Mulheres comandam ocupação em cidade militarizada e marcada por conflitos de terra

    Campus de universidade federal do Pará, em Marabá, está há mais de um mês ocupado contra a PEC dos gastos públicos e a reforma do ensino médio

    Ato em memória de mulheres vítimas de violência em Marabá (Reprodução Facebook)
    Ato em memória de mulheres vítimas de violência em Marabá, no último sábado (Reprodução Facebook)

    Quando a rapper Karol Conka canta “é o poder, aceita que dói menos/de longe falam alto, mas de perto tão pequenos” na cidade natal dela, Curitiba, ela bem poderia estar se referindo ao movimento da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, em Marabá, ocupada desde a primeira votação da PEC que congela os gastos públicos por 20 anos, na Câmara dos Deputados. Apesar da distância de quase 3 mil quilômetros entre as cidades e o abismo de visibilidade entre as duas realidades.

    “O protagonismo feminino da ocupação da Unifesspa merece muito ser destacado, já que vivemos em um contexto de violência em que direitos humanos são violados a todo instante”, explica a professora dos cursos de direito e história Maria Clara Sales Carneiro Sampaio. “São mulheres que estão na linha de frente ou alunos homoafetivos, que quase sempre ficam à margem. São eles que estão tocando a organização da ocupação dividida nas chamadas brigadas e especialmente se colocando como ponto central para muitas das discussões propostas nas inúmeras atividades que estão acontecendo para que a ocupação continue existindo”, disse.

    No sábado, dia 26 de novembro, por exemplo, houve uma performance teatral para rememorar o Dia Internacional da Não-violência Contra a Mulher com uma homenagem a todas as mulheres que morreram lutando. Já na sexta-feira, dia 25, houve uma oficina de confecção de bonecas abayomi, símbolo da resistência e do poder feminino africano. Segundo a tradição, as escravas nas longas viagens nos navios negreiros, com o intuito de acalmar os filhos, retiravam retalhos das roupas e faziam as tais bonecas. E essa tradição africana é muito forte na região. Estima-se que no estado do Pará, haja cerca de 240 comunidades quilombolas.

    A Unifesspa é a segunda universidade fundada dentro da Amazônia, com cota para indígenas e quilombolas. Segundo Maria Clara, tornar público esse movimento, para além dos motivos geradores, é importante como demonstração de resistência em um local onde os direitos são menos obedecidos. “Estamos na periferia da amazônia. Uma cidade onde a Vale ainda dita e muitos as regras. Uma região onde o latifúndio constantemente agride os direitos das pessoas. Nesse contexto, a universidade acaba sendo um oásis”, diz.

    Bonecas Abayomi, em iorubá representa tradição e resistência da mulher (Reprodução Facebook)
    Bonecas Abayomi, em iorubá representa tradição e resistência da mulher (Reprodução Facebook)

    Violência, exploração e militarização

    E a professora tem razão: Marabá, localizada no sudeste do Pará, só ganha destaque no noticiário por causa de alguma notícia ruim. A cidade está, por exemplo, há sete anos no ranking do ministério do Meio Ambiente dos municípios mais desmatadores da região amazônica. A mineração é uma das principais atividades econômicas e os conflitos de terra – desde a expulsão dos povos indígenas até a proliferação de grileiros – dão o tom do que acontece ali. Foi na região onde está localizada Marabá também que a guerrilha do Araguaia se estabeleceu durante a ditadura militar do Brasil e o comandante militar Curió fez seus desmandos, participando direta ou indiretamente do extermínio da luta armada.

    Também por isso, a cidade ainda é muito militarizada: são três bases do exército, segundo Maria Clara Sales Carneiro Sampaio, para uma população urbana de pouco mais de 186 mil habitantes e cerca de 47 mil que vivem na zona rural. Esse ano, a cidade ficou sem prefeito por uma semana. João Salame Neto (Pros) foi afastado pela justiça do Pará, acusado de improbidade administrativa, mas o STF anulou a decisão e ele foi reconduzido ao cargo. Estima-se que tenha desviado R$ 14 milhões da previdência.

