“Mandaram eu abrir a mão, botaram pó na minha mão, me forçando a cheirar”, revela Rafael Braga

    Em última audiência, o ex-catador de latas Rafael Braga, único preso no contexto das manifestações de junho de 2013, afirma que os PMs tentaram forçá-lo a cheirar cocaína

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    Rafael Braga no Escritório de Advocacia João Tancredo, onde trabalhava até ser preso novamente. Foto: Luiza Sansão

    Na terceira e última audiência de instrução e julgamento do ex-catador de latas Rafael Braga Vieira, 28 anos, realizada nesta terça-feira (07/06) no TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro), o jovem contou, durante o interrogatório, que os policiais militares que o prenderam tentaram forçá-lo a cheirar cocaína dentro da viatura, no trajeto para a delegacia onde a ocorrência foi registrada, em janeiro, além de reafirmar a versão contada na ocasião.

    Também foram ouvidas mais duas testemunhas de acusação, que estão entre os seis policiais militares da 7ª UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da Penha que, na manhã do dia 12 de janeiro último, abordaram violentamente Rafael, na comunidade Vila Cruzeiro, na Penha, zona norte do Rio de Janeiro: os dois PMs, cabos Farley Alves de Figueiredo e Fernando de Souza Pimentel, caíram em contradições semelhantes às apresentadas nos depoimentos dos colegas que depuseram anteriormente, Pablo Vinícius Cabral (em audiência no 12/04), e Victor Hugo Lago (em audiência no dia 11/05) – que registraram a ocorrência na 22ª Delegacia de Polícia.

    Preso injustamente durante a grande manifestação de junho de 2013, Rafael cumpria pena em regime aberto, usando tornozeleira eletrônica, desde 1º de dezembro de 2015. Ele trabalhava como auxiliar de serviços gerais no Escritório de Advocacia João Tancredo, no Centro do Rio, até ser preso pela segunda vez. Hoje, ele se encontra na Penitenciária de Bangu (Cadeia Pública Paulo Roberto Rocha), na zona oeste do Rio, após ser autuado por tráfico de drogas, associação para o tráfico e colaboração com o tráfico.

    Na audiência desta terça-feira, acompanhada com exclusividade pela Ponte Jornalismo, o depoimento de Rafael foi consonante com o que foi apresentado pelo jovem no dia da ocorrência, em que policiais o torturaram, o ameaçaram de estupro e de “jogar arma e droga na conta” dele caso ele não delatasse traficantes da região. Mas, em um depoimento forte, e sem hesitação, o jovem revelou que, no trajeto entre a sede da UPP e a DP, os policiais lhe ofereceram cocaína e tentaram obriga-lo a consumir a substância, que foi despejada à força em suas mãos pelos PMs.

    A única testemunha do momento em que o jovem foi abordado, que não será identificada nesta reportagem para sua segurança, relatou, quando depôs à Justiça em abril, que viu quando os policiais o agrediram com socos e chutes.


    Depoimento de Rafael

    “Foi de manhã, por volta das oito horas, minha mãe me deu três reais para comprar pães para mim e para os meus irmãos. Saí de casa para ir na padaria, [que fica a] uns 30 metros de distância da minha casa. Eu estava usando minha tornozeleira [eletrônica] no pé, tinha um mês e pouco que eu estava ‘na rua’ [em regime aberto]. Eu avistei os policiais a uns 15 metros de distância, todos a pé e com o fuzil apontado. Aí eles botaram a mão [fizeram sinal], me chamaram, [dizendo] ‘vem’. Aí eu fui. Era a rua da padaria, eu ia passar na direção deles de qualquer forma”, introduziu Rafael, sob intervenções constantes do juiz Ricardo Coronha.

    “Eu não tinha nada, estava de mãos vazias. Só o que eu tinha era a tornozeleira mesmo e os três reais na mão”, respondeu ele, indagado pelo Juízo, que seguiu inquirindo-o sobre porte de entorpecente e ocupação. “Não tinha nenhum entorpecente, nunca fui de boca de fumo, sou trabalhador, auxiliar de serviços gerais no Escritório João Tancredo, na [avenida] Rio Branco”, afirmou.

    “Eu cheguei lá, eles já me puseram no canto da parede, já me chamaram para dentro de um quintal que estava com o portão aberto, um beco estreito, e começaram a me perguntar ‘eu sei que você mora aqui, que você sabe quem são os caras que são os bandidos, você sabe quem é o dono da favela, e você vai dar alguma arma pra nós, alguma droga pra nós’. Eu falei ‘não sei não, senhor; não sou bandido, sou honesto, saio daqui pra trabalhar e voltar pra casa, não fico com bandido, sou só morador mesmo’”, prosseguiu o ex-catador de latas.

