Especial Palestina: As jornadas exaustivas de quem quer apenas trabalhar

    Imagine acordar de madrugada, passar horas numa fila e ser revistado, tudo isso para chegar ao seu local de trabalho — é a rotina de milhares de palestinos na Cisjordânia

    O palestino Shady com sua barraca em frente ao posto de controle de Tayyba | Foto: Paepi

    Por volta das 3h, homens se reúnem em volta de barracas que vendem café, cigarros, pães e kebabs, enquanto centenas de pessoas já entraram na fila e aguardam de pé a abertura do checkpoint (posto de controle). At Tayba é um dos principais pontos de passagem de trabalhadores do norte da Cisjordânia para o lado israelense da barreira de separação. No dia mais movimentado da semana, domingo, quase 2000 pessoas chegam a atravessá-lo por hora.

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    Cerca de 30 mil palestinos possuem autorização (permits) para trabalhar em Israel e outros 30 mil em assentamentos israelenses na Cisjordânia, segundo a ONG Kav LaOved, que atua pelos direitos de trabalhadores vulneráveis. Eles trabalham na indústria, construção, agricultura e serviços, e fazem todos os dias a jornada exaustiva em busca de melhores salários em Israel. Existem mais de cem diferentes tipos de documentos que variam conforme o setor, mas a prioridade é dada a homens casados com mais de 24 anos. “É mais difícil para mim conseguir um permit. Se você é solteiro, os israelenses acham que quer arrumar encrenca pois não tem nada a perder”, diz o jovem palestino Imad.

    Complexo do checkpoitn At Tayba, visto de cima | Foto: Dani Ferreira/Ponte Jornalismo

    Existe uma cota anual de permits emitidos e os empregadores por vezes são os donos da documentação. Assim, eles possuem autorizações que podem ser usadas durante o ano todo e cancelam o documento quando não precisam mais dos empregados. Por isso, é comum palestinos terem a passagem negada em checkpoints porque não foram avisados do término do vínculo com o empregador. A vulnerabilidade a que esses trabalhadores estão sujeitos facilita a exploração e recebimento de baixos salários.

    Além disso, pelas dificuldades em se obter a documentação, palestinos também podem permanecer ilegalmente em Israel. Dia’a, de 21 anos, conta que trabalhou no setor de construção e que não saía do local de trabalho para não ser pego pela polícia. “Havia um homem que nos ajudava a atravessar o muro. Eu fiz isso várias vezes. Tudo que precisávamos, comida e roupas, ele levava para nós. Mas, da última vez, fui pego e fiquei preso por três meses”, conta. Agora ele trabalha em Ramallah, mas está insatisfeito com o emprego. “Ganho pouco, mas Ramallah é onde se pode encontrar os melhores empregos na Palestina. É a única opção agora, para onde mais eu posso ir?”

    Composta apenas por mulheres, outra ONG israelense, a Machsom Watch, tem como objetivo principal o monitoramento de postos de controle. As voluntárias acompanham a abertura de diversos checkpoints e portões agrícolas, e entram em contato com autoridades israelenses para reportar problemas e tentar resolver entraves burocráticos. “A coisa que eu mais odeio no mundo é acordar às 2h para ir a um checkpoint. Isso acaba com o meu dia. Faço isso porque é um trabalho necessário”, diz a voluntária Hannah Barak. A Machsom Watch também auxilia palestinos na busca por informações sobre permits recusados e na remoção de nomes das listas de pessoas que têm autorizações previamente recusadas. Afinal, “a burocracia fala hebraico e os homens falam árabe”, segundo Hannah.

