Especial Assédios na PM: “Na polícia, tudo tem um preço”

    Coronel da PM do Paraná obriga soldada a manter relações com ele para não ser transferida para uma cidade distante

     

    Ilustração: Junião/Ponte Jornalismo


    Em apenas um ano na PMPR (Polícia Militar do Paraná),
    Alice* foi vítima de uma série de assédios morais e sexuais, que, segundo ela, “são constantes no dia a dia da profissão” e, no estado onde trabalha, as policiais militares são tratadas “ou como putas ou como lésbicas”.

    Especial Assédios na PM – Parte 1: Mulheres são vítimas todos os dias

    Com a voz por vezes embargada e carregada de dor, a soldada de 30 anos conta a Ponte com dificuldade sobre a triste experiência que vivencia: de duas em duas semanas, ela se vê obrigada a manter relações sexuais com um superior hierárquico para não ser transferida para uma cidade distante de seus filhos.

    Assédios têm início na formação

    Na primeira vez em que foi vítima de abuso, Alice sofria de uma intensa cólica menstrual e pediu ao sargento responsável pelo grupo para se retirar, explicando que estava passando mal. O superior então a colocou diante dos três pelotões — com 70 homens e 10 mulheres — e obrigou-a a dizer em voz alta para os 80 colegas o motivo pelo qual não se sentia em condições de praticar atividades físicas naquele dia.

    “Eu me senti muito constrangida, muito humilhada. Ficou aquela conversinha e ele falando pra todo mundo: ‘é por isso que não deve ter mulheres na instituição militar; qualquer coisinha, uma cólica e elas já se acham no direito de fazer corpo mole; se elas querem igualdade precisam ser tratadas que nem homens’. E esse tipo de humilhação era constante”, conta.

    Era só o começo de uma sequência de abusos que Alice e as colegas sofreriam na instituição. Quando teve início o período de estágio, as mulheres trabalhavam nas ruas e, ao retornar, ainda eram obrigadas a realizar faxina. “Não tínhamos folga, eles não respeitavam nosso descanso. No tempo de escola a gente sempre sofreu muito assédio moral”, relata.

    “A gente não tem voz dentro da polícia”

    Ao queixarem-se sobre os assédios a que vinham sendo submetidas à Coger (Corregedoria Geral da PMPR), a situação piorou. “Eles não buscam investigar a situação. Primeiro eles repassam para o comando da unidade. E quando várias pessoas além de mim denunciaram, nossos superiores colocaram a gente em forma, éramos alunas ainda, e disseram: ‘olha, vocês estão denunciando, achando que está ruim porque estão fazendo faxina e trabalhando na rua, saibam que as coisas vão ficar piores’. E realmente ficaram”, recorda.

    Depois disso, elas nunca mais realizaram denúncias ao órgão, por medo de represálias. “Eles nos tratavam como lixo. Então o órgão perde a credibilidade. Você não tem coragem de denunciar, porque parece que eles não respeitam o anonimato: você denuncia e, no dia seguinte, o cara sabe que você denunciou e passa a te tratar dez vezes pior do que antes da denúncia”, afirma.

    Isso ocorre, principalmente, segundo Alice, porque os assédios graves são praticados por superiores, na maioria das vezes. Trata-se de um cenário em que se evidenciam as relações de poder da pior maneira possível. Para ela, a realidade das mulheres na PM poderia ser transformada se houvesse um contingente feminino maior na instituição dominada por homens e se aquelas que alçarem posições mais elevadas na hierarquia (as oficiais) lutassem ao lado das praças contra o machismo.

    “A gente não tem voz dentro da polícia. Infelizmente, as mulheres que são superiores, oficiais, não fazem questão de lutar por nós. Não sei se elas sofrem abusos também como oficiais, mas não fazem nenhuma questão de lutar por nós, que somos praças”, conta a soldada.

    “Somos divididas em putas e lésbicas”

    Alice afirma não conhecer a realidade das policiais militares de outras regiões do país, mas sobre a realidade que conhece bem, crava: “Aqui no Paraná, a policial militar ou é puta ou é lésbica. É assim que a gente é vista e tratada, dentro e fora da instituição”.

    Sete anos atrás, um tia sua suicidou-se depois de uma década na Polícia Militar. Na pequena cidade onde ela atuava havia, na época, cerca de cinco mulheres na instituição, segundo Alice, que atribui o fato aos assédios sofridos pela tia entre 1997 e 2008.

    “Na época dela, havia muito assédio e quando eu entrei pensava que aquilo não existia mais. Sabia que havia ainda muito assédio moral, mas assédio sexual como é hoje, explícito desse jeito, eu não esperava. Eles não têm o mínimo pudor de disfarçar que estão em cima das mulheres”, afirma.

    O machismo de cada dia

    O cotidiano de trabalho das mulheres na PM é duro. Segundo Alice, os homens fazem comentários machistas constantemente. “Eles desqualificam muito a gente. Dizem que não gostam de trabalhar com mulher, acham que a gente não tem capacidade de trabalhar na rua. Alguns dizem que é preocupação, mas não é não. Eles querem que a gente fique fazendo serviço interno e cafezinho”, conta.

    Dias atrás, enquanto ela fazia uma ronda com um colega, houve um assalto a um posto de gasolina e, ao encontrarem o autor do crime, o policial “bateu muito no menino”, segundo ela, que pedia repetidamente para ele parar.

    “O menino estava passando mal e eu querendo levá-lo ao hospital. Na hora ele concordou e depois disse: ‘é foda, por isso é que eu não gosto de trabalhar com mulher, fica cheia de mimimi, com dozinha de vagabundo’. Não entendeu que era questão de bom senso, de humanidade. Ele pegou o cara, não precisava bater”, conta. O jovem agredido era negro e pobre, como a maioria das vítimas de violência policial.

    “Se eu recebo uma cantada por parte de colegas que estão no mesmo nível que eu, não me sinto constrangida, porque sei que posso dizer que não gostei, que tenho esse direito. Mas quando vem de um superior é complicado, porque você sabe que não pode falar nada. E é vergonhoso dizer isso, pra mim e para as colegas que passam por isso, mas às vezes é mais fácil aceitar um assédio do que tentar levar alguma coisa pra frente e sofrer as consequências. Porque no final é sempre a gente que sai perdendo. É muito complicado”, desabafa ela, que há meses vive uma das situações mais dolorosas que já enfrentou.

    O preço mais alto

    O primeiro assédio sexual aconteceu quando Alice pediu para fazer uma troca na escala de serviço e o coronel responsável pelas escalas lhe disse, passando a mão em seu ombro: “a gente pode conversar e fazer essa troca, mas uma coisa que você precisa aprender aqui dentro da polícia é que tudo tem um preço e, se hoje eu faço uma coisa pra você, amanhã você faz outra pra mim”.

    O preço seria alto. “Ele deixou claro que poderia me transferir para um lugar bem longe e que ficaria a meu encargo poder trabalhar perto de casa. Que ele poderia me colocar do lado de casa ou a 300 quilômetros de distância. Foi uma situação horrível”, relata.

    Com medo, a jovem policial recuou. Em represália, o comandante do batalhão a transferiu para uma cidade a mais de 200 quilômetros de onde ela vive com os três filhos. Com saudade da família, viu-se obrigada a ceder às investidas do assediador para ficar perto dos filhos.

    “Eu não suportava mais ficar longe da minha família”, diz. “Quando ele me fez a proposta, meu primeiro sentimento foi de medo de dizer não. Depois, de nojo. É horrível uma pessoa por quem você não sente nenhuma atração te tocando. É muito horrível”, desabafa a policial, que nesse momento começa a chorar. “Me senti muito triste. É horrível, horrível”, repete, a voz embargada.

    Casado e cerca de 20 anos mais velho, o comandante obriga a soldada a manter relações sexuais periodicamente com ele. “De duas em duas semanas ele me procura e eu não consigo nem mentir pra ele: eu digo pra ele que estou trabalhando e ele fala que sabe a minha escala e meus dias de folga. Ele nunca me perguntou se pode vir me ver na minha cidade. Ele fala ‘vou tal dia e te busco tal hora na sua casa’. O que eu posso falar? Nada”, lamenta a policial.

    Como se não bastasse, ela ainda é mal vista por colegas, que pensam que ela tem um caso com um chefe para ter vantagens. O que ninguém conhece, entretanto, é a sua dor. Por causa disso, Alice não consegue se relacionar com outros homens, por exemplo, ter um namorado. Ela diz sentir medo e sua maior esperança é que seu algoz “enjoe” dela.

    Está estudando para concursos e sonha em sair da polícia. “Eu tenho muita vontade de sair da polícia, mas preciso fazer um concurso antes, não posso largar tudo, perder tudo. É o sustento da minha família. É horrível. A gente sofre muito. Já me senti muito deprimida, de não querer ir trabalhar, mas não posso desistir, infelizmente”, lamenta.

     

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