‘Estatuto do armamento’ de Bolsonaro pode aumentar mortes, inclusive de policiais

    Para especialistas, alteração no Estatuto do Desarmamento é inconstitucional, gera descontrole na venda de armas e munições, prejudica as investigações de crimes e obriga o Estado a indenizar criminosos quando apreender suas armas

    O presidente da República, Jair Bolsonaro, assina o decreto que dispõe sobre a aquisição, o cadastro, o registro, a posse, o porte de armas | Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

    Em uma canetada, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) cumpriu sua promessa de campanha e flexibilizou o porte de armas no país. O texto do decreto 9.785/2019, publicado no Diário Oficial da União em 8 de maio, traz uma série de inconstitucionalidades e abre graves precedentes para o descontrole das armas e munições do país, o que pode levar a um aumento das mortes violentas, incluindo policiais, segundo dois especialistas ouvidos pela Ponte.

    Em janeiro, uma das primeiras medidas como chefe do Planalto foi ampliar a posse (que é ter a arma em casa ou no trabalho) sob a justificativa de que todo brasileiro teria “efetiva necessidade” de ter uma arma, desconsiderando o que já está previsto no Estatuto do Desarmamento que regulamenta essas questões e prevê o acesso ao armamento para grupos específicos.

    “Bolsonaro atendeu aos compromissos firmados com dois grandes atores que patrocinaram a campanha para a presidência da República: a indústria armamentista e os ruidosos criadores de opiniões das redes sociais”, afirmou o ex-investigador da Polícia Civil de São Paulo e escritor Roger Franchini, autor de Ponto Quarenta – a Polícia Civil de São Paulo para leigos (2009) e Matar Alguém (2014, Planeta), entre outros. Ao declarar que o decreto não é uma política de segurança pública, Bolsonaro por um lado isenta o ministro Sérgio Moro de qualquer responsabilidade no ato, além de fidelizar os eleitores cativos que são pró-armamentistas e que, em última análise, sequer se detiveram às consequências perigosas do decreto.

    O Ministério Público Federal entrou com ação na Justiça para que o decreto fique suspenso até a apreciação da constitucionalidade da proposta na Justiça, segundo o UOL. A assessoria de imprensa da presidência foi procurada, mas não retornou até a publicação da reportagem.

    A Ponte destaca alguns pontos do texto que Bolsonaro precisa explicar para todos nós.

    1 – Inconstitucional: legislando por decreto

    O Estatuto do Desarmamento (lei federal 10.826, de 2003) é a norma que atualmente regulamenta o uso de armas no país. Para os especialistas ouvidos pela Ponte, o decreto se sobrepõe, em muitos artigos, à legislação vigente e por isso é inconstitucional. Alterações como essa não poderiam ser decididas num decreto presidencial, mas precisariam ser aprovadas pelo Congresso. A lógica mudou: antes era uma lei de controle, de valorização da vida. Agora é de liberação e até de uma “idolatria pelas armas de fogo”, como aponta Bruno Langeani, gerente de sistema de justiça e segurança pública do Instituto Sou da Paz.

    Ele cita, como exemplo, o artigo 6º do Estatuto de 2003 que regulamenta quem pode usar arma: “é proibido porte de arma em todo território nacional, salvo os casos previstos em legislação própria e para: integrantes de forças armadas e de polícia”. Ao abrir para mais categorias como caminhoneiros, advogados e jornalistas, Bolsonaro passa por cima da lei. “A única possibilidade que o Estatuto dava pra porte é se a pessoa comprovasse individualmente essa necessidade. A verificação tem que ser individual, afinal você não pode dizer que todo jornalista que trabalha com segurança pública precisa de arma, assim como todo advogado, e assim por diante”, explica.

    “Todo policial ‘recrutinha’ conhece a regra: somente duas pessoas devem usar armas, o policial ou o bandido”, afirma o ex-investigador da Polícia Civil e escritor Roger Franchini. Para ele, o decreto é totalmente eleitoreiro, não tem embasamento em pesquisas técnico-científicas e atende a uma vontade exclusiva do presidente, que jogou no lixo qualquer rito processual legislativo necessário a alterar leis como essa. “O presidente utiliza decretos com o objetivo de violar a ordem legal vigente e de conseguir, assim, aprovar medidas que jamais seriam conseguidas se fossem submetidas ao rigor das instituições democráticas, com evidente subversão e desvio da função jurídica para o qual se acha especificamente vocacionada essa modalidade de ato normativo”, aponta Franchini.

    O escritor avalia que o decreto do porte fecha o ciclo iniciado em janeiro, quando o presidente assinou a ampliação da posse de armas, “de duvidosa constitucionalidade”. Legislar por decreto é autoritário, argumenta. “O decreto, como instrumento de inovação da ordem legislativa, somente foi usado nos momentos mais violentos da sociedade, em que inexistiam instituições garantidoras das liberdades individuais e sociais, como foi no Estado fascista italiano e seu decreto-legge [decreto-lei, ou seja, feito pelo Executivo que tem força de lei], e no Brasil com os decretos-leis, vigentes durante o Estado novo e a ditadura militar da segunda metade do século XX”, diz.

