Morte e Mordaça na zona sul de São Paulo

    Por Lucas Torres, Marcelo Souza, Matheus Vasconcellos*

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    Dia 6 de março de 2015, horas antes da tempestade.

    Aquela sexta-feira amanheceu cinza na região do Parque Santo Antônio, zona sul de São Paulo. O tempo nublado aliviava o trajeto de aproximadamente uma hora e meia, em condução quase sempre lotada, que boa parte dos moradores fazia para chegar ao trabalho no centro-expandido.

    Os pontos comerciais abriram as portas às 8h, hora em que na Rua Pedro da Costa Faleiros, Thais beijou seu marido James de Souza, antes que ele fosse pintar as paredes de um edifício no bairro de Santo Amaro. Ela, dona de casa, trajava pijamas. Ele vestia camiseta tricolor – branca, preta e amarela, calça jeans e tênis baixo nas cores azul e branco. Àquela altura, nada dava indícios de como terminaria o dia do pintor de 35 anos – assassinado, por volta das 22h27, na rua em que morava.

    O dia que reservava uma das maiores tragédias da zona sul de São Paulo, seguia sem conceder aviso.

    Às 12h, o bar Rancho Fim de Semana funcionava como um animado restaurante. Seu jukebox, responsável por fazer dançar os clientes durante as noites, tocava em volume médio famosas canções de forró.

    Quando o relógio marcava 16h, a associação do bairro trabalhava a todo vapor. O espaço que é destinado a atividades culturais e de integração da comunidade, recebeu dezenas de jovens para a aula de artes marciais ministrada por um voluntário.

    A associação foi fundada pelo pai do que hoje é visto como líder político da comunidade, um homem de 32 anos conhecido como ‘Alemão’. De cabelos claros, rosto arredondado e aparência mais jovem do que de fato é, o rapaz – membro do Partido da República – possui estreita relação com a vizinhança do local onde nasceu.  E, embora, segundo o próprio, tenha condições de se mudar para um local mais estruturado, faz uso de sua posição de certa influência para amenizar a situação de desamparo de seus colegas. Naquela sexta, Alemão esteve o dia todo na sede do partido.

    Quando a noite chegava e a temperatura estava caindo, Alemão apontou com seu Corsa Sedan preto na esquina da Avenida Fim de Semana. Ali estava Sidney Nascimento, o “Ney”, de 32 anos, amigo de infância com quem havia cursado todo o primário, e colecionava memórias dos jogos de futebol no campinho de terra batida e de brincadeiras como esconde-esconde e bolinha de gude. Há muito não se falavam.

    Naquele início de noite – que marcaria o último início de noite da vida de Sidney – eles conversaram. Ney lamentava a morte de seus pais, falecidos ainda no início do ano. Mas mostrava certo conforto por poder contar com o amparo de sua esposa e das duas filhas, de 11 e 7 anos.

    Alemão estava cansado. Eram 19h e o dia no gabinete havia sido cheio. Além disso, já era hora de ir para casa, pois, segundo ele, é prudente seguir à risca uma espécie de ‘toque de recolher’ cotidiano, sempre às oito da noite. Então ele contornou a Rua Arquiteto Roberto Patrão Assis e, enquanto se dirigia ao lar, sugeriu: “vê se vai para casa, Ney. Manda um beijo para as crianças”. Sidney seguiu o conselho do amigo. O dia do motoboy havia sido igualmente exaustivo.

    Com o sol já posto, a noite de sexta-feira começa a ser desenhada. Algumas pessoas preferem ficar em casa. Outras escolhem curtir a noite em um bar ou em uma casa noturna.

    Naquela sexta, João Marcos Lino Garcia, de 21 anos, saiu da casa de seus pais vestindo uma camiseta com listras horizontais nas cores preta e marrom, bermuda jeans azul e chinelos de dedo brancos. Lino, como era conhecido, foi jogar bilhar em um bar localizado na Rua José Sedenho. Local, onde às 3h, o garoto morreria após ser atingido por dez disparos de uma 9MM.

