Pela verdade dos crimes da democracia

     Comissão Guarani Yvyrupa, Margens Clínicas, Movimento Mães de Maio

    Se, recentemente, assistimos a significativos avanços no campo da justiça da transição em relação aos crimes perpetrados na ditadura, o mesmo não pode ser dito em relação às violações que seguem acontecendo na democracia
    quem torturou
    Foto: Rafael Schincariol

     

     

    As recentes revelações sobre a extensão da repressão ditatorial brasileira mostram que, longe de termos alcançado uma democracia que tem “resquícios” autoritários, vivemos, antes, uma perenidade da sistemática violação às populações historicamente marginalizadas. Se até pouco tempo pensava-se que a repressão esteve voltada quase que exclusivamente contra militantes e organizações de esquerda, sobretudo urbanas, hoje não há como negar que a extensão das violações foi muito maior, atingindo brutalmente povos indígenas, comunidades ribeirinhas, camponeses, moradores de periferias (sobretudo através de grupos de extermínio, como o emblemático Esquadrão da Morte), homossexuais, travestis e outros grupos que tinham formas diversas de organização política, ou foram violados em nome de projetos políticos autoritários.

    Simultaneamente, ao aprofundarmos nosso conhecimento sobre as estratégias, os aparatos e a sistematicidade do poder mortífero e desaparecedor do Estado ditatorial brasileiro, notamos, sem dificuldade, que tais mecanismos seguem atuais: as polícias mantém seu modus operandi arbitrário e seletivo, assim como sua atuação violenta e letal; os Institutos Médicos Legais encobrem, em seus laudos, a brutalidade das mortes; pessoas identificadas seguem sendo enterradas sob a designação desumana de “indigentes”; o encarceramento tira essa população de circulação e das nossas vistas; e o poder judiciário segue absolvendo os agentes estatais e naturalizando as diversas faces do genocídio brasileiro.

    ruralistas
    Foto: Caio Campos

    Da mesma forma, povos indígenas e comunidades que estiverem no caminho de grandes projetos políticos, continuam sendo violados pelo Estado. Seguimos sendo o país do crescimento, do latifúndio e das usinas, numa versão pós-moderna do projeto desenvolvimentista da ditadura.
    Corpos se acumulam na nossa sangrenta democracia e perdem sua humanidade, deixando familiares, amigos e comunidades no mesmo desamparo daqueles que tiveram seus entes queridos mortos e desaparecidos durante os anos de chumbo.

    Se, recentemente, assistimos a significativos avanços no campo da justiça da transição em relação aos crimes perpetrados na ditadura, o mesmo não pode ser dito em relação às violações que seguem acontecendo na democracia. Ao contrário, vemos o governo federal, em parceria com as esferas estaduais e municipais, promovendo e validando a militarização, a criminalização e o extermínio da pobreza. Não há exagero nenhum em nomear desta maneira a “ocupação” militar da Maré, do complexo do Alemão, de favelas com UPP, e o encarceramento massivo. Os desaparecidos de ontem são os Amarildos de hoje; os waimiri-atroari de ontem são os munduruku de hoje.

    É por tudo isso que vemos com muito entusiasmo a sugestão da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, de incluir, como atribuição do Estado brasileiro, a realização de buscas e identificações de mortos e desaparecidos do período democrático, assumindo, com esse gesto, o vínculo entre os dois períodos históricos. Consideramos igualmente fundamental a proposta de incluir aquelas populações historicamente esquecidas, como indígenas, camponeses, operários, moradores das periferias urbanas, dentre outros, como grupos violados pelo Estado brasileiro, fazendo cair por terra a maneira restritiva como o conceito de “morto e desaparecido político” é tradicionalmente compreendida.

    Foto índios desaparecidos
    Foto: Peu Robles/João e Maria.doc

    Ao reconhecer que o Estado jamais deixou de ser violador, a CEMDP aponta para a responsabilidade histórica das instituições estatais em revelar a verdade, preservar a memória dos que tombaram, responsabilizar os envolvidos e promover reparação, incluindo, finalmente, aqueles que foram e seguem sendo esquecidos por sua condição social, racial, sexual e territorial. Assumindo o papel que lhe cabe nesse momento de redefinição da agenda transicional, a Comissão Especial incorpora as reivindicações de diversos movimentos sociais, que seguirão exigindo dignidade e respeito aos direitos fundamentais daqueles cujas vozes nunca são ouvidas pelo Estado.

    Como não é apanágio de nossas ditaduras a ocorrência de graves violações de direitos humanos praticados por instituições do Estado, e tampouco a inanidade do Poder Judiciário em esclarecer os crimes e identificar os responsáveis, é imprescindível – para além do aprofundamento das atuais Comissões da Verdade sobre a Ditadura – a criação de Comissões da Verdade dos Crimes de Estado no Período Democrático, que lancem luz sobre a gravidade das violações do presente.

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