‘Há na FMUSP uma cultura de repressão das minorias, de discriminação e violência sexual’, diz promotora de Justiça

    Em entrevista à Ponte, a promotora do Ministério Público do Estado de São Paulo, que investiga as violências ocorridas dentro da Faculdade de Medicina da USP, declara: os casos não são pontuais

    Há alguns meses, motivada por uma denúncia, Paula de Figueiredo Silva, promotora de Justiça de Direitos Humanos e Inclusão Social do Ministério Público do Estado de São Paulo, instaurou um inquérito civil público para apurar os casos de violações aos direitos humanos ocorridos dentro da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). Em entrevista à Ponte, ela fala sobre os resultados das investigações e a busca de soluções para que novos abusos sejam evitados. 

    Ponte – Como os casos de violência na FMUSP chegaram ao Ministério Público do Estado de São Paulo?

    Paula de Figueiredo Silva – A informação chegou a mim por uma testemunha, uma pessoa que tomou coragem de ir à Promotoria, bateu na minha porta e disse: “quero conversar com alguém que possa dar encaminhamento a esses casos de violações constantes aos direitos humanos”. Essa pessoa chegou às 2h da tarde e ficamos até as 7h da noite. Os casos não são pontuais, é toda uma realidade na faculdade de cultura de violações de direitos humanos e repressão a minorias. A partir desse relato eu instaurei o inquérito civil e outras testemunhas, e outras indicadas por estas, vieram para eu ouví-las. O quadro que obtivemos foi de relatos muito coerentes, todos indicando os mesmos problemas.

    Ponte – Quando essa pessoa foi procurá-la?

    Paula de Figueiredo Silva – Foi em 28 de agosto e eu instaurei o inquérito em seguida. Esses atos de agressões e discriminação são principalmente contra homossexuais e contra mulheres. E há agressões de caráter sexual: oito estupros foram narrados a mim. Estupros, atos de discriminação, têm consequências criminais e merecem uma atenção, uma resposta do MP no âmbito criminal, mas na minha área o objetivo da instauração do inquérito civil é buscar uma solução em caráter coletivo. As provas que foram levantadas indicam que há sim uma cultura de repressão das minorias, de discriminação e violência sexual.

    E mais: se há uma cultura de abafar esse tipo de informação e de não se dar uma resposta efetiva aos casos, não se dar suporte às vítimas, uma punição para os responsáveis, isso demandaria uma atuação para reestruturar essa atual realidade da Faculdade de Medicina. Porque a Lei de Diretrizes e Bases da Educação fala que o ensinamento não se deve dar apenas pela questão da técnica e produção do conhecimento objetivo, mas também pela formação do cidadão. E isso me parece mais evidente na formação de médicos, cuja profissão é a pura essência de cuidar da vida humana, do ser humano.

    A ideia desse inquérito civil é fazer primeiro um levantamento de provas e isso está bastante delineado. Num primeiro momento formar a prova, e num segundo momento negociar com a USP a estruturação de mecanismos para barrar [as violações] e promover uma cultura de inclusão. Por exemplo, uma ideia é a criação de uma comissão na faculdade formada por professores, o que aconteceu. A minha ideia seria fortalecer essa comissão, buscar mecanismos que quebrem esse protecionismo da faculdade. Trazer pessoas de fora que possam também participar dos procedimentos de apuração de casos de violações de direitos humanos. E também trabalhar a própria cultura dos alunos, buscar e fortalecer disciplinas de direitos humanos. Minhas ideias iniciais são essas. O objetivo da instauração do inquérito civil é promover esse tipo de medida.

    Ponte – Quais são as principais denúncias que o MP apurou? Foram casos de homofobia e violência de gênero?

