PM que matou jovem com tiro nas costas em favela no Rio cai em contradição

    Interrogado no dia em que Johnatha de Oliveira Lima foi morto, o policial negou participação na ocorrência;  balística concluiu que o disparo partiu de sua arma

     

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    Johnatha de Oliveira Lima. Foto: arquivo familiar

     

    Em audiência realizada no TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) ontem (04/05), sobre o caso de Johnatha de Oliveira Lima, assassinado com um tiro nas costas aos 19 anos de idade, na favela de Manguinhos, na Zona Norte do Rio de Janeiro, em 2014, o policial militar Alessandro Marcelino de Souza, acusado de ser o autor do disparo que matou o jovem, caiu em contradição.

    Além do policial, lotado na UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) de Manguinhos, foi ouvida a também policial Larissa Elaine Silva da Rocha, última testemunha de defesa a depor na primeira fase do processo, que procurou criminalizar a vítima, acusando-a de “traficante”.

    Johnatha foi baleado quando, por volta das 16h30 do dia 14 de maio de 2014, voltava para a casa de sua família, na favela de Manguinhos, após deixar um pavê na casa de sua avó e levar a namorada em casa. No caminho de volta, passou pela Rua São Daniel, no interior da comunidade, onde ocorria um conflito entre policiais militares da UPP local e moradores, que, indignados com a truculência dos agentes, arremessavam pedras. Os PMs responderam à manifestação dos moradores com disparos de arma de fogo, atingindo o jovem, que apenas passava pelo local, sem sequer estar envolvido no conflito, de acordo com testemunhas que presenciaram o momento em que ele foi baleado.

    O jovem caiu no chão e foi levado por moradores à UPA (Unidade de Pronto Atendimento), onde já chegou morto. O laudo pericial concluiu que a vítima deu entrada na UPA sem vida e com “ferimento ovalar em região sacrococcígea [cóccix] compatível com as produzidas por projétil de arma de fogo”. A ocorrência foi registrada na 21ª Delegacia de Polícia, em Bonsucesso, e a perícia de local não foi realizada porque este não estava preservado e a vítima já tinha sido levada à UPA, segundo documento com o “resumo da dinâmica do crime”.

    O PM que atirou contra o jovem mudou a versão apresentada anteriormente. No registro da ocorrência, consta que “o policial Alessandro Marcelino de Souza, ouvido na data do fato, negou que tivesse participado da ocorrência que gerou o fato em apuração”, alegando ter “voltado à UPP e lá permanecido até a chegada do restante da guarnição a qual trazia uma sacola contendo entorpecente”. Também negou ter realizado “qualquer disparo” e afirmou “que não vira qualquer colega atirar”.

    Mas um exame pericial de confronto balístico concluiu que o projétil que atingiu Johnatha partiu da arma do PM Alessandro Marcelino de Souza, como mostra o fragmento do documento abaixo, que consta nos autos do processo.

     

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    Policial tenta criminalizar vítima ao depor em defesa do colega

    Última testemunha de defesa a depor no processo de Johnatha, a soldado Larissa Elaine Silva da Rocha se referiu à vítima como “traficante” diversas vezes durante seu depoimento, mesmo não havendo absolutamente nenhum indício de envolvimento do jovem com o tráfico, o que foi reafirmado por todos os moradores que testemunharam o momento em que ele foi atingido pelas costas enquanto passava pela zona do conflito na comunidade.

    Segundo ela, os policiais estavam no contêiner quando foram notificados de que havia “material entorpecente” abrigado em um local e se dividiram em dois grupos para ir até o local – ela estava em um e Marcelino em outro. “Nós montamos um cerco para ver se conseguíamos pegar o tráfico em si e efetuar alguma prisão. Era o nosso dia a dia”, disse. E seguiu dizendo que, ao saírem da casa onde encontraram “material entorpecente” e dinheiro, ela e os colegas ouviram muitos disparos. “Não tinha aglomeração de moradores ainda, eram mais os traficantes entrando em confronto com a gente”, disse ela, que alegou ter efetuado um disparo.

    Ela afirmou que, quando estava na 21ª DP, foi informada de que tinha dado entrada na UPA um rapaz ferido e, ao se encaminhar para lá para “reconhecer se ele estava no confronto”, um colega lhe disse que era “o Doquinha, vulgo do Johnatha”. “Aí a gente descobriu que era o Doquinha, que a gente já sabia que fazia parte do tráfico de Manguinhos, para a gente, beleza, que a gente já tinha avistado ele no meio do confronto e descobrimos que um dos mortos era ele”, disse, despertando indignação entre as pessoas que assistiam a audiência e tinham conhecimento de que Johnatha nunca teve envolvimento com o tráfico.

    “Meu filho foi assassinado com um tiro nas costas aos 19 anos de idade e eu é que tenho que provar que ele não podia ter sido assassinado!”

