Mulher negra que foi pisoteada no pescoço por policial é denunciada por agressão contra PMs

Dona de bar e dois homens foram acusados de resistir à prisão, ofender e agredir dupla de policiais em 2020; vídeo divulgado na época desmentiu versão de cabo e soldado que alegaram terem sido golpeados com barra de ferro durante abordagem

Sequência mostra PM pisando em mulher e depois apontando arma para moradores | Foto: Reprodução

O Ministério Público de São Paulo denunciou uma mulher negra que teve o pescoço pisado por um PM e outros dois homens por lesão corporal, desacato, resistência e infração de medida sanitária. A denúncia, feita pela promotora Flavia Lias Sgobi nesta terça-feira (19/10), ratifica o entendimento da delegada Isabela Pereira Bahia, que entendeu que a dona de bar e seus dois clientes resistiram à prisão e ofenderam e agrediram os soldado João Paulo Servato e o cabo Ricardo de Morais Lopes em maio de 2020 em Parelheiros, na zona sul da capital paulista.

A promotora levou em consideração a versão dos policiais e os exames de corpo de delito que indicaram lesões leves nas mãos deles. O vídeo que mostra parte da abordagem não foi mencionado na denúncia. Essa investigação, que tramita no Tribunal de Justiça, é separada da apuração contra os dois PMs que está em curso na Justiça Militar. Servato foi acusado por lesão corporal grave, falsidade ideológica, inobservância de lei, regulamento ou instrução e por constranger a mulher. Já Lopes foi denunciado pelos dois últimos crimes. Nenhum dos dois foi preso e o caso só tomou repercussão quando um vídeo divulgado pelo programa Fantástico, da TV Globo, mostrou em julho do ano passado Servato pisando no pescoço da mulher negra rendida.

À Ponte, o advogado Felipe Morandini, que representa a mulher, disse que ficou “incrédulo” com a denúncia. Somadas, as penas máximas podem chegar a quatro anos de reclusão. “Estamos falando de fatos públicos e notórios, sendo que a denúncia se baseia em um boletim de ocorrência com uma versão completamente oposta à todas as imagens que foram divulgadas no mundo inteiro”, critica. “A promotora se baseia em uma denúncia falsa, fabricada, sendo que um dos crimes que esses policiais são denunciados na Justiça Militar é justamente o de falsidade ideológica, então se isso é um documento apto a gerar uma persecução penal, então o direito penal no Brasil acabou, é um absurdo”.

De acordo com ele, a dona do bar não conseguiu mais trabalhar nem obter renda. “Além das sequelas psicológicas, ela fraturou a tíbia, teve uma série de complicações decorrente dessa ação, e não conseguiu voltar à vida normal. O bar está fechado e ela não consegue emprego porque as pessoas sabem quem ela é e, com medo de represálias, não a contratam, e ela vive com a ajuda dos filhos”, relata o advogado.

Cabe ao Tribunal de Justiça analisar se aceita ou não a denúncia para dar prosseguimento ao processo. A reportagem não localizou defensores dos outros dois homens.

Nesse processo de agressão contra os PMs há apenas as versões deles e não constam informações da investigação do crime de abuso de autoridade que passou a ser investigado pela Polícia Civil logo após a repercussão do caso, quando a mulher registrou um boletim de ocorrência, em 12 julho de 2020, e que acabou remetido 12 dias depois à Justiça Militar por determinação da juíza Adriana Barrea, do Foro Criminal da Barra Funda do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), acolhendo o entendimento do delegado Julio Jesus Encarnação.

De acordo com o inquérito do crime de abuso de autoridade, antes de ser remetido à Justiça Militar, que a Ponte teve acesso, a comerciante disse que mora no bairro há 29 anos e que abriu seu bar por volta das 13h. Disse que havia dois clientes, José e Luís (nomes fictícios) que estavam no local e que, em determinado momento, pediu a um deles para abaixar o volume do carro de som, que teria sido atendido. Depois, relatou que ouviu barulhos do lado de fora do estabelecimento e saiu, com um rodo na mão, para ver o que estava acontecendo. Ela afirma que viu José estava ensanguentado apanhando de um policial.

À Ponte, na época, ela contou que nem chegou a ser abordada e que foi agredida assim que tentou intervir contra as agressões ao cliente, tendo investido com um rodo por três vezes contra o policial, como também mostra a gravação. “O rapaz já tinha apanhado bastante, estava caído. Pedi para o PM [Ricardo] parar, aí o outro [João] me jogou duas vezes na grade do bar”, contou na ocasião, citando ter recebido três pancadas antes de ter o pescoço pisado. “Fiquei tonta com os golpes, ele me deu uma rasteira. O chute pegou na canela e quebrou minha tíbia. Quando eu disse isso, ele falou ‘quebrou porra nenhuma’ e pisou no meu pescoço”, relatou a mulher.

Traumatizada, disse na época que não lembrou ao certo quanto tempo o PM permaneceu com a bota apoiada em seu pescoço e que chegou a desmaiar. “Não foi pouco, não. Colocou todo o peso do corpo. Meu rosto esfregou o asfalto enquanto ele me algemava” , explicou. Depois, o policial ainda colocou o joelho em seu pescoço e sua costela quando estava jogada na calçada. A comerciante foi levada ao pronto-socorro do Hospital Balneário São José e depois ao 101º DP (Jardim Imbuias), junto com os outros dois clientes.

Na delegacia, os policiais deram uma versão completamente diferente. Ricardo e João alegaram que receberam chamado a respeito de descumprimento de quarentena em um bar e tão logo chegaram ao local disseram que haviam quatro pessoas consumindo no estabelecimento, mas antes de conseguirem falar com o proprietário, um deles teria fugido. Ao tentar mandá-lo encostar na parede, os policiais afirmam que Luís teria dito “vou colocar a mão na cabeça não, tio! Vai se fuder”, que chegou a empurrá-los e resistiu ser algemado.

A dupla alegou que, nesse momento, sentiram “pancadas na cabeça e chutes” e que apareceu “uma senhora descontrolada, utilizando uma barra de ferro para agredi-los, acompanhada de outros dois rapazes, que também os agrediam com chutes e socos”. Ricardo disse que conseguiu arrancar a barra da mão dela mulher e enquanto tentavam conter os demais que a população ao redor os chamavam de “vermes”. Disse que a comerciante retornou com um rodo e reiniciou as ofensas verbais e agressões físicas aos policiais militares e que a situação só se acalmou quando solicitaram reforço. Na ocasião, como a comerciante não teve alta do hospital, ela permaneceu sob escolta e não deu depoimento no dia.

A delegada Isabela Pereira Bahia entendeu que a mulher e os dois clientes praticaram lesão corporal contra os PMs, além de desobediência, resistência à prisão e desacato, e também solicitou as prisões dos três. Em audiência de custódia, o juiz Fabrizio Sena Fuzari determinou que a comerciante e os dois clientes respondessem o processo em liberdade, cumprindo medidas cautelares (comparecimento mensal em juízo, não estar fora de casa entre 22h e 6h, não sair da cidade sem autorização), já que os três não têm antecedentes, têm residência fixa e trabalham. Esse caso ainda está em investigação à parte.

Já sobre as agressões cometidas pelos policiais, a comerciante disse que teve conhecimento dos vídeos entre cinco a seis dias depois do ocorrido e afirmou que chegou a ir à Corregedoria da PM, mas não foi atendida “sob a alegação de que não poderiam atender de imediato em função da pandemia de Covid-19”. Ela afirma que os policiais ainda teriam voltado à vizinhança atrás de imagens.

Luís disse que não se recordava como as agressões começaram e que estava “virado” há duas noites, “bebendo e usando drogas”, quando chegou bar, tendo encontrado em seguida seu conhecido José em seu veículo, e passaram a ouvir música já que o carro tinha “som potente”. Em seguida, os policiais apareceram mandando para abaixar o som, o que foi atendido. Ele disse que lembra ter sido imobilizado pelos PMs. Já José disse que assim que desceu do carro, quando abaixou o volume, começou uma discussão com os policiais e foi agredido e imobilizado e que acredita que Luís estava “descontrolado” falando para os policiais “virem para cima” e que não ouviu o que a mulher dizia e depois a viu imobilizada no chão.

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Tanto Ricardo quanto João foram intimados a prestar depoimento na Polícia Civil, mas ambos ficaram em silêncio e disseram que se manifestariam em juízo. Com isso, o delegado Julio Jesus Encarnação entendeu, com base na Lei 13.491/2017, sancionada pelo então presidente Michel Temer e que transfere para a Justiça Militar a investigação de crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis, que é “competência da Justiça Militar Estadual e correlata atribuição investigativa criminal da corregedoria da instituição miliciana estadual a apuração das infrações da legislação penal especial cometidas por policiais militares, em especial dos delitos de abuso de autoridade”. O Ministério Público Estadual também seguiu o entendimento do delegado, que acabou sendo acatado pelo Tribunal de Justiça.

O que diz a polícia

A Ponte solicitou posicionamento da PM e da Polícia Civil a respeito do caso. A assessoria encaminhou a seguinte nota:

O caso foi investigado por meio de inquérito policial pelo 25º DP e relatado à Justiça Militar com indiciamento de um autor por abuso de autoridade. Os dois policiais envolvidos seguem afastados da atividade operacional e respondem a um Inquérito Policial Militar.

O que diz o Ministério Público

A reportagem questionou a assessoria sobre a denúncia e a falta de informações sobre o vídeo e a investigação que paira sobre os PMs.

Por meio de nota, a promotora disse que fez a denúncia com base nos “elementos trazidos ao conhecimento do Ministério Público pela autoridade policial” e que “na fase processual, com direito à ampla defesa, os fatos apurados durante a investigação serão devidamente esclarecidos”

Reportagem atualizada às 20h43, de 20/10/2021, após recebimento de nota da SSP.

Atualização às 10h05, de 21/10/2021, para incluir posicionamento da promotora.

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