Armas de choque nas mãos da Polícia Civil são vistas com preocupação por especialistas

134 equipamentos foram adquiridos para a Polícia Civil de São Paulo e devem ser usados a partir de novembro; pesquisadores pedem fiscalização do MP e auditoria dos aparelhos

Segundo SSP, policiais estão sendo treinados para uso da arma com foco no manuseio e práticas táticas | Foto: Polícia Civil, divulgação

A compra de 134 armas de eletrochoque para uso da Polícia Civil de São Paulo é vista com desconfiança e preocupação por especialistas ouvidos pela Ponte. Os equipamentos adquiridos por R$ 962 mil devem chegar ao país até novembro e, segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP), deve ter uso imediato.

Menos letais que armas de fogo, esses aparelhos oferecem risco de “lesões significativas”, de acordo com documento da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o tema. Em março deste ano, um homem de 45 anos morreu em São José dos Campos, no interior de São Paulo, após levar descarga elétrica de um aparelho de choque usado pela Polícia Militar. Para pesquisadores consultados pela reportagem, há ações dos agentes civis em que esse armamento pode ser aplicado de maneira mais segura que outros métodos, mas é necessária fiscalização do manejo correto para evitar abusos e tortura.

Esse tipo de equipamento é amplamente utilizado por policiais militares pelo país. Em São Paulo, o uso desse tipo de equipamento cresceu 25% durante o primeiro mês do governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos). A Ponte consultou o pregão de compra dos equipamentos que serão destinados aos policiais civis. Aberto em setembro do ano passado, durante a gestão de Rodrigo Garcia (PSDB) a compra previa a aquisição de 3.700 aparelhos e de 5.500 cartuchos.

O modelo de arma de eletrochoque comprado para a Polícia Civil funciona entregando pulsos de eletricidade que fazem com que os músculos da pessoa atingida se contraiam de forma descoordenada — esse efeito é chamado de incapacidade neuromuscular. De modo simplificado, no momento do disparo a carga elétrica é projetada por fios que possuem sondas em suas extremidades. Ao encostar na pele, elas provocam a descoordenação muscular. 

Em 2020, a ONU lançou uma espécie de guia para forças de segurança sobre o uso e riscos oferecidos por equipamentos considerados menos letais. Ao falar sobre os taser, outra forma como as armas de choque são chamadas, a organização reconhece riscos de lesões que esses equipamentos podem oferecer e diz que os ferimentos mais graves e até morte podem ocorrer em determinados grupos, como pessoas com problemas cardíacos ou que usaram entorpecentes próximos do momento em que foram atingidos. 

Há alerta ainda para o uso do eletrochoque contra pessoas muito magras (que pode oferecer risco de lesão interna), e em pessoas com epilepsia, em que a descarga elétrica pode causar convulsões. A ONU aconselha ainda que haja treinamento suficiente para que o taser não seja usado contra pessoas que por algum motivo —  barreira linguística, pessoas com neurodivergência, deficiências auditivas ou visuais — resistam a algum pedido da autoridade policial. 

O que também preocupa a ONU é que a arma de eletrochoque pode causar sofrimento “tão inteso que possa equivaler a um elemento de tortura ou tratamento ou punição cruel” (em tradução do texto orginal) quando o equipamento é usado em um modo chamado de “drive-stun” ou de “atordoamento”. Ele é aplicado em contato direto do equipamento com o corpo e é considerado bastante doloroso. 

No vídeo abaixo é possível ver a execução deste modo. O equipamento que aparece nas imagens não é o mesmo adquirido para a polícia paulista, que comprou um modelo mais parecido com uma pistola e que usa projéteis. 

Já no vídeo abaixo é possível ver a ação de equipamento parecido com o que foi adquirido em São Paulo. As imagens são da empresa americana Axon que firmou contrato com a SSP. Nas imagens é possível ver como é feito o disparo e como a sonda atinge o corpo.  

A Omega Research Foundation também produziu um guia sobre os equipamentos usados pelas forças de segurança e polícias. Organização do Reino Unido, a Omega faz pesquisa sobre uso de armas letais e menos letais. 

O relatório traz não só armas de choque, mas também outros equipamentos que usam descarga elétrica para provocar ação de imobilização. Alguns deles, como mangas, algemas e cintos de choque têm recomendação da Omega para serem proibidos. Esse não é o caso das armas de eletrochoque, que devem ter uso em “conformidade com os padrões internacionais de direitos humanos”. 