    De madrugada, palestinos aguardam abertura do checkpoint At Tayyba | Foto: Paepi

    Checkpoints da Linha Verde são diferentes das portas agrícolas, pois são terminais construídos para comportar a passagem de número muito maior de pessoas. Em At Tayba, palestinos se aglomeram nos corredores fechados até o teto com grades. Alguns, curiosos ou entediados, apenas olham os estrangeiros parados do lado de fora; outros gritam frases como “vejam como somos tratados”, “por favor, contem ao seu país o que acontece aqui” ou “isso é a Palestina”. Uma sirene toca e, quando as catracas são liberadas, muitos correm para chegar ao outro lado depressa: não há transporte público para eles, então devem estar no horário e local combinados para utilizar carros que estão esperando. No caminho, chutam as latas que utilizavam como bancos enquanto esperavam na fila.

    Segundo relatos de trabalhadores que utilizam o checkpoint, At Tayba é totalmente mecanizado e há pouco contato com funcionários, a não ser quando as pessoas são levadas para inspeção. Após um longo corredor, há diferentes bloqueios dentro do terminal que podem variar em número dependendo das portas em funcionamento. Ao chegar na última etapa, colocam o documento em um leitor. Por vezes, uma falha na máquina  na máquina recusa a entrada do trabalhador e eles dizem que não há a quem recorrer. Devem voltar pelo mesmo caminho e passar pelas centenas de pessoas que esperam atravessar as primeiras catracas. Alguns pulam as grades para sair com mais facilidade.

    Mulheres vivenciam muito desconforto nos momentos de superlotação. Em At Tayba existe uma fila humanitária para idosos, crianças e pessoas com deficiência que é utilizada pelas mulheres. Entretanto o grande número de pessoas não permite que a exclusividade seja mantida. “São dias difíceis… às vezes nos vemos no meio dos homens, é uma situação dura para mulheres. Os homens também usam a fila das mulheres e deixam a gente passar na frente. Mas quando há muitas pessoas, eles não podem abrir passagem”, diz a palestina Hana. Há cinco anos ela utiliza o checkpoint At Tayba e costuma acordar às 2h para iniciar a viagem ao trabalho, onde fica até 14h. Hana diz que dorme quatro ou cinco horas por dia.

    “É uma situação muito ruim. Tem o problema de muita gente lá dentro. E tem uma máquina, eles checam as mulheres com essa máquina e podem ver o corpo delas. Às vezes são soldados homens”, afirma a trabalhadora Samar. Revistas ocasionais não são exclusividade do checkpoint At Tayba. Ao atravessar outro grande posto de controle, o Qalqiliya North, a palestina Suhad conta que passou por revista em uma sala. “Pediram que eu tirasse minhas roupas e ficasse muito tempo esperando em uma sala gelada. Eu prometi para mim mesma que nunca mais passaria por aquele checkpoint, não importa o que aconteça”.

    Palestino mostra uma das barracas destruídas por militares no checkpoint At Tayyba | Foto: Paepi

    As restrições que Israel impõe foram desenvolvidas gradualmente até chegarem ao complexo sistema de documentação utilizado atualmente, que é sujeito ao contexto político da região. Por exemplo, durante a onda de violência iniciada em outubro de 2015, houve o cancelamento de autorizações de trabalhadores mais velhos. Qualquer pessoa que tinha um filho ou irmão na cadeia entrou na lista de nomes recusados, segundo a Machsom Watch. Relatório da instituição afirma que tal política não tinha como objetivo levar segurança a Israel, mas atingir “punição e vingança”.

    Oslo e o território fragmentado

    O sistema de autorizações dificulta a circulação de palestinos entre os territórios da Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Faixa de Gaza. Os entraves burocráticos somam-se aos físicos: contagem da OCHA (Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários) feita em 2014 indica um total de 490 obstáculos dispostos em toda a Cisjordânia. Esse número não inclui terminais da Linha Verde como o At Tayba, Qalqiliya North, 300 ou Qalandiya. Os obstáculos podem ser checkpoints parciais, que têm a estrutura física construída e soldados presentes ocasionalmente; checkpoints onde sempre há soldados checando documentação quando julgam necessário; cancelas que fecham a entradas de vilas; bloqueios de estrada feitos de blocos de concreto; cercas que protegem estradas exclusivas a assentamentos; e montes de terra que fecham o acesso de vias palestinas a estradas.

    Cancela utilizada por militares para fechar o acesso à vila de Haris | Foto: Dani Ferreira/Ponte Jornalismo

    A vila de Shufa, na área de Tulkarm, é dividida por um checkpoint operado por soldados seis dias por semana. Parte da vila é situada em algumas colinas e é conectada à parte mais baixa (“Izbat Shufa”) por uma estrada que passa ao lado do assentamento de Avne Hefez, onde moram judeus ortodoxos. Apenas palestinos que têm identidade da vila de Shufa podem atravessar o checkpoint. Pessoas de outras vilas ou estrangeiros só podem ir a Shufa aos sábados, quando não há soldados no posto de controle checando a documentação.

    Abu Omar, morador de Shufa, conta que de um lado da vila está a escola primária e do outro a secundária — os estudantes precisam passar pelo checkpoint todos os dias. “Os colonos estão fazendo isso, estão dividindo uma vila”. Segundo ele, desde agosto de 2016 há um campo de treinamento militar ao lado de Shufa – os moradores ouvem os tiros, mas não há avisos indicando que a área é utilizada com fins militares e, portanto, perigosa a quem se aproximar. Quando a reportagem da Ponte esteve na vila, no ano passado, havia soldados no checkpoint e um helicóptero sobrevoava o campo militar em baixa altitude.

    Em azul e branco está marcado o checkpoint que divide a vila de Shufa (OCHA)

    Shufa é afetada pelos assentamentos ao seu redor e exemplifica os resultados dos Acordos de Oslo, que dividiram os territórios palestinos na Cisjordânia em áreas A, B e C. Após tentativas de acordos promovidas pelos EUA terem fracassado, um canal de diplomacia secreto foi aberto entre os israelenses, liderados por Yitzhak Rabin, e palestinos, liderados por Yasser Arafat. O acordo surgiu como uma surpresa para ambas as sociedades e, em setembro de 1993, Arafat e Rabin assinaram em Washington a “Declaração de Princípios”. Em setembro de 1995, “Oslo II” foi assinado, transferindo o controle de 30% da Cisjordânia para a recém-criada Autoridade Nacional Palestina (ANP).

    As grandes cidades, como Ramallah, Qalqiliya, Nablus, Belém, Tulkarm e Jenin (Hebron tem acordo de paz específico assinado em 1997) foram definidas como área A, onde a ANP tem controle civil e militar do território – cerca de 3% da Cisjordânia. A maioria das áreas rurais estão na classificação “B”, onde a ANP tem o controle civil e Israel teria o controle militar até 1997. O restante da Cisjordânia – cerca de 60% – permaneceu como área “C”, onde Israel tem o controle civil e militar. A ideia inicial dos acordos seria a transferência gradual do território para a ANP. Entretanto, diversos fatores levaram ao fracasso de Oslo, incluindo ações de grupos palestinos e o fortalecimento de grupos da extrema direita em Israel — Rabin foi assassinado em novembro de 1995 por um estudante israelense.

    Assim, Shufa é uma vila palestina cercada por terras classificadas como “área C”, onde há assentamentos e campo de treinamento militar, como em vários outros pontos da Cisjordânia. Não existem sinais físicos demarcando a entrada de uma área a outra, com exceção das placas nas vias indicando a cidadãos israelenses a aproximação de áreas A: “Esta estrada leva a área A, sob autoridade palestina. A entrada para cidadãos israelenses é proibida, perigosa a suas vidas e contra a lei israelense”.