    Os policiais, então, seguiram afirmando que ele sabia sim, que ele teria “que dar armas pros caras”, enquanto ele limitava-se a responder que não sabia quem eram “os caras” a quem os policiais se referiam e que “não tinha nada para dar para eles”. Enquanto quatro policiais o acuavam dentro do beco, outros dois ficaram do lado de fora, segundo Rafael. “Quando eles viram que eu não tinha nada para dar para eles, um gritou o outro, e esse outro já veio com uma bolsa azul e falou ‘tá vendo essa bolsa aí? A gente vai jogar em cima de você se você não falar!’”, contou ele, que seguiu dizendo aos policiais que não tinha como dizer nada porque nada sabia.

    Rafael lembrou que os policiais que depuseram nas duas primeiras audiências, Pablo Vinícius Cabral e Victor Hugo Lago, estavam em meio aos policiais que o abordaram, além de um dos que compareceram à audiência de ontem.

    “Eles falaram ‘então isso vai ficar em cima de você’. E ali no beco mesmo já chegou mais um [PM] me dando porrada no peito, nas costas, só porrada. Aí me algemaram e me levaram para a base da UPP, na Vila Cruzeiro”, relatou Rafael, que foi levado por quatro policiais até a UPP. Quando sua mãe, Adriana Braga, chegou à UPP, ouviu dos policiais que eles haviam encontrado droga com seu filho e que ele seria levado para a delegacia.

    “Depois chegou a viatura, [uma] Blazer, e me botaram lá dentro para ir para a delegacia, sendo que dentro da viatura eles me mandaram usar pó [cocaína]. ‘E aí, tu cheira? Tu cheira? Pode usar aí na nossa frente, nós estamos deixando’, revelou Rafael. “Mandaram eu abrir a mão, abriram o plástico, botaram pó na minha mão, me forçando a cheirar. Mas eu não cheirei. Aí me levaram para a 22ª DP e apresentaram essas drogas, que não eram minhas não. Nunca participei [de tráfico], nunca vendi droga na minha vida”, concluiu o ex-catador de latas.

    Rafael afirmou que nunca havia visto os policiais que o prenderam e que tinha a sensação de que só o abordaram daquela maneira porque ele usava tornozeleira eletrônica. “Eu tenho pra mim que eles me prenderam mais por causa da tornozeleira que eu usava, porque eles ficaram falando ‘você já foi bandido’, e um monte de coisa me esculachando”, recordou.

     

    Contradições nos depoimentos dos PMs

    Os dois policiais que depuseram ontem, cabos Farley Alves de Figueiredo e Fernando de Souza Pimentel, foram convocados após terem sido citados nos depoimentos dos colegas que depuseram anteriormente como integrantes da guarnição que se encontrava no patrulhamento de engenheiros que estariam “fazendo metragem” no local para a construção de uma cabine policial. Nenhum dos dois soube precisar se havia um ou mais engenheiros no local.

    Mencionado em depoimentos anteriores, o soldado Faustino foi dispensado pelo Juízo após apresentar documento em que provava que se encontrava “dispensado” do plantão na data da ocorrência, motivo pelo qual ignorava o ocorrido.

    Cabo Farley afirmou não saber se o material supostamente encontrado com Rafael encontrava-se numa sacola ou no corpo do jovem. “Depois que eles recolheram [o material] é que eles trouxeram até mim”, disse o PM, que afirmou ter revistado Rafael após a droga ter sido encontrada pelos dois colegas que estavam à frente da guarnição. Ele também disse que lembrava de ouvir o jovem dizer que a droga não lhe pertencia.

    Enquanto os colegas que depuseram anteriormente afirmaram que Rafael foi encontrado com mais pessoas e que estas teriam corrido, restando somente o ex-catador de latas na localidade conhecida como “Sem Terra”, na Vila Cruzeiro, Farley e Pimentel afirmaram não se lembrar se ele estava sozinho ou em grupo e não terem presenciado a abordagem de Rafael.

    Cabo Pimentel disse que soube pelos policiais que estavam à frente que havia um elemento fazendo tráfico na referida localidade, e que este teria tentado se desfazer do invólucro. Também afirmou não saber se Rafael foi encontrado sozinho ou em grupo. Ele disse ainda que não se recordava se a tornozeleira foi retirada de Rafael, mas que todos os policiais “observaram que ele usava uma tornozeleira”.

