Gestão Covas esvazia aparelho de saúde que atende quase mil pessoas trans em SP

    Após privatização, funcionárias que atuam há 5 anos na UBS Santa Cecília foram removidas da unidade. “É uma grande falha ao nosso direito como cidadãos”, diz pessoa trans atendida no local

    Ilustração: Junião/Ponte

    Pessoas trans estão perdendo um importante aparelho de saúde na cidade de São Paulo: a Unidade Básica de Saúde Dr. Humberto Pascale, localizada na rua Vitorino Carmilo, na Barra Funda, região central da cidade. Desde 2015, na época da gestão de Fernando Haddad (PT), o equipamento atende mais de 900 pessoas trans, com serviços e acompanhamentos ginecológicos, psicoterapia e debates sobre sexualidade.

    Segundo funcionários da UBS, que não serão identificados, tudo começou após a UBS ser terceirizada e passar a ser coordenada pelo IABAS (Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde) durante a gestão do atual prefeito Bruno Covas (PSDB).

    Os profissionais que cuidavam das demandas da população trans foram direcionados para outros locais, sem nenhuma justificativa. O IABAS é investigada por corrupção nas gestões de Eduardo Paes e Marcelo Crivella, entre 2009 e 2019, na cidade do Rio de Janeiro. As três funcionárias que cuidavam das especialidades de endocrinologia, psicologia e ginecologia, foram removidas da unidade e permanecem na unidade somente até o fim de 2020.

    Para a cientista social Carolina Iara, recém-eleita covereadora de São Paulo, pela Bancada Feminista (PSOL-SP), a remoção das profissionais, que fazem um atendimento efetivo para população trans, é “um ataque direto aos direitos da população trans da cidade”.

    Carolina lembra que o atendimento no CRT (Centro de Referência e Treinamento) Santa Cruz, outro espaço importante no processo de hormonização para pessoa trans, não consegue suportar toda a população trans.

    “Vemos um serviço de atendimento à população trans sendo desmontado na cidade de São Paulo. Além disso é uma forma de precarizar o serviço e empurrar essa população ou para um serviço com menos qualidade ou centralizar o CRT na Santa Cruz, que vai afogar ainda mais o serviço de saúde de lá”, avalia.

    “É criminoso a prefeitura fechar os olhos para a gestão das unidades de saúde feitas pelas organizações sociais, elas não estão tendo a fiscalização necessária, fazem o que bem entendem. É muito importante que nos mobilizemos para impedir que essa população trans seja desassistida”, completa Iara.

    Leia também: Medicina transfóbica: as dificuldades do atendimento ginecológico para pessoas trans com vagina

    Symmy Larrat, presidenta da ABGTL (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos) e ex-coordenadora da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo, durante a gestão Haddad, critica o desmonte na UBS Santa Cecília, a primeira a realizar a hormonização para pessoas trans no país.

    “É muito ruim você trocar uma equipe que já trabalha com essa população. Essa desculpa da descentralização é uma desculpa que o governo tucano usa sempre, já foi feita com o Transcidadania, falaram que iam descentralizar, mas na verdade tiraram um acompanhamento personalizado que o programa fazia. Eles descentralizam, mas os lugares, os territórios, não tem suporte”.

    “Só três UBSs fazem a hormonização e estão no centro. Esse governo não deu continuidade à ampliação. É muito ruim você falar em descentralizar sem ter o preparo para que essas pessoas sejam acolhidas. Essa troca repentina só prejudica o cuidado e a atenção da população trans de São Paulo. Estamos falando de vidas”, completa Larrat.

    O comerciante Luan Souza Pirovani, 26 anos, procurou a Ponte, por meio da Mandata Quilombo, gabinete da deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL-SP), para denunciar o caso. Ele lembra que chegou “perdido” no primeiro atendimento que fez na UBS Santa Cecília, sem “nenhuma informação da minha verdadeira identidade”.

    “Quando cheguei na UBS Santa Cecília, lembro como se fosse hoje, mal sabia como fazer para iniciar tudo. Lá, fui orientado a fazer minha carteirinha e, no mesmo dia, marquei a primeira consulta com a endocrinologista, que me fez muitas perguntas sobre a questão da minha saúde e da minha vivência”.

    “A recepção foi maravilhosa, pois naquele dia tinha plena certeza que iria se iniciar minha nova vida e, claro, com uma grande profissional me orientando e cuidando principalmente que pra mim é o primordial minha saúde”, lembra Luan.

    Luan avalia que a UBS Santa Cecília é a maior referência da população trans para acompanhamento hormonal e, principalmente, acompanhamento psicológico. “Foi lá que iniciei meu processo todo e conseguir meus laudos para tão sonhada cirurgia”.

    “Além do grupo de acompanhamento terapêutico, também conseguimos nossos hormônios 100% gratuitos, pois, a UBS fornece, e a aplicação da medicação é feita com o próprio pessoal da enfermagem e os hormônios fornecido tem total credibilidade”.

    Leia também: Misoginia, transfobia e falta de dados: a equação do transfeminicídio

    Para Gabriel de Oliveira Lima, 34 anos, que também é atendido pela UBS de Santa Cecília, sem o atendimento, a população trans ficará “à deriva”. “O CRT ainda está abarrotado, outros locais são difíceis de entrar ou tem alguma restrição, como o Hospital das Clínicas que dá prioridade a menores de dezessete anos. Então teríamos que reiniciar todo o processo em uma fila de espera”.

    Gabriel reforça que é preciso conscientizar a população sobre a importância do atendimento para pessoas trans. “As travestis são marginalizadas, os transgêneros são tratados como se tivessem transtorno mental, sendo que é totalmente errônea essa afirmação desde sua criação. Na UBS temos um tratamento digno, que além da opção de remédio mais segura, nos dá acompanhamento e exames preventivos”.

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    O degustador André Bryan Martins de Lima, 31 anos, que é atendido há 4 anos no local, afirma que a saída das profissionais que cuidam do atendimento na UBS Santa Cecília é “uma grande falha ao nosso direito como cidadãos”.

    “Colocar profissionais inexperientes agrava nossa saúde física e mental, pois cada paciente já tem um progresso. Com o intuito do IABAS, de diminuição de gastos, o objetivo é de que o médico atenda no máximo 15 minutos, o que vai acarretar na diminuição da qualidade do atendimento, além de ser desumano. Essa não é a solução”.

    Outro lado

    A reportagem procurou a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria de Saúde e da Secretaria de Direitos Humanos, que se manifestou por meio de nota.

    “A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal da Saúde (SMS), informa que não há interrupção ou alteração nos atendimentos prestados na UBS Dr. Humberto Pascale (Santa Cecília) à população Trans, assim como a nenhum outro atendimento. A Unidade segue realizando e respeitando o que preconiza o Fluxo de Hormonização no Município de São Paulo, o qual orienta o acolhimento desta população, com todas as suas especialidades, por equipe Multiprofissional”.

    ATUALIZAÇÃO: Matéria atualizada às 16h49 do dia 23 de novembro de 2020 para inclusão do posicionamento da Prefeitura de São Paulo

    ERRATA: Inicialmente a reportagem afirmou que as profissionais foram exoneradas, mas, na verdade, elas foram removidas da unidade e encaminhadas para outros locais, sem explicação

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