    Atualmente, a extrema vulnerabilidade de palestinos que vivem na “área C” traduz o que Oslo se tornou na prática. Ordens de demolição ou de interrupção de obras são frequentes, pois é extremamente difícil para palestinos conseguirem autorização para construir ou ampliar suas casas. Além disso, a fragmentação do território aumenta o controle de Israel em relação a serviços básicos, como distribuição de água. Segundo a OCHA, a maior parte da área C “foi alocada para o benefício dos assentamentos israelenses ou para o exército de Israel, às custas das comunidades palestinas”. De acordo com a entidade, “isso impede o desenvolvimento de moradia, infraestrutura e produção de renda das comunidades palestinas, e tem consequências significativas para toda a Cisjordânia”.

    Entre janeiro e outubro de 2016, 986 estruturas foram demolidas por autoridades israelenses na Cisjordânia, segundo a OCHA. Comunidades beduínas da região do Mar Morto e do vale do rio Jordão e palestinos de Jerusalém Oriental estão entre os grupos mais afetados por ordens de demolição. Em fevereiro deste ano, todas as 40 casas da vila beduína de Khan al-Ahmar, próxima ao assentamento de Ma’ale Adumim, receberam ordens de demolição. Tais ordens podem atingir até mesmo o comércio ao redor de checkpoints. Em novembro de 2016, cerca de 10 barracas do comércio de At Tayba foram demolidas por militares porque estavam em “área não autorizada”.

    O vendedor Shady conta que as ordens de demolição foram deixadas embaixo de pedras e que os documentos davam um prazo de 24 dias para remoção do seu comércio. Após três dias, novas ordens foram deixadas dando um prazo de apenas 24 horas para retirada dos estandes. “Mas eles vieram poucas horas depois disso. Por volta das 21h demoliram tudo”. Outro comerciante, Mouyd, conta que sua barraca ficava no estacionamento e não na entrada do checkpoint. “Eles nem podiam demolir meu estande, mas demoliram mesmo assim. Eu nunca vou perdoá-los por isso”. Ele reconstruiu sua barraca e na tarde seguinte outra ordem de demolição foi deixada embaixo de uma pedra.

    O movimento e o comércio seguem nas madrugadas em At Tayba. Milhares de palestinos passam todos os dias pelos diversos checkpoints da Cisjordânia e voluntários continuam a monitorar as condições dos postos de controle. Em uma madrugada de setembro de 2016, do outro lado da cerca e em território israelense, três integrantes da Machsom Watch assistiam ao movimento dos trabalhadores passando pelas catracas. Uma delas iniciou a conversa com um bom dia e uma pergunta: “Não podemos atravessar. Como é aí do outro lado?”.

    Outro lado

    A Ponte entrou em contato com a embaixada de Israel no Brasil. O vice-cônsul geral em São Paulo, Fares Saeb, deu algumas respostas, publicadas na primeira parte do Especial Palestina, mas não respondeu às duas perguntas feitas pela reportagem sobre os controles implantados nos portões agrícolas:

    Os checkpoints, como o Qalandiya, próximo a Jerusalém, o 300, em Belém, e Qalqiliya North, no norte da Cisjordânia, por onde palestinas e palestinos atravessam todos os dias para trabalharem em Israel, são superlotados e têm péssimas condições de ventilação, submetendo pessoas a uma situação degradante e insegura. Como o governo de Israel se posiciona em relação a isso?

    A barreira de separação construída entre o território israelense e a Cisjordânia não segue a Linha Verde de 1949. Segundo a ONU, ao ser finalizada, a barreira terá 712km de extensão, enquanto que a fronteira estabelecida pela Linha Verde tem 323km. Ou seja, a barreira terá uma extensão mais de duas vezes maior do que a fronteira até então estabelecida. Além disso, 9,4% das terras palestinas na Cisjordânia serão cercadas por esse muro e estarão do outro lado. Tais fatores são causa de tensão entre israelenses e palestinos. O que o governo de Israel tem a dizer sobre os resultados dessas iniciativas na Cisjordânia?

    (*) A repórter Dani Ferreira viajou à Palestina como participante do Paepi (Programa de Acompanhamento Ecumênico na Palestina e em Israel)

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