pela Universidade de São Paulo (2001) com doutorado em Direito e Política Indígena pela Universidade do Arizona nos Estados Unidos e colaboradora no Grupo de Pesquisa da UnB Moitará. Comprometida com o tema dos direitos dos povos indígenas como direitos humanos aprendeu com trabalhos de organizações indígenas brasileiras e estrangeiras e dos Relatores da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas em suas visitas ao Brasil. Foi advogada do Instituto Socioambiental e, como servidora pública, foi assessora e coordenadora-geral na Funai.

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