Estupros continuam alarmando, mas delegacias especializadas estão sucateadas

    “A mulher está ali no limite; machucada física e psicologicamente, ela decide fazer a denúncia dolorosa do estupro… Mas, sem encontrar um ambiente profissional acolhedor e humanizado, muitas vezes ela desiste”, diz secretária Municipal de Políticas para as Mulheres, Denise Motta Dau, ao se referir sobre o serviço prestado pelas Delegacias de Defesa da Mulher de SP
    Delegacia da Mulher
    Delegacia da Mulher – Ilustração: Junião/Ponte Jornalismo

    Não são apenas os índices de roubos e homicídios que assustam no Estado de São Paulo. A violência contra a mulher possui números também alarmantes, principalmente em relação ao estupro, incluindo tentativas e estupro consumado, quando há conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça. Mas aquelas que seriam as principais armas de auxílio às vítimas e de investigação sobre os agressores, as Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs), estão sucateadas.

    Os números de violência contra a mulher disponíveis no site da Secretaria de Segurança Pública, expõem uma ferida capaz de deixar incrédulo quem luta pelos direitos das mulheres. Em 2014, entre os meses de janeiro e outubro foram registrados 1.948 casos de estupros em delegacias da capital. Deste número absoluto apenas 50 casos foram registrados em DDMs, ou 2,6% do total. No mesmo período de 2013, foram 2.510 casos registrados em todas delegacias da cidade, sendo 473 nas delegacias especializadas, ou 18,8% do total.

    Para tornar ainda mais evidente o papel decrescente que as Delegacias da Mulher tem tido na repressão à violência de gênero, em 2012, São Paulo teve registrados 2.647 casos de estupro entre janeiro e outubro, dos quais 651 só nas DDMs –24,6% do total.

    As Delegacias de Defesa da Mulher foram criadas em 1985. Tratava-se de criar um serviço especializado, que desse conta da especificidade dos crimes de gênero, fortemente ancorados na estrutura social e na moral patriarcais.

    Não raro, as vítimas dessa modalidade de agressão sofrem duas vezes: a violência em si e o julgamento condenatório da sociedade (“Por que estava com roupas provocantes?”; “Por que não estava em casa àquela hora?”; “Por que bebeu?”; “Por que deu bola para o rapaz?”).

    Para piorar, na maioria das vezes, o agressor é alguém próximo da vítima: um vizinho, o pai, padrasto, o marido, o companheiro, o irmão, o colega de escola, o professor –é difícil denunciar o inimigo tão próximo, que muitas vezes exerce um domínio financeiro, social ou familiar.

    Para escutar as vítimas com mais sensibilidade, as Delegacias da Mulher, espalharam-se pelo bairros de São Paulo. Atualmente, são nove DDMs em que é possível registrar ocorrências.

    “A delegacia não funciona 24 horas por dia e não há esquema de plantão. Se uma jovem for estuprada num final de semana, por exemplo, ela não poderá esperar até segunda para elaborar uma ocorrência. Nove delegacias é pouco para a capital”, afirma Ana Paula Levin, coordenadora Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher.

    Seria também função dessas delegacias, encaminhar as vítimas para os serviços médicos e de apoio psicológico, já que é conhecida a cadeia de danos que o estupro acarreta na vida da vítima, como o estresse pós-traumático, transtornos de comportamento, gestações indesejadas e doenças sexualmente transmissíveis.

    Para o psicólogo Luiz Henrique das Dores, de 24 anos, o estupro está associado ao machismo. “Acredito que o estupro tem uma relação muito íntima com o machismo, tanto que, muitas vezes após o estupro a mulher é colocada como culpada, por usar roupas apertadas, e estuprador é colocado como uma vítima que não resistiu ao corpo dela. O estupro é uma inversão de valores em que o homem acha que é dono do corpo da mulher. E muitas vezes a sociedade compactua com isso”, pondera.