    À noite, a iluminação no perímetro do Cemitério São Luís é consideravelmente baixa e alguns becos estreitos podem fazer a região parecer um tanto assustadora.  Em geral, essa impressão logo desaparece por conta do grande movimento dos habitantes. Mas nessa sexta-feira, o local estava mais vazio do que de costume. Condição ideal para alguém que há algum tempo estava à espreita.

    A ronda da morte

    Por volta das 21h50, quatro homens brancos montam suas duas motos e dão início à ronda da morte. Um deles gritou -“vai morrer todo mundo”, relatou um sobrevivente.

    Às 22h, Bruno Rafael Clemente, de 23 anos, é o primeiro a cruzar seus caminhos. O jovem magro, de 1,75 de altura, caiu sobre a perna esquerda após ser alvejado por disparos nada econômicos – 12 no total. Cinco em seu rosto, quatro no pescoço, um no tórax, outro na perna esquerda e o último nas costas.

    Vinte e sete minutos depois, na Rua Pedro da Costa Faleiros, James de Souza recebeu quatro tiros na cabeça, dois no abdômen e um no braço esquerdo. Caiu morto na calçada em frente a casa onde morava. Thaís, que estava ao lado do marido, saiu ilesa. Outros três rapazes foram atingidos no local. Dois sobreviveram e foram encaminhados ao hospital M’Boi Mirim. O terceiro, o filho único Ewerton Silva, de 16 anos, não teve a mesma sorte. Faleceu de bruços sobre uma escadaria após ser atingido por 11 tiros, dos quais quatro lhe acertaram a cabeça.

    Algumas horas se passaram após as duas ocorrências e, embora moradores tenham telefonado para a Polícia Militar, nem sequer uma viatura foi vista no local para conter o caso.

    Já era madrugada e a ronda dos motoqueiros não parou por aí. Eles seguiram até a Rua José Sedenho e às 3h dois homens entraram no bar onde João Marcos Lino Garcia jogava bilhar. Desferiram quatro dezenas de tiros contra seis homens. Quatro deles morreram:

    – Givonaldo Leite Fernandes, de 37 anos, que havia ido comprar cerveja para um churrasco que ocorria na casa de um dos primos, próxima do local, caiu de bruços na calçada após ser atingido por quatro tiros.

    – Vanderlei Sacramento de Souza, de 33 anos e 1,70 de altura, massacrado por 15 balas, das quais cinco lhe atingiram a face.

    -Vanderley Souza Lima, de 25 anos, mineiro da cidade de Novo Cruzeiro-MG, recebeu cinco tiros antes de cair próximo ao balcão, já morto.

    – E o garoto Lino, que planejara passar a sexta jogando sinuca, caiu com as costas sobre o asfalto, em frente ao botequim. Dez tiros o tinham atingido. Dois deles lhe perfuraram o lado esquerdo do peito.

    Não havia terminado. Às 3h35 da manhã, enquanto dormia em sua casa, Alemão ouviu os primeiros disparos vindos da Avenida Fim de Semana. Perturbado, o líder da comunidade quis saber o que estava acontecendo, mas – contido por uma de suas filhas, que também havia acordado com o barulho – se limitou a voltar para cama e esperar que seus amigos e familiares estivessem em local seguro. Um deles não estava.

    Enquanto, na altura da Rua Aderbal, dois homens atiravam para o alto, os donos dos bares da Avenida Fim de Semana fechavam as portas de seus estabelecimentos. Mas no bar “Rancho Fim de Semana”, um sujeito conseguiu abrir a porta rapidamente pelo lado de fora.

    No momento em que a porta é suspensa, o que se vê é um homem de porte médio, vestindo camisa preta e calça jeans. Sua mão direita estava fixa junto ao quadril. Com tom de deboche, indagou: “qual o problema aí dentro?”. Sem esperar qualquer reação ou resposta, disparou dois tiros contra Sidney Vieira Nascimento, o Ney. O rapaz havia ido para casa logo após o encontro com o amigo Alemão. Mas, em algum momento próximo das 23 horas, decidiu ir ao bar para comprar cigarros. Lá, se sentou próximo ao balcão, tomou algumas cervejas, e desabou – morto.