    Como o soldado Lago afirmou, na audiência realizada em abril, que a patrulha foi avisada por um soldado chamado Lopes, que seria de outra guarnição policial, de que “havia venda de drogas na Rua 29” (“Sem Terra”), motivo pelo qual se dirigiram ao local, a defesa de Rafael questionou os PMs que depuseram ontem sobre este fato. Farley afirmou não se lembrar disso e Pimentel disse que ele não havia falado com Lopes e não sabia se outro colega o havia feito.

     

    Defesa de Rafael requer acesso às imagens das câmeras da UPP e da viatura

    Para Carlos Eduardo Martins, um dos advogados do DDH (Instituto de Defensores de Direitos Humanos) que atua na defesa de Rafael, “as contradições somente se ampliaram” nos depoimentos dos policiais. “As contradições ficaram bem claras, principalmente se nós as confrontarmos com o interrogatório do Rafael, que descreveu com minúcias todas as circunstâncias desde sua saída de casa até sua chegada à delegacia”, disse Martins.

    “As contradições mais evidentes são em relação ao momento da prisão do Rafael: dos policiais que dizem ter visto a prisão, a primeira versão apresentada na delegacia foi de que ele estaria sozinho no momento da abordagem, e a outra versão é de que ele estava num grupo e esse grupo correu e ele ficou. Uma contradição evidente. Primeiro é dito que eles estariam cobrindo a atuação de um engenheiro, depois de dois engenheiros. Outra contradição”, aponta o advogado Lucas Sada (DDH), que também atua na defesa de Rafael. “O depoimento do Rafael é muito retilíneo e muito mais coerente do que o dos policiais, que têm uma série de inconsistências”, compara.

    Diante das contradições verificadas nas três audiências realizadas nos últimos meses, a defesa de Rafael fez as seguintes diligências: que seja identificado e ouvido o engenheiro ou o grupo de engenheiros que trabalhava na região na data da ocorrência, visto que uma testemunha dos fatos que não é policial poderia apresentar uma visão diferente da dos agentes; que sejam requeridas as câmeras da UPP e da viatura, para que sejam analisadas as imagens de Rafael nos dois locais; que o referido soldado Lopes seja convocado a depor e que o mapa do GPS seja ampliado.

    Com exceção dos requerimentos que dizem respeito às imagens das câmaras, todos os demais foram negados por Ricardo Coronha, pois, segundo o magistrado, “o depoimento das testemunhas é facultativo e quem define sua necessidade é o juiz”, que considera, neste caso, “desnecessária a oitiva de outras testemunhas”, e “não há necessidade de maiores esclarecimentos” a respeito do mapa do GPS.

    “Agora a expectativa é de que tenhamos acesso às imagens das câmeras da corrida e da frente da UPP, para que possamos colocá-las como elemento nas nossas alegações finais. Depois dessas duas diligências que ainda serão apreciadas, poderemos narrar toda a história do caso e fazer uma ponderação crítica em relação ao ocorrido para melhor defender o Rafael”, encerra Martins.

     

    Outro lado

    Por meio da assessoria de comunicação das UPP’s, a reportagem solicitou entrevistas com os policiais militares Pablo Vinícius Cabral, Victor Hugo Lago, Farley Alves de Figueiredo e Fernando de Souza Pimentel, com o objetivo de ouvir sua versão sobre o que aconteceu no trajeto entre a base da UPP e a 22ª DP. “A entrevista não está autorizada. Esse caso está sendo investigado pela Polícia Civil”, respondeu a assessoria, por e-mail, à Ponte.

    Com relação às circunstâncias em que abordaram Rafael, o que os PMs Pablo Vinícius Cabral e Victor Hugo Lago afirmaram, no registro da ocorrência, foi que, por volta das nove horas da manhã do dia 12 de janeiro, “estavam em operação à favela Vila Cruzeiro, Penha, com objetivo de ocuparem-na, quando um morador não identificado informou que havia um indivíduo a poucos metros do local onde se encontravam com material entorpecente, a fim de comercializá-lo. Em ato contínuo, foram até o local informado e encontraram Rafael Braga Vieira segurando um saco plástico contendo material assemelhado a entorpecente e 01 (um) morteiro de fogos de artifício”.

    Os dois soldados da UPP da Penha alegaram ainda que Rafael “tentou se livrar do referido material que estava em sua posse, jogando-o no chão” quando percebeu a aproximação dos policiais, e “que todo o material apresentado” na Delegacia de Polícia “estava em poder de Rafael” – 0,6 g de maconha, 9,3 g de cocaína e um rojão –, levando Rafael a ser autuado por tráfico de drogas, associação para o tráfico e colaboração com o tráfico.

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