    Paula de Figueiredo Silva – As questões dos estupros, tanto nas festas quanto nas dependências da universidade. Minha ideia não é só apurar o estupro em si, mas também buscar mecanismos de apoio às vítimas. As pessoas que narraram os estupros indicaram que quando buscaram o suporte da faculdade os casos teriam sido abafados, e que após a divulgação de um dos casos na mídia a aluna foi hostilizada na faculdade pelos colegas. O que me parece é que essas minorias, quando vão buscar suporte e narram as agressões que estão sofrendo, sofrem hostilização.

    Os homossexuais também. Há casos de discriminação em festa, por exemplo, o de um casal homossexual que foi impedido de entrar em uma área da festa e, ao questionar a proibição, sofreu agressão física. Outro exemplo é de um homossexual que teria sofrido agressões de outros alunos por conta da sua orientação e como consequência criou grupo pró direitos dos homossexuais e das mulheres dentro da faculdade. Grupo que foi bastante hostilizado em publicações de redes sociais. Há também questões mais sutis, como violências de gênero, machismo nos hinos da faculdade e festas que promovem e sexualizam bastante a mulher.

    Ponte – Ficou evidente nessa coleta de depoimentos a omissão da faculdade no acolhimento dos casos de violência?

    Paula de Figueiredo Silva – Diversas testemunhas narram que sofreram violação e não tiveram nenhum suporte da faculdade. Além disso, as vítimas de estupro disseram que quando optaram por divulgar o que teria acontecido, muitos dos alunos teriam falado: “não, você vai expor a faculdade, a imagem da universidade”. Esse tipo de coerção moral.

    Ponte – Em que fase está o inquérito no momento?

    Paula de Figueiredo Silva – Colhemos as informações e parece bastante claro que há esse tipo de violação na faculdade, mas agora passamos para a segunda fase do inquérito, que é desenvolver com a faculdade mecanismos que abordem a questão. O inquérito civil pode terminar quando a questão se soluciona por si só, quando não há mais danos, e evidentemente não é o caso, pois todas as informações que chegaram estão corroborando a ficha de danos e violações. Pode terminar numa ação ou num TAC [Termo de Ajuste de Conduta], que é um acordo entre as partes para buscar soluções. Eu busco sempre priorizar a solução conciliada. Caso haja abertura por parte da USP, vamos sentar e buscar soluções. Se não for possível, se a USP se fechar para essa possibilidade, aí vamos para a via judicial, que seria um pedido de ressarcimento coletivo.

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    Gonçalo de Souza
    Gonçalo de Souza
    9 anos atrás

    As observações feitas pela Promotora se alastram pelo país, mormente em ambientes escolares, como as diversas IES federais. Em MS, tivemos atá incêndio de uma mini biblioteca do Centro Acadêmico. A situação começa a ficar amedrontadora. A cultura da repressão atinge a todos, cerceando o direito á diversidade de todos os tipos. Mais do que simples repressão, trata-se da implantação de métodos de terror. Em regra geral, as autoridades acadêmicas tem encarado o problema como parte do direito de manifestação, confundindo e fazendo a sociedade confundir a liberdade de expressão com discursos de ódio. A situação é preocupante. Os diversos níveis do MP precisam estar atentos.

    Pedro
    Pedro
    9 anos atrás

    A promotora afirma “Por exemplo, uma ideia é a criação de uma comissão na faculdade formada por professores, o que aconteceu. A minha ideia seria fortalecer essa comissão, buscar mecanismos que quebrem esse protecionismo da faculdade”. Porque nas nossas universidade, sempre precisam incluir o professor entre o aluno criminoso e a justiça? Em qual tipo de crime isso deixa de ser feito? No assassinato? Existem leis no pais para lidarem com casos de estupro, nao precisa esse paternalismo ridiculo que se pratica nas nossas universidades. Abra a porta para a policia realizar seu trabalho, da mesma forma que os membros dessas universidades exigem que a policia atue nas periferias.

    Um comitê de professores da casa é uma pessima ideia. O Brasil tem leis muito claras, basta aplicar-las com isonomia. E que os professores lecionem e toquem suas pesquisas.

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