    No mesmo bar, mais cinco balas de calibre 9MM foram disparadas contra Sidnei dos Santos, de 25 anos, que morreu no fundo do estabelecimento. Outros dois tiros atingiram R., um dos sobreviventes que mais tarde se tornaria peça fundamental nas investigações.

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    Chega a aurora. Sem alívio.

    O dia 7 de março de 2015 amanheceu manchado de sangue e horror por toda a região do Parque Santo Antônio. Havia medo. Ao contrário do que se possa imaginar, mesmo em um local situado na área outrora conhecida como “triângulo da morte”, o assassinato de 10 homens em um só dia jamais será visto como coisa cotidiana. Ainda assim, os comércios abriram. E os ônibus partiram repletos de gente do bairro, rumo ao trabalho no centro-expandido.

    Por volta das 8h, a PM finalmente chegou aos locais dos crimes. Formalmente, para checar as ocorrências. Segundo alguns moradores (cujos nomes são ocultados por segurança), para intimidar e ‘calar a boca’ de qualquer um que ousasse acusá-la.

    O dia era chuvoso. E, enquanto o IML levava os corpos para a perícia, Alemão, líder da comunidade, caminhava pela região junto a Cláudio Aparecido da Silva – o Claudinho – e Eduardo Suplicy, ambos membros da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo. A intenção da comitiva era oferecer amparo aos familiares das vítimas, inclusive com ajuda financeira para os trâmites do sepultamento.

    Dos dez mortos, sete foram enterrados entre os dias 8 e 9 de março no cemitério São Luís. Local que, nas décadas de 80 e 90, era conhecido como cemitério dos jovens, por conta do grande número de jovens assassinados nas antigas brigas de gangues ou pelos grupos de extermínio como os chamados “pé de pato”.

    Às famílias restava um sentimento de impotência. Falar o sabido, ou o suspeitado, era visto como uma espécie de suicídio. O Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE) – ao contrário da imprensa, que se apressou em afirmar que os crimes eram fruto de ‘brigas de gangues’ – até tentou. Visitou a casa dos familiares das vítimas e, inicialmente, tiveram negados todos os pedidos de depoimento.

    Com R., sobrevivente da tentativa de homicídio no bar “Rancho Fim de Semana”, não foi diferente. A fim de proteger sua família e, claro, a si mesmo, o rapaz decidiu que testemunharia no caso e, em depoimento no Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), o rapaz havia dito que se lembrava do rosto de um dos atiradores. Por conta disso, sua irmã passou a receber sucessivas ligações anônimas em tom de ameaça. Segundo a moça, do outro lado da linha havia um homem que parecia querer se certificar que R. e seus familiares ficariam em silêncio. “Ele pedia para meu irmão não dizer mais nada”, contou. Outro fato curioso no depoimento da garota chamou a atenção dos investigadores. “Durante uma das conversas eu disse que chamaria a polícia, e o homem respondeu que ele era da polícia”, finalizou.

    Em face da situação insustentável, a família do sobrevivente decidiu deixar a região. Enquanto R., convencido dos riscos que corria, decidiu aceitar o convite para participar do “Programa Estadual de Proteção a Vítimas e Testemunhas” (PROVITA).

    Após o ingresso no programa, o sobrevivente foi enviado para outro estado (conhecido apenas por membros do PROVITA), onde vive em apartamento alugado pelo Governo de São Paulo, sem acesso a equipamentos de comunicação (telefones, celulares ou computadores). Por conta disso, R. mal consegue se comunicar com seus familiares.

    “Uma vez por mês um agente especial do programa vai até à casa da testemunha para que ela possa falar com seus familiares. Nesse dia ela tem dez minutos para dizer que está tudo bem”, afirmou o representante do CONDEPE, Luiz Carlos dos Santos.

    Em cerca de quatro meses sob proteção, o sobrevivente prestou depoimentos para o encaminhamento das investigações. Em um deles, R. delatou o ‘deboche’ que recebeu de um agente da PM no Hospital Campo Limpo, quando ainda estava na maca. O policial havia se aproximado de maneira intimidadora e dito, “deu sorte dessa vez, hein”. Além disso, o sobrevivente descreveu um retrato falado do assassino que, mais tarde – segundo o CONDEPE, ajudou os investigadores do caso a reconhecer características semelhantes em um membro do corpo da Polícia Militar.

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    Retrato falado

    A investigação segue em curso. A corregedoria da Policia Militar é agora responsável por apurar o caso. Ao ser procurada pela reportagem, na região da Luz, Centro de São Paulo, os recepcionistas disseram que as informações deveriam ser obtidas no Quartel General da PM, a 300 metros do local.

    A entidade foi inicialmente solícita, sobretudo na figura do Major Emerson Massera Ribeiro, que intermediou o contato com os investigadores.  Entretanto, mesmo munidos do número do processo, do nome das vítimas e do horário das ocorrências, a corregedoria da PM alegou ter dificuldade em ‘encontrar o caso’ e, até o dia 19/09/2015, não forneceu informações complementares.

    O local da tragédia. Cinco meses depois

    Dia 28 de agosto de 2015, 20h. A Avenida Fim de Semana é cercada de grande movimento. Os diversos estabelecimentos comerciais (duas mercearias, uma farmácia, quatro bares, uma lojinha de roupas) dão um ar de ‘calçadão’ ao pavimento estreito.

    O Rancho Fim de Semana, sem vestígios de balas, toca seu jukebox normalmente – ainda no ritmo do forró.

    Nos banquinhos de praça situados no lado esquerdo da rua, na altura do açougue “Center Carnes”, ainda aberto, gente de todas as idades passa o tempo conversando. Mais à frente, na esquina com a Rua Aderbal, onde mora a família de Sidney Vieira Nascimento, carros com os porta-malas abertos animam os jovens com música alta e fazem do local um verdadeiro baile funk. É sexta-feira. E no Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, a diversão costuma acontecer na rua. Vez em quando nos bares.

    Os cães raramente ficam presos nos limites do portão. Três são vistos no espaço de trinta metros que separa a associação do bairro do final da Rua Aderbal, sem saída. As crianças correm e brincam livres por todo o bairro e hoje, especialmente, se concentram na Rua Arquiteto Roberto Patrão Assis, onde um pula-pula foi colocado no centro da rua.

    Alemão, que ainda segue seu toque de recolher diário às 20h, está dentro de sua casa com suas duas filhas.

    Na superfície, tudo no bairro Jardim São Luís parece saudável. Mas no fundo, a população ainda segue guardando um vestígio de medo. Hoje, a viúva de Ney falaria sobre o trágico assassinato de seu marido, executado na madrugada do dia 7 de março, no Rancho Fim de Semana. Mas – ainda que cinco meses depois – foi prudente que ela não dissesse nada. Nem mesmo seu nome. É preciso chorar em silêncio. Zelar por suas duas filhas.

    A chacina ocorrida na região do Parque Santo Antônio segue fresca na memória dos moradores. O peito machucado pela dor ainda não cicatrizada lhes causa vontade de gritar. Dizer o que se sabe, o que se deduz, ou que se imagina. Entretanto os constantes relatos de ameaças, somados à cultura – tão enraizada na periferia – de que ‘cagueta morre cedo’, silencia até mesmo os mais indignados.

    (No dia 16 de abril de 2015, quando perguntado sobre a fatídica chacina, um senhor de barba afirmou, “eu conhecia todos. Eu vi tudo. Logo vai morrer mais gente. Mas, olha, boquinha de siri” – disse de forma pausada, fazendo um gesto como quem fecha o zíper dos lábios).

    A vida segue no Jardim São Luís, zona sul de São Paulo. Mais eficiente que qualquer pano amarrado na boca, a mordaça do medo tem o poder de silenciar até o crime mais barulhento.


     

    *A reportagem ficou entre as três finalistas do Prêmio Jovem Jornalista, do Instituto Vladimir Herzog e foi orientada por Bruno Paes Manso, da Ponte Jornalismo, e pela professora Denise Paiero.

     

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