PL aprovado no Senado pode dar aval a torturas praticadas pela PM, dizem defensores de direitos humanos

    Proposta contribui para reduzir encarceramento, mas emenda representa ameaça de retrocesso ao ampliar poder de atuação da Polícia Militar
    audiência de custódia
    Foto: Reprodução

    *Arthur Stabile, especial para a Ponte

    O projeto de Lei (PLS) 554/2011– que regulamenta a chamada audiência de custódia, nome dado ao procedimento de levar presos em flagrante ao juiz de execução num prazo de 24 horas – foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado nesta quarta-feira (09/09), em meio a críticas.

    Defendida por entidades de direitos humanos, a audiência de custódia está prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos, ou Pacto de San José da Costa Rica, e desde fevereiro está sendo aplicado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com o objetivo de reduzir o encarceramento.

    “A falência completa do sistema penitenciário pedia uma resposta”, disse, à Ponte, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Marco Aurélio de Mello. Para ele, a decisão foi muito importante porque, na realidade, a audiência de custódia estava prevista no Código de Processo Penal, mas tem sido ignorada. “A grande questão é que a prisão preventiva no Brasil deveria ser exceção, mas virou regra”, disse.

    Porém, há críticas em relação ao texto no que se refere à atribuição da investigação, já que, na emenda aprovada, o termo “delegado de polícia” foi substituído por “autoridade policial”, atribuindo a função a qualquer funcionário da corporação, como Policiais Militares. O relator da proposta, senador Humberto Costa (PT-PE), defendeu que a competência fosse exclusiva dos delegados de polícia. Porém, a maioria dos senadores aprovou a emenda defendida pelo senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP).

    Ampliação papel PM

    De acordo com a defensora pública Daniela Skromov de Albuquerque, essa emenda “amplia de maneira inconstitucional o papel da PM”. “Lavrar flagrante é função da polícia civil. Delegar isso para a PM só através de emenda constitucional”, avalia.

    A coordenadora do núcleo de direitos humanos da defensoria pública de São Paulo explica que uma das funções da audiência de custódia “é aferir se o detido sofreu maus tratos ou tortura quando da prisão, que é feita majoritariamente pela PM. Ou seja, a escolta pela própria PM pode servir como forma de evitar que o preso fale em juízo o que sofreu”.

    A votação terminou com 18 votos a favor e uma abstenção, e teve caráter terminativo no Senado, ou seja, pode haver a possibilidade de apresentação de recurso, e, depois disso, deverá ainda passar por votação da Câmara dos Deputados.

    Retrocesso

    O advogado Ariel de Castro Alves é um dos defensores da realização das audiências de custódia, mas acredita que a forma como o PL aprovada representa um retrocesso. “Tratados internacionais definem essa necessidade [das audiências]”, mas a emenda é “um grande equívoco, um erro gravíssimo. Qualquer autoridade policial poderá fazer o ato de prisão em flagrante, um escrivão, um soldado na rua. Ela abre margem para vários abusos. Da forma que ficou, está tão aberto, que é possível que nem se leve mais as pessoas para as delegacias, já se julga na rua, se faz tudo na rua, os reconhecimentos em botecos. É uma avacalhação”, afirma. Para ele, “hoje, ao menos os delegados são pessoas formadas em direito, verificam se o flagrante da polícia cumpriu a legalidade ou não. Ao ter a militarização da PM, usurpa as funções da policia civil. Daí, certamente, abre um precedente muito perigoso para uma militarização completa da segurança”.

    O ministro do STF Marco Aurélio Mello discorda e explica que a discussão não pode ficar no âmbito de quem terá mais ou menos poder no julgamento: “A PM é uma polícia repressora. Ela prende o sujeito na rua e precisa necessariamente encaminhar a outra instância. Nesse caso, vai encaminhar diretamente à Justiça. A polícia judiciária, que é civil, tem relação direta com a Justiça e vai dar o andamento desses processos. É tempo de pensarmos no todo. O antagonismo é péssimo”, salientou.

    STF

    No mesmo dia, o Supremo Tribunal Federal também discutiu o tema, por causa da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347 – encaminhada pelo legislativo à Corte, pedindo medidas urgentes de correção ao sistema prisional -, e endossou o prazo de 24 horas para audiência de custódia para os casos de flagrante e o prazo máximo de 90 dias para que os estados passem a adotar essa medida.

    Além disso, determinou a liberação do Fundo Penitenciário Nacional, uma verba destinada especificamente para melhorias do sistema, mas que, de acordo com o ministro relator Marco Aurélio Mello estava sendo utilizada para outros fins. “Os recursos do fundo na teoria estavam bloqueados e por isso a votação aprovou o descontingenciamento, porque, na prática, a verba estava sendo desviada e isso é ilícito, porque é um dinheiro que visa ser empregado no sistema prisional, nada mais que isso”, afirmou o ministro.

    Em junho deste ano, o Ministério da Justiça por meio do departamento Penitenciário Nacional divulgou um levantamento que mostra que quatro em cada dez presos estão atrás das grades guardando julgamento. Em mais de um terço das unidades prisionais do país, 60% deles estão há mais de 90 dias na cadeia.

    O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) faz o monitoramento das audiências de custódia em São Paulo e avalia como positivo o sistema até o momento.

    De acordo com o IDDD, independentemente do projeto de lei, já há outros 16 estados – além de São Paulo – que firmaram acordo com o IDDD e o CNJ para começarem com as audiências de custódia. O presidente do IDDD, Augusto de Arruda Botelho afirma que os dois resultados práticos que puderam ser observados foram o desafogamento bastante significativo das prisões na cidade e a diminuição de violência policial nas prisões em flagrante, já que nos casos em que há indícios de maus tratos ou tortura, em 24 horas a denúncia é encaminhada as autoridades competentes. “Há uma função pedagógica e preventiva. E também tem a questão da própria punição, já que o mau policial sabe que, se ele usar da violência, o detido chegará na frente de um juiz em menos de 24 horas e as marcas denunciarão o óbvio. É bem diferente um preso que vai ver o juiz pela frente três quatro meses depois de ser capturado. As marcas já saíram e, às vezes, até perde-se o interesse em fazer a denúncia”, explica.

    O ministro Marco Aurélio Mello concorda e ressalta que o julgamento não pode acontecer na rua. “O mais importante disso tudo é que o conduzido tem que ser tratado como ser humano não como um animal, especialmente porque não podemos nos esquecer da presunção da inocência. Não se pode fazer justiça com as próprias mãos, principalmente quando se tem uma estrela no peito e um revólver na cintura”, conclui.

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