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    Ana Paula Oliveira após audiência no TJ-RJ. Foto: Luiza Sansão

    Em entrevista à Ponte após a audiência, Ana Paula afirmou ser revoltante ainda ter que provar que seu filho não podia ter sido assassinado.  “Eu sou a mãe, continuo tendo o maior orgulho de ser mãe dele, eu sei quem era o meu filho. É muito revoltante ter que provar quem era o Johnatha. Meu filho foi assassinado com um tiro nas costas aos 19 anos de idade e, no entanto, eu é que tenho que provar que ele não podia ter sido assassinado!”, indigna-se. Johnatha era estudante e servia o Exército havia alguns meses.

    “Ao invés de saberem da vida particular do réu, querem saber da vida do meu filho. Mas eu não tenho nada a esconder. Quem o conheceu sabe quem ele era. Se meu filho fosse algum bandido, jamais os moradores teriam colocado a cara e ido para a delegacia, revoltados, serem testemunhas do que aconteceu. Porque, infelizmente, quando morre um bandido, as pessoas até ficam recolhidas”, diz Ana Paula. “Ter que ver, mais uma vez, esse policial sair livre, enquanto eu estou condenada a viver o resto da vida sem meu filho, é revoltante. É revoltante ver as alegações deles, mas fico feliz em ver que eles caíram em várias contradições”, conclui.

    Versão de moradores que presenciaram a morte do jovem é a mesma

    Uma das testemunhas, que não será identificada para sua segurança, viu o momento em Johnatha foi atingido e relatou à Ponte que houve um tumulto no qual moradores arremessaram pedras na direção dos policiais e estes efetuaram disparos de armas de fogo na direção dos moradores, indiscriminadamente. Mas, segundo ela, ao ser indagada sobre as afirmações dos policiais na audiência, “estavam todos à vista, não havia nenhum traficante e ninguém escondido atrás de poste nem de nada, como eles disseram”.

    Ela foi à rua buscar seus filhos, que estavam jogando bola, para protegê-los da confusão quando viu tudo. “Foi no meio da confusão que o Johnatha passou, e eu ainda falei ‘volta, meu filho, que o negócio não está muito bom aqui, não’. Ele voltou, mas eles deram um tiro. Quando eu puxei meu filho e olhei, o Johnatha tinha sido atingido nas costas, um tiro bateu no chão e outro nele. Então o que eles disseram foi completamente diferente do que aconteceu”, conta a testemunha.

    Outra testemunha afirmou ter visto exatamente a mesma cena que a primeira, “acrescentando ter visto o momento exato em que a vítima, ao ser atingida por um dos disparos realizados pelos policiais militares, saiu correndo e com as mãos nas costas gritando por socorro”, de acordo com os termos de declaração da ocorrência.

    Houve ainda mais três testemunhas presenciais, que narraram a mesma versão dos fatos em depoimentos também registrados nos autos do processo. As cinco testemunhas afirmaram, em novas oitivas após o registro da ocorrência, que os policiais efetuaram vários disparos de arma de fogo, tanto para o alto quanto na direção da multidão, e que um desses disparos foi o que atingiu a vítima. Todas negaram também que houvesse qualquer morador armado.

     

     “Quando o Johnatha chegou na nossa vida, ele chegou trazendo luz, alegria. Ele foi o primeiro neto da minha mãe, o primeiro sobrinho das minhas irmãs, então foi muito amado, muito paparicado. E aí, acontece uma coisa dessa. A gente já sofria quando a gente via acontecer com outros jovens, mesmo quando eram próximos, e aí de repente acontece com um pedaço da gente”

    Ana Paula Oliveira, mãe de Johnatha

     

    “Estamos confiantes de que ele irá a julgamento popular”, diz advogado

    Com as oitivas da última testemunha de defesa, a policial militar Larissa Elaine Silva da Rocha, e do acusado, policial Alessandro Marcelino de Souza, concluiu-se a fase da audiência de instrução. O processo passa agora à fase das alegações finais, do Ministério Pública, da assistência de acusação e da defesa, após o que o juiz decidirá se o PM acusado pela morte de Johnatha irá a julgamento popular.

    “Estamos confiantes de que ele seja pronunciado e mandado para julgamento popular”, afirma o advogado da assistência de acusação, Daniel Lozoya. “As contradições, incongruências e mentiras que eles contaram são importantes e serão exploradas no julgamento”, completa.

     

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    Ana Paula (centro) tem o apoio de outros familiares de vítimas antes da audiência de seu filho, no TJ-RJ. Foto: Luiza Sansão

    PMs da UPP de Manguinhos têm histórico de violência contra moradores

    Policiais Militares da UPP de Manguinhos estão envolvidos na morte de pelo menos três jovens desde a implementação da unidade, em janeiro de 2013. A primeira vítima foi Mateus Oliveira Casé, morto em 20 de março de 2013, aos 16 anos. Paulo Roberto Pinho de Menezes foi espancado até a morte por policiais da UPP local na madrugada de 17 de outubro de 2013, quando tinha 18 anos, caso acompanhado pela Ponte. Johnatha, em 14 de maio de 2014, e, no mês seguinte, Afonso Maurício Linhares, em 18 de junho de 2014.

    “A ronda dos policiais é assim: se eles pegarem algum menino fumando maconha, a abordagem já é tapa na cara, chute nas partes íntimas, todo aquele terror psicológico. A gente sempre fica apreensiva mesmo”, diz a mãe de Johnatha.

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