    Maria Clara, que tem acompanhado de perto a ocupação – inclusive ajudando as alunas a organizar algumas atividades – critica a cobertura da mídia sobre a ação na universidade, que, ressalta, não teve qualquer depredação ou ato violento. “As ameaças estão vindo do lado de quem é contra. Bem no começo, a gente teve umas duas noites que tanto policiais militares quanto outros alunos que são contrários ficaram dando volta com carro no entorno do campus e ficavam gritando que iam invadir. A gente vive uma situação de pressão, mas diferente daquela coisa de USP e PUC. Porque aqui a gente tem medo de morrer”, afirma.

    Universidade: um quilombo resignificado

    Mãe de duas filhas e moradora da comunidade quilombola Humarizal, no baixo Tocantins, a estudante de direito Paula de Menezes, de 24 anos, está na ocupação desde o primeiro dia. “Eu entrei na universidade para ajudar minha comunidade. Nasci e cresci em um ambiente muito carente, muito reprimido. Não quero ser mais uma que passou, se formou e pronto. Eu quero viver a universidade. Quero abrir minha boca depois e dizer: eu consegui fazer algo”, afirma Paula, por telefone.

    A ocupação está organizada em “brigadas” em que as tarefas são divididas: tem a turma que cuida da comida, tem a da limpeza, tem o pessoal que prepara o cronograma de atividades, tem outro que cuida de fazer a interface com a comunidade acadêmica que quer entender melhor do que se trata a mobilização dos estudantes. De acordo com Paula, o principal ponto é a situação política do país, mas há também um elemento muito forte: a solidariedade com outros locais ocupados desde o início de outubro.

    “Nós, como alunos da universidade, temos que mostrar nossa força e, sim, podemos reivindicar mudanças de forma pacífica e sobretudo modificando a mentalidade, trabalhando na formação mesmo”, esclareceu. Paula admite que sabia muito pouco sobre a reforma do ensino médio e os impactos da PEC dos gastos públicos – a 241 quando ainda estava no âmbito da Câmara e a 55, agora, no Senado – e que só isso já demonstra que a ocupação está valendo a pena“. Atualmente, entre 120 e 150 estudantes vivem no campus da Unifesspa.

    “Eu acho engraçado quem diz que somos desocupados. Pensa comigo: seria muito mais fácil eu ficar 4 horas na sala de aula e ir embora do que o que estamos fazendo de desenvolver atividades, de ficar aqui o dia todo, trabalhando. E quer saber? Eu já aprendi mais aqui do que em sala de aula”, afirma Paula. Para ela, as discussões políticas têm sido enriquecedoras, independentemente de lado. Ela sente que está cada vez mais ciente dos direitos e deveres. “É obrigação do Estado nos amparar. E o Estado está largando a gente para um canto faz tempo. A juventude tem poder, tem voz para gritar e pode e deve fazer isso”.

    Orgulhosa do lado que escolheu, o da ocupação, Paula de Menezes conta que sente como se estivesse participando de um momento histórico único e se orgulha porque vai deixar um legado para os filhos: “Te garanto que quando eu me formar eu vou olhar para trás e vou respirar com satisfação, porque vi que não me acovardei, que fiz tudo o que foi possível e pude dar minha contribuição”.

    Conservadorismo que cria abismos

    “Tem dia que a gente chega e o aluno militar está armado. É complicado você dar aula de história e tem duas pessoas armadas olhando para você”, desabafa a professora Maria Clara Sales Carneiro Sampaio, que leciona nos cursos de história e direito na Unifesspa. A estudante Paula de Menezes confirma. “Muitos vão armados para a universidade. Eu acho bem errado isso dentro da sala de aula. Uma vez a arma de um colega meu que é militar caiu no chão. Um mero acidente, tudo bem. Agora, imagina se essa arma dispara?”, questiona.

    Estudantes homossexuais também só podem ter liberdade dentro da universidade. Marabá está sob forte influência religiosa, especialmente dos templos neopentecostais: são mais de 300, o que dá uma igreja para cada 620 habitantes, se considerarmos a população da zona urbana. Segundo Maria Clara, as pessoas vivem sob constante vigilância. “Tenho alunas homoafetivas, feministas, trans, enfim, mas não dá para elas viverem essa vida de forma livre e tranquila. Não dá para andar de mãos dadas na rua, por exemplo. É algo restrito ao espaço da universidade, que está constantemente sob ataque”, explicou.

    Apesar da pressão, a previsão é que a ocupação se mantenha até a votação final da PEC no Senado.

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