    2 – Mais risco de violência contra os policiais

    O decreto aumenta o acesso a calibres que antes eram restritos às forças armas e agentes de segurança e permite que o cidadão comum compre 5 mil munições por ano — antes eram 50.  Já para as polícias, que antes poderiam comprar 600 munições por arma, não há mais controle. Se não há mais restrição de calibres e se há um aumento na possibilidade de comprar munições, policiais vão correr risco de encontrar civis, por exemplo, com um poder de fogo maior do que o deles. “Uma arma padrão das polícias é a pistola .40 e você vai ter outras, como a 9mm, o revólver 44, que são mais potentes, nas mãos dos civis. No dia a dia dos policiais, eles vão se deparar mais com esse tipo de calibre e muitas vezes eles estarão com o poder de fogo menor que o cidadão. No atendimento de casos como briga de vizinho, briga em bar, briga de casal, eles vão poder se deparar com cidadãos com esse tipo de arma”, analisa Bruno Langeani, do Instituto Sou da Paz.

    Langeani alerta para a facilidade da formação e fortalecimento das milícias e grupos de extermínio. “Você vai ter um civil comprando essas 5 mil munições, não justificando como ele usou e no ano seguinte ele vai poder comprar mais 5 mil. Se alguém tiver mal intencionado, um policial corrupto, por exemplo, quiser fazer o desvio dessas munições, é difícil a polícia identificar esse desvio e essas pessoas. É uma brecha gigantesca para aumentar o mercado de munições ilegais”, avalia. 

    3 – Investigações comprometidas

    Um dos muitos elementos que compõe o conjunto de provas da cena de um crime é a munição. O decreto, além de extinguir a necessidade de marcação, ao ampliar os tipos de calibre que podem ser utilizados pela população em geral, vai bagunçar esse processo de investigação criminal. “Quando você tinha um crime, dependendo do tipo de munição, isso já era uma pista para pelo menos saber onde começar a investigar. As chacinas aqui em São Paulo, por exemplo. Se você chega na cena e tem munição calibre .40, o DHPP [Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa] já abre a possibilidade de participação de policiais militares no crime, porque você tinha um calibre de uso restrito, que era um calibre por convenção da polícia estadual”, pontua Langeani.

    No caso da investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco, em março do ano passado, foi a mesma coisa: a partir do momento em que se identificou que ela foi morta com 9mm, as possibilidades foram se estreitando.

    Com experiência na área de investigação da Polícia Civil de São Paulo, Roger Franchini concorda com Langeani. “A munição que abastece o crime não vem do estrangeiro, ela é predominantemente nacional. A lei obriga somente que as munições vendidas para os órgãos de segurança pública sejam fabricadas com algum mecanismo que denuncie sua origem e, por consequência, de alguma forma, identifique o atirador. Considerando as precárias condições de nossas polícias investigativas estaduais, não é possível saber se dificultar seus trabalhos foi algo intencional ou somente outro erro grosseiro do presidente”, critica.

    4 – Mais armas, mais violência

    Para Bruno Langeani, do Instituto Sou da Paz, o decreto ameaça a vida de todos, inclusive de quem não quiser comprar uma arma. “Na medida em que vai ter caminhoneiro, advogado, agente de trânsito armado, as pessoas, mesmo aquelas que dizem que não querem armas, que não querem falar do assunto, vão sofrer dessa violência, mesmo não estando armadas. Vai aumentar o número de tiroteio, de caso em que a pessoa está num restaurante,na porta de balada, sai uma briga, e a pessoa vai querer resolver dessa forma, com a arma e sem o necessário preparo”, explica.

    O aumento das armas em circulação vai aumentar também a oferta de armas a serem furtadas ou roubadas, dentro e fora de casa. Langeani conta que uma recente pesquisa realizada com o Ministério Público de São Paulo apontou que 38% das armas apreendidas em crimes de roubo e homicídio tinham registro, ou seja, já tinham sido legalizadas. “Na medida em que você amplia o número de armas e o tipo de armas que a população pode ter, você vai ter um número de armas crescente no mercado ilegal. Você pode ter certeza que o crime estará mais armado com o decreto do Bolsonaro”, pontuou.

    “É uma matemática rudimentar: havendo mais oferta de armas e munições, seu preço diminuirá para o consumidor final e elas se tornam mais acessíveis tanto ao tiozinho pagador de impostos quanto ao gerente de uma biqueira. E qual dos dois tem know-how em tomar a arma de outra pessoa? Quem tem mais chances de perder a vida em um confronto? Quem aborda de surpresa ou quem é abordado sem perceber? Não há argumento racional que consiga defender a ampla liberação das armas, como ora se pretende fazer”, questiona o ex-investigador da Polícia Civil Roger Franchini.

    5 – Quem matar pode ser indenizado pelo Estado

    O artigo 14 do decreto chama atenção de Bruno Langeani para o que ele definiu como “resposta bizarra” à lógica do armamento. O texto diz que quando o Estado apreender uma arma de alguém que cometeu um crime e responde a um processo judicial, essa pessoa terá o direito ao ressarcimento da arma. “Por exemplo: se um homem comete feminicídio contra a companheira, ele é julgado, condenado e, depois disso tudo, terá o direito de receber em dinheiro o valor da arma usada no crime. É bizarro isso”, afirma Langeani.

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