Tribunal de Justiça de SP tem histórico de perseguições a magistrados que divergem da maioria

    A representação contra a juíza Kenarik Boujikian por determinar a soltura de presos provisórios que já haviam cumprido pena é um claro recado: não ouse soltar pessoas demais

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    Por Andre Pires de Andrade Kehdi, especial para a Ponte Jornalismo

    Os otimistas costumam dizer que os momentos de crise são perfeitos para que possamos readaptar nossas instituições e fazê-las evoluir. Partindo dessa premissa, o Tribunal de Justiça de São Paulo tem, na sessão do Órgão Especial desta quarta-feira (27/01), uma grande oportunidade para repensar seu compromisso com a independência judicial e evoluir bastante neste tema, sobre o qual tem sido alvo de tantas críticas nos últimos anos.

    O histórico de perseguição a magistrados que têm pensamento divergente da corrente majoritária do Tribunal vem de tempos imemoriais, assim como o uso de normas que permitem a designação de juízes pela cúpula da Corte a seu bel prazer, de modo que a crise a que se chegou é decorrente de uma somatória de eventos que não caberia mencionar aqui.

    Vale, entretanto, trazer à tona os dois últimos episódios dessa série infindável para que o leitor entenda o contexto em que se dará o importantíssimo julgamento desta quarta-feira.

    O primeiro deles é a promulgação da Lei Complementar do Estado de São Paulo n. 1.208/2013, que criou por aqui os Departamentos Estaduais de Execuções Criminais e de Inquéritos Policiais.

    Referida Lei, resultado de Projeto proposto pelo próprio TJSP, conseguiu um feito praticamente inédito: uniu Ministério Público, OAB e Defensoria Pública paulistas com entidades da sociedade civil num movimento que redundou em Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Procuradoria-Geral da República.

    Um dos seus principais vícios é a ofensa às regras constitucionalmente previstas para garantir a independência judicial, na medida em que “A norma impugnada confere competência ao Conselho Superior da Magistratura paulista para designar os integrantes dos departamentos por ela criados, ‘mediante inscrição dos juízes interessados, observado o histórico profissional’ (art. 1o, § 3o, parte final), em total desacordo com as regras constitucionais que regem o acesso de magistrados aos órgãos judiciais. Viola, consequentemente, o princípio do juiz natural.[1]

    A despeito da ADI e dos reclamos de todos os preocupados com o excesso de poder que tal norma deposita na Cúpula da Corte[2], o inconstitucional Departamento de Execuções está em funcionamento, e a inaceitável escolha de juízes com “perfil determinado” foi feita de forma ostensiva pela anterior administração do Tribunal.

    O segundo dos últimos eventos em que a independência judicial foi atacada na Corte paulista diz respeito a um juiz específico, Roberto Luiz Corcioli Filho, que sofreu perseguição por determinar a soltura de acusados de crime que, no entender de alguns membros do Ministério Público, deveriam permanecer presos.

    Se, ao final, a o pedido feito contra ele na corregedoria foi arquivado – já que o modo de se opor a uma decisão é recorrer dela, e não atacar quem a proferiu –, o caso serviu para deixar escancarado que as normas que regem a designação de juízes auxiliares da capital (cargo que então ele ocupava) permitem todo o tipo de favorecimentos, retaliações e pressões que se pode imaginar: Roberto permaneceu, mesmo após o arquivamento, impedido de judicar nas áreas criminal e infracional. Esse “gancho” informal o levou a questionar tal arbitrariedade no CNJ, que obrigou o TJSP a regulamentar, com critérios objetivos e impessoais, as designações, mas a questão chegou, por meio de um Mandado de Segurança impetrado em favor do TJSP, ao STF, onde aguarda resolução.[3]

    É nesse contexto de ataques à independência judicial que se insere o importante julgamento a ser realizado, no qual, mais uma vez, o os atos judiciais que incomodaram foram decisões de soