Quem disse que a bandidagem não tolera estuprador?

    Crença de que o crime organizado combateria a cultura do estupro é falsa, afirma a socióloga Camila Nunes Dias. “PCC e Comando Vermelho são machistas e homofóbicos”, diz

    Cena do protesto Por Todas Elas, contra a cultura do estupro, em 1º/6, na Paulista, São Paulo | Foto: Daniel Arroyo
    Cena do protesto Por Todas Elas, contra a cultura do estupro, em 1º/6, na  avenida Paulista, em São Paulo | Foto: Daniel Arroyo

    “Homem é homem, mulher é mulher. Estuprador é diferente, né? Toma soco toda hora, ajoelha e beija os pés, e sangra até morrer na rua dez.” Os versos do rap Diário de um Detento, dos Racionais, um dos mais conhecidos do hip hop nacional, ajudaram a espalhar a crença de que o crime organizado instalado nas comunidades e prisões seria inimigo dos estupradores. Uma noção que entrou em xeque, nesta semana, com a notícia de que traficantes do Morro do Barão, na zona oeste do Rio de Janeiro, ligados ao Comando Vermelho, teriam ameaçado de morte não os suspeitos de praticarem um estupro coletivo, mas a vítima do crime – uma adolescente de 16 anos.

    Até policiais usaram a falta de ação do crime organizado contra os suspeitos como justificativa para dizer que a adolescente teria inventado o estupro – apesar de o crime ter sido registrado em vídeo divulgado nas redes sociais. “Bandido de facção nenhuma aceita o estupro por uma razão muito simples: enquanto ele está preso a família dele está na rua, mãe, esposa, filha, irmã”, disse um major da PM carioca.

    Para entender a relação entre o crime organizado e a cultura do estupro, a Ponte Jornalismo entrevistou a socióloga Camila Nunes Dias, professora da UFABC (Universidade Federal do ABC), pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP), uma das principais estudiosas do crime organizado no Brasil, autora do livro PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência (Saraiva, 2013). Para Camila, facções como o PCC (Primeiro Comando da Capital) e o Comando Vermelho repudiam apenas alguns tipos de estupro, mas aceitam outros. “São profundamente conservadores, machistas e homofóbicos”, afirma. E diz mais: por mais que se matem uns aos outros, policiais e bandidos têm visões de mundo muito parecidas.

    Camila Nunes Dias: ""
    Camila Nunes Dias: “O crime organizado não admite o ‘estupro clássico’, mas aceita outros”

    Ponte Jornalismo – Sempre ouvi falar que o crime organizado pune estupradores com a morte. Nesta semana, o caso da adolescente vítima de estupro coletivo no Rio mostrou o contrário: a ameaça de morte do Comando Vermelho teria caído sobre a vítima e poupado os suspeitos. Até que ponto o crime organizado condena o estupro?

    Camila Nunes Dias – O chamado crime organizado, que a gente pode traduzir como os comandos que controlam as prisões e as localidades pobres, não admitem os estupros dentro das cadeias de um homem por outro (isso não se aceita mais, pelo menos aqui em São Paulo) e o estupro de mulheres visto num sentido mais, digamos, “clássico” : aquela ideia do desconhecido que aborda uma mulher na rua e, mediante ameaça, comete um ato sexual forçado. Agora, acho que é importante considerar que o tipo de estupro ocorrido nessa comunidade do Rio de Janeiro, envolvendo pessoas que se conhecem, em momentos de festa, com o consumo de bebidas e drogas, não é reconhecido assim. Esse tipo de ato, que a gente também classifica como estupro, porque se trata do abuso de uma pessoa que está numa situação de vulnerabilidade, ocorre com muito mais frequência, não só nas comunidades pobres, mas também em festas universitárias e de classe média. É o compartilhamento de uma cultura machista amplamente disseminada na nossa sociedade e que, no caso das comunidades pobres, se revela de forma mais contundente.

    Ponte – Essa visão sobre o “estupro clássico” é compartilhada tanto pelos grupos criminosos como por parte da polícia, já que o delegado Alessandro Thiers [que conduzia o inquérito do estupro coletivo contra a adolescente até ser substituído pela colega Cristiane Bento], que cuidava do caso, chegou a declarar que não houve estupro.

    Camila – Pelo que está sendo noticiado, fica muito evidente que a mesma percepção é compartilhada por esses grupos: tanto os que cometeram o estupro como as autoridades policiais – pelo menos aquelas que fizeram o primeiro atendimento à vítima. A gente percebe, pelos comentários da internet e por tudo isso, o quanto se concebe que, a depender do comportamento que a mulher tem, da roupa que ela usa e do lugar em que está, o ato de violência gravíssimo cometido contra ela pode ser justificado.

    Ponte – Existe uma certa romantização da figura do traficante, como se ele fosse um inimigo do estuprador e tivesse uma consciência social?

    Camila – Acho que sim. A gente percebe muitas vezes essa construção disseminada tanto na academia como em outros setores sociais, e acho que aí há um grande equívoco. Muitas vezes há uma condescendência com os grupos de criminosos que atuam nessas comunidades porque levantam a bandeira da denúncia da violência policial. Eles acabam angariando um certo reconhecimento de que são menos violentos e injustos do que a própria polícia – até aí, eu até tendo a concordar em parte. Quando se tem uma polícia como a nossa, extremamente violenta, corrupta, com uma taxa de letalidade vergonhosa, esses grupos surgem como um contraponto e muitas vezes angariam para si mesmos um certo olhar condescendente. Mas, se a gente for avaliar com um olhar mais profundo a atuação desses grupos, e estou falando mais especificamente do Comando Vermelho (que, até onde eu li, é o grupo que controlava essa comunidade onde ocorreu o estupro no Rio de Janeiro) e do PCC em São Paulo, a gente vai ver que, apesar de uma identidade fortemente construída em oposição à polícia, são extremamente conservadores no que diz respeito às relações sociais, sobretudo de gênero. São grupos absolutamente conservadores, machistas e homofóbicos, e isso muitas vezes se minimiza na análise da sua atuação nas prisões e comunidades. Eu não enxergo neles uma capacidade de sinalizar para uma ampliação da qualidade na luta por direitos, porque não é disso que se trata. Eles são filhos da opressão – da polícia, do Estado, do sistema prisional –, mas não representam uma opção melhor.

    Delegado Alessandro Thiers, para quem a adolescente não foi vítima de estupro | Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
    Delegado Alessandro Thiers, para quem a adolescente não foi vítima de estupro | Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

    Não é porque o PCC e Comando Vermelho falam contra a opressão que deixam de ser grupos opressores.

    Exatamente. Embora tenham surgido como resposta à opressão, eles exercem formas variadas de outros tipos de opressão. Há alguns dias, saiu a notícia de que uma adolescente foi espancada na rua e obrigada a andar nua na rua numa comunidade aqui em São Paulo porque se descobriu que ela namorou o marido de uma outra mulher. É mais um exemplo de como a mulher é vista no âmbito desses grupos de traficantes e comandos: como propriedade do homem. É muito comum que os presos e os bandidos fora da cadeia tenham várias amantes, e que as mulheres deles não possam fazer nada que não seja previamente autorizado por eles, como ir numa festa. Quando o bandido está na prisão, também é comum que os parceiros dele na comunidade fiquem de olho na mulher dele para saber se ela está se comportando de forma adequada. Então, nesse segmentos, a relação entre homem e mulher é profundamente assimétrica. Geralmente quem dá as cartas são os homens e as mulheres acabam tendo um papel de submissão.
    Nas próprias cadeias, existe a figura abominada do Talarico, o homem que dá em cima da mulher do preso. Porque o Talarico é algo tão abominado e pode até ser punido com a morte? Entendo que corresponde à visão de que a mulher é propriedade do homem. Se a mulher é propriedade de determinado preso, é inadmissível que outro homem olhe na direção dela.

    E tem o exemplo dos traficantes que aceitavam relações sexuais com mulheres, irmãs e até mães de presos como pagamento por dívida de drogas. 

    Tem muitos relatos em presídios que falam dessa prática. O que eu escutei, quando fiz a minha pesquisa, é que o PCC teria acabado com esse tipo de prática. Eu não coloco a minha mão no fogo. Não cheguei a me aprofundar nessa análise.

    Delegada Cristina Bento denunciou oito suspeitos por estupro coletivo | Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
    Delegada Cristina Bento denunciou oito suspeitos por estupro coletivo | Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

    Além de machistas, os comandos também são homofóbicos?

    Absolutamente homofóbicos. Os homossexuais não são aceitos no crime e não participam de qualquer processo decisório dentro da prisão. Em algumas unidades prisionais, as lideranças admitem a presença desses presos, desde que fiquem “no lugar deles” – todos os que são identificados como homossexuais são confinados a uma única cela para não “contaminar” os demais. Em outras unidades prisionais, não se aceita. Isso revela também como, na cultura brasileira, o machismo vem acompanhado de uma das suas faces, que é a homofobia.

    E mostra com é errada a ideia de que o crime e os criminosos vêm de fora da sociedade ou do sistema. Eles são parte do sistema e da sociedade.

    Eles não representam de forma alguma uma alternativa libertária, uma alternativa de luta contra a opressão do Estado. Existe o traficante que faz a mediação de conflitos nas comunidades e isso é positivo, mas a gente não pode virar o rosto para as outras características, que estão muitos presentes. As comunidades e os presos sofrem com os dois canais de opressão que atuam de forma conjunta: o Estado e os grupos de criminosos.

    O que mais me chocou, nessa história do Rio, foi ver policial dizendo nas redes sociais  que a menina inventou o estupro e usando como argumento o fato que, se o crime fosse real, os traficantes teriam matado os estupradores.

    Nisso a gente vê como policiais e bandidos compartilham concepções. Há uma oposição de identidades que se confrontam, mas muitos valores são compartilhados entre eles.

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