O pesquisador da Omega Matthew McEvoy explica que há diversas armas de eletrochoque, mas que elas podem ser divididas em dois grupos: com projéteis e contato direto.“A posição da minha organização é que os dispositivos que só funcionam quando colocados em contato direto com um indivíduo não devem ser usados para a aplicação da lei, pois são propensos a abusos”, diz. 

Esses dois tipos são representados nos vídeos acima mostrados. O primeiro é de uma arma de contato e o segundo, que mostra o equipamento adquirido pela SSP, é de projétil. 

“As cargas elétricas infligidas pelas armas são poderosas e isso significa que elas estão suscetíveis a abusos e podem causar sérios efeitos à saúde, como parada cardíaca ou até morte. Além disso, a perda temporária de controle muscular pode fazer com que a pessoa colapse sem que consiga se proteger, levando a lesões secundárias que podem ser graves”, comenta o pesquisador. 

Ele não vê como problema o uso das armas pela Polícia Civil, que, por regulamentação não faz rondas ostensivas, por exemplo. Contudo, McEvoy diz que há circunstâncias em que essa polícia pode usar o equipamento como alternativa mais segura do que armas de fogo. 

“Esse cenário pode ocorrer quando um suspeito está sendo preso por ordem de um juiz, por exemplo. Entretanto, cabe à autoridade responsável pela prisão escolher o melhor momento possível para executar o mandado, quando o risco de violência for menor”, afirma. 

Modelo de arma de eletrochoque comprado pela Polícia Civil de São Paulo | Foto: SSP, reprodução

McEvoy pontua que é necessário treinamento rigoroso e supervisão para evitar abusos. Um dos instrumentos que podem ajudar no controle do uso, comenta o pesquisador, são os chips de dados que os equipamentos possuem e que registram a data e a hora da ativação, a duração do choque elétrico, o modo de uso, etc.

“Esses dados e qualquer material audiovisual capturado por câmeras de vídeo devem ser colocados à disposição do Ministério Público, Corregedoria, a Defensa Pública, etc”, completa. 

A presença dos chips é exigida pela norma técnica nº 002/2020 elaborada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. O texto define parâmetros sobre o uso de armas de eletrochoque e como elas devem ser testadas e quais especificações devem seguir. Esse documento é um avanço no sentido de regulamentação sobre o uso de armas menos letais.

A Ponte já mostrou os problemas da falta de regulamentação no uso de outros equipamentos menos letais, como cassetetes, pelas forças de segurança. As legislações em vigor (como a lei 13.060/2014) determinam a priorização do uso de armas de menor potencial ofensivo quando houver possibilidade, e também que a atuação dos agentes deve se pautar na proteção dos direitos humanos (texto da portaria interministerial 4.226/2010).

No caso das armas de eletrochoque, a norma técnica coloca como requisito técnico mínimo que um aparelho mantenha o armazenamento de dados de 500 disparos e emissão de relatório contendo, no mínimo, data e hora do acionamento, cartuchos disparados, número de série, e duração do acionamento. “Tal solução deverá permitir auditoria dos dados armazenados no dispositivo se necessário, independentemente da tecnologia utilizada”, diz o texto

Há também necessidade de identificação do número de série individualizado no equipamento e cartucho operacional.

Medo de torturas 

Para Carolina Grillo, coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF), o uso da arma de choque faz mais sentido no caso dos policiais militares do que dos policiais civis. 

“Faz algum sentido [o uso dessas armas] se tratando de Polícia Militar, agora o uso de equipamento de choque não é uma coisa tão frequentemente utilizada pela Polícia Civil, ainda que possa acontecer alguma situação de alguém ficar violento dentro de uma delegacia e precisa ser neutralizado com choque e não tiro, mas não parece o caso”, comenta. 

Carolina avalia com desconfiança a medida ao relembrar o histórico de tortura praticada por agentes da Polícia Civil, principalmente durante a ditadura militar. “O grande medo, o que eu acho que é a desconfiança maior que paira sobre isso, é porque historicamente a Polícia Civil é sabidamente, isso já foi bastante estudado e denunciado, sempre utilizou práticas de tortura como forma de investigação”, argumenta. 

“Até hoje isso é algo que há um empenho para erradicar. Tanto da tortura como um método de investigação quandt da tortura como forma de punição extrajudicial”, complementa. 