    Gravíssimo, portanto, é que, no exato momento em que o número de agressões permanece num nível elevado, os números de registros de ocorrências realizados pelas DDMs mostrem que elas estão sofrendo uma espécie de desmonte…

    Veja-se o exemplo concreto da 2ª DDM, que funciona no mesmo prédio da 16° DP (Vila Clementino). Até outubro, a delegacia convencional registrou 15 crimes contra a mulher. Enquanto isso, a DDM registrou apenas um (!).

    Em todo o ano de 2013, foram 18 casos na delegacia convencional e 40 na DDM. Em 2012, foram 10 na delegacia comum e 65 na especializada.

    Na visão da defensora pública Ana Paula Levin, coordenadora Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher, a queda nos registros de queixa na Delegacia da Mulher pode estar ligada a diversos fatores, como horário de funcionamento e preparo para exercer tal função.

    “A delegacia não funciona 24 horas por dia e não há esquema de plantão. O atendimento também é criticado por quem o procura. A mulher agredida não pode esperar por muito tempo para fazer denúncia e ser atendida. É algo de momento, na hora. Se uma jovem for estuprada num final de semana, por exemplo, ela não poderá esperar até segunda para elaborar uma ocorrência. Nove delegacias é pouco para a capital”, conclui Ana Paula.

    Na mesma linha de pensamento da defensora, a secretária municipal de Políticas para as Mulheres, Denise Dau, também pondera sobre o horário de funcionamento das unidades. “Nós [a secretaria] recomendamos três aperfeiçoamentos à Delegacia da Mulher: uma melhor capacitação do pessoal, porque a mulher está em uma situação de fragilidade então é preciso que não seja reproduzida uma violência institucional contra a pessoa que já passou por violência; a ampliação do horário de funcionamento, porque ela encerra o horário de funcionamento às 17h e isto é sentido pelas mulheres; e a abertura das delegacias durante os finais de semana.”

    “A mulher está ali no limite dela, ela decidiu fazer aquela denúncia com muito esforço e, se ela chega lá e não encontra um ambiente profissional, acolhedor, humanizado, ela desiste. Para nós, é muito importante que seja melhorado o atendimento. Se o poder público, ao invés de estar aberto, coloca obstáculos, isso não contribui para a vigência dos direitos da mulher”, afirma Denise.

    Como regra, as DDMs atendem apenas de segunda a sexta, das 9h às 18h ou 19h. Nos fins de semana e de noite/madrugada, que é quando acontece a maior parte dos ataques contras as mulheres, as DDMs estão fechadas. Na 2ª DDM, que cobre a zona sul, o atendente informou o horário de atendimento: “Das 9h às 19h, de segunda a sexta-feira. Mas advertiu: “Tem de chegar até as 18h, porque a procura é grande.”

    Detalhe importante: até outubro (dez meses de trabalho, portanto), essa DDM fez apenas um BO por estupro!

    Segundo pesquisa do Ministério da Saúde, elaborada em 2011, “no que se refere ao horário em que ocorrem os estupros, enquanto as crianças e adolescentes são atacadas com mais frequência no período de 12h às 24h, os crimes que afetam as mulheres adultos ocorrem mais frequentemente entre 18h e 6h da manhã”.

    A maior incidência do crime ocorrendo nos horários em que as DDMs encontram-se fechadas reforça a tese de que as delegacias especializadas fecharam as portas às vítimas da violência. Literalmente.

    OUTRO LADO

    A reportagem solicitou informações sobre a atuação das delegacias da mulher para a Secretaria de Segurança Pública, que não respondeu aos questionamentos. Seguem as perguntas feitas:

    1. Segundo os dados disponibilizados pelo site, em 2014 há uma grande queda em relação aos registros em DDMs. Foram mais de 400 em 2013 e menos de 50 em 2014. Há alguma explicação?

    2. As DDMs estão em funcionamento normal?

    3. Que instrução a SSP dá para as vítimas em caso de estupro?

    4. Qual a diferença entre procurar uma DDM e uma delegacia de bairro?

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