Mesmo com mudanças na lei, Brasil não garante direitos das grávidas presas

    Estudo do Ministério da Justiça revela que apenas 33% dos presídios femininos brasileiros possuem berçário, número que cai para 6% em presídios mistos

    Por Alê Alves, especial para a Ponte Jornalismo

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    Reeducanda cuida de filho em presídio no Estado de Minas Gerais – Foto de Renata Caldeira/ TJMG

    Detida há três anos e quatro meses, Júlia* vive pela segunda vez a experiência de estar grávida em uma prisão. “Hoje estou com quase nove meses e o atendimento é péssimo.  A última vez que passei  em consulta com ginecologista foi em 28/02/2016 e o ultimo ultrassom fiz no dia 28/03/2016.” Desde o fim de Março até meados de Junho, quando deu à luz, Júlia não teve mais consultas médicas.

    Na primeira vez, Júlia teve o bebê em regime semi-aberto, mas fugiu pouco antes dele completar seis meses de vida. “Me evadi porque meu filho completaria seis meses e eu temia entregá-lo. Na minha segunda saída temporária, eu não retornei. Fiquei dois anos e cinco meses foragida. Quando voltei para a prisão, estava grávida de novo, de um mês.”

    De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (“Infopen – Mulheres”) elaborado pelo Ministério da Justiça, em Junho de 2014 apenas 33% dos presídios femininos brasileiros possuem berçário, número que cai para 6% em presídios mistos.

    O número de creches é ainda menor segundo o estudo, estando presente em 5% dos presídios femininos e sendo inexistente em unidades mistas. Outro dado é que 48 das 1420 unidades prisionais brasileiras (3,3%) tem cela ou dormitório adequadro para grávidas, sendo 35 delas em penitenciárias femininas e 13 em unidades mistas.

    “Quem acaba cuidando das grávidas são as outras presas. Elas que  dividem a marmita quando a comida não vem na quantidade suficiente, conversam e dão esse apoio. Junto com as idosas, as grávidas tem prioridade”, conta Andrelina Amélia Ferreira, fundadora da ONG “Mães do Cárcere” que passou cerca de 12 anos detida.

    Amamentação

    A escassez de infraestrutura não é a única dificuldade que mulheres grávidas vivem no sistema penitenciário brasileiro. Outro problema se refere ao tempo que as mães ficam com o bebê.  O direito de grávidas amamentarem seus filhos na prisão está previsto no artigo quinto da Constituição Federal de 1988.

    “Apesar de cláusula pétrea e irrevogável, esse direito está colocado de forma muito ampla. Não se fala quando, por quanto tempo nem de que forma a mãe vai amamentar o bebê”, avalia Bruno Shimizu, defensor do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo.

    “A prisão da mulher vulnerabiliza toda a família”

    Ser mulher em um sistema prisional feito por e para homens

    Segundo a Lei de Execução Penal (7.210/1984), mães detidas tem o direito de amamentar seu filho “no mínimo até seis meses de idade”. “O problema é que o prazo que a Lei de Execução Penal dá como mínimo é lido como máximo. Passados seis meses, o bebê é separado à força da mãe e a amamentação é interrompida “, critica o defensor.

    A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda um período de aleitamento materno de pelo menos dois anos, sendo exclusivo nos seis primeiros meses. Segundo os “Cadernos de Atenção Básica”, publicados pelo Ministério da Saúde em 2015, o aleitamento materno é fundamental pois fornece os nutrientes necessários para o desenvolvimento da criança, protege contra doenças infecciosas e diminui o risco de diarreias e alergias, além de promover o vínculo entre mãe e filho.

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    Grávidas, reeducandas vivem a apreensão de não conviverem com os filhos – Foto de Renata Caldeira/ TJMG

    “A amamentação materna é ainda mais importante no contexto prisional, onde doenças infecciosas como a tuberculose são comuns”, avalia irmã Margaret Gaffney, integrante da Pastoral Carcerária de São Paulo que visita penitenciárias femininas da capital semanalmente.

    Outro fator que afeta o tempo que a mãe permanecerá com o bebê é a necessidade de trabalhar. “Muitas tem que escolher entre ficar com o bebê e criar um vínculo familiar ou trabalhar na cadeia e mandar dinheiro para família. É uma decisão difícil para a mulher”, diz Michael Mary Nolan, advogada presidenta do ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania), organização que há 15 anos acompanha a situação de mulheres presas no Brasil.

    Adoção

    O risco de perder a guarda dos filhos é outra ameaça constante para detidas com filhos. “Se ninguém se compromete a cuidar da criança, ela é destinada a um abrigo”, afirma Bruno Shimizu, integrante do projeto “Mães em Cárcere”. A iniciativa, organizada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, prevê atendimento para detidas que sejam mães e/ou estejam grávidas.

    Segundo estatísticas do projeto, 51 crianças e adolescentes foram adotados e 173 mães detidas tiveram filhos encaminhados para abrigo no Estado de São Paulo, em 2014. Shimizu aponta uma falta de comunicação entre a Justiça Criminal e a Justiça da Infância como uma das razões para esse quadro. “Muitas vezes, o juiz da Justiça da Infância não tem a informação de que a mãe daquela criança está presa. Daí a leitura é como se ela tivesse abandonado o seu filho, quando, na verdade, ela foi separada dele”, afirma.

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    Mãe cuida do filho dentro de presídio. No Brasil, apenas 33% dos presídios femininos brasileiros possuem berçário – Foto de Gláucio Dettmar/ Agência CNJ

    A falta de comunicação ocorre também entre a Justiça Criminal e as detidas. Muitas vezes, a mãe não é informada que há um processo de destituição do poder familiar em andamento. “O processo corre, a mãe não fica sabendo que é ré e o caso é julgado”, diz Shimizu. “Eu só conheci a Defensoria Pública depois da prisão. Conheço mulheres que estão lá e até hoje  não conhecem”, conta Andrelina Amélia Ferreira.

    Ele afirma que, se o pedido adoção for concluído, não é possível recorrer da decisão, pois o processo é irrevogável e corre em segredo de Justiça. “Há mães egressas que vão à Defensoria toda semana saber se há informações do filho e recebem a mesma orientação de que não há o que fazer. Isso se converte numa prisão perpétua para ela. Muitas entram num processo de negação e desenvolvem depressão”, relata o defensor público.

    Mudanças na legislação

    Em 2011, a Organização das Nações Unidas (ONU), aprovou as “Regras de Bangkok – regras para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras”. Trata-se de um marco internacional que regula o tratamento de mulheres infratoras e reconhece direitos como grávidas e lactantes detidas receberem orientações sobre dieta e saúde a partir de programas supervisionados por profissionais qualificados.

    “Mas não é isso o que vemos na prática. Os bebês até conseguem atendimento médico, mas a mulher não tem acompanhamento do pós­parto nem tratamento ginecológico”, afirma Michael Mary Nolan, do ITTC.

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    Unidade Materno Infantil do Complexo Penitenciário de Bangu, no Rio de Janeiro – Foto de Tânia Râgo (Agência Brasil)

    Uma mudança legislativa ocorreu no Brasil em 2016, com a aprovação do Marco Legal de Atenção à Primeira Infância (Lei 13.257/2016), que regula políticas públicas para desenvolvimento de crianças de zero a seis anos.

    Antes, era exigido à detida estar no sétimo mês de gravidez para poder cumprir a prisão cautelar em sua residência. Com o Marco, a gestante presa preventivamente pode requerer prisão domiciliar independente do tempo de gestação. O direito de converter a pena também foi extendido para mulheres com filhos até 12 anos de idade incompletos.

    Na avaliação de Bruno Shimizu, a mulher é julgada não só pelo crime mas enquanto mulher e mãe. “É comum o discurso de que a mulher não pensou nos filhos. O que a gente vê é justamente o contrário, muitas são presas justamente pensando no sustento da família. Essa costuma ser a primeira preocupação na prisão daquelas que são mães”, afirma o defensor.

     

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