A pesquisadora fala ainda que o uso de choque elétrico é uma das formas estudadas e relacionadas a prática de tortura dentro da Polícia Civil. “Nas práticas de investigação, inclusive, historicamente utiliza-se choque elétrico como uma das formas de produção de dor nas vítimas de tortura para que elas revelem informações úteis ou confessem algum crime”, diz Carolina. 

Ela defende que o Ministério Público atue de maneira “mais incisiva” para controlar o uso desse tipo de equipamento e do trabalho da Polícia Civil como um todo. Essa visão é corroborada pelo antropólogo e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Robson Rodrigues. 

“Nós temos que verificar na prática, na situação concreta, e, a partir disso, os órgãos fiscalizadores têm que atuar”, diz sobre a atuação do MP. “O uso quando é arbitrário, abusivo, isso cabe principalmente ao Ministério Público, que é a instituição fiscalizadora da ação policial”, completa. 

Diferente de Carolina, Robson não vê problemas no uso das armas por policiais civis desde que seja empregado dentro da atribuição policial. 

“Nesse caso, ela [a polícia] usar uma força menos letal para o exercício regular das suas atribuições é legítimo. Fora desses limites legais, eu acho que vai haver um desvio, e é um risco”, comenta. Ele defende que a Polícia Civil atue no que lhe é designada e use o equipamento nas situações que lhe cabe. 

“Não é atribuição da Polícia Civil, por exemplo,fazer o policiamento ostensivo ou estar ostensivamente na rua com algum tipo de armamento. É preciso fazer o uso dentro das suas atribuições legais. No caso, uma investigação policial por meio de mandado de busca, uma prisão dentro das investigações do inquérito policial. Neste caso, usar uma arma menos letal é válido e justo”, afirma o pesquisador. 

Mortes por armas de eletrochoque 

No Brasil há casos de morte por armas de eletrochoque. Um dos casos mais recentes ocorreu em São José dos Campos em março deste ano. A vítima era um homem de 45 anos que foi atingido por três disparos de arma manejada por um policial militar. O caso ainda está em investigação, mas no depoimento dos policiais envolvidos é relatado que eles teriam suspeitado que a vítima tinha usado cocaína antes de ser alvejada.

A ação relatada não seguiu o que determina à ONU sobre o uso da arma, que diz que o eletrochoque não é aplicado para esse tipo de situação. 

Em 2012, Carlos Barbosa Meldola, 33 anos, morreu após ser atingido por arma de eletrochoque por um policial militar em Florianópolis, Santa Catarina. Em entrevista ao g1, o comandante do batalhão onde o policial atuava disse que os PMs atiraram porque Meldola havia feito uso de drogas. 

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Também ao g1, o delegado Antônio Claudio de Seixas Joca, responsável pela investigação do caso, disse que os policiais que usaram taser tinham treinamento específico para manuseio, sem citar o descumprimento do que pedem organizações de direitos humanos. 

O caso motivou o projeto de lei 3.599/2012, que propunha a proibição do uso de armas de eletrochoque em pessoas no país. A proposta do então deputado federal Onofre Santo Agostini (PSD/SC) e que leva o nome de Carlos Barbosa Meldola, acabou arquivada em 2014 sem ser apreciada em plenário. 

Outro lado

A SSP respondeu parcialmente os questionamentos feitos pela reportagem da Ponte. A secretaria não respondeu, por exemplo, quantos profissionais serão capacitados para uso e nem de que área. 

Por meio de nota, a SSP informou que os agentes passam por processo de treinamento com foco em habilidade de manuseio e práticas táticas. 

Veja nota na íntegra 

A Polícia Civil será equipada com 134 armas de eletrochoque com investimento previsto de R$ 962 mil. O contrato para fornecimento das armas de incapacitação foi oficializado com a empresa Axon Enterprise no início deste mês e a previsão é que as entregas sejam concluídas até novembro. Assim que adquiridos, os dispositivos serão enviados às unidades operacionais e não serão elencadas por uma questão estratégica de segurança pública.

Para garantir o uso seguro e eficaz do taser, a polícia está passando por um processo de treinamento para capacitar seus agentes. Esse treinamento tem como objetivo fornecer habilidades específicas para o manuseio do taser, integrando-o como parte das táticas de controle de situações de risco. A iniciativa busca oferecer uma opção menos letal em confrontos, visando reduzir os riscos tanto para os policiais quanto para as pessoas envolvidas.

A adoção dessa tecnologia é um reflexo do contínuo aprimoramento das práticas policiais, com o objetivo de proporcionar uma resposta mais controlada e menos letal em situações desafiadoras, visando o bem-estar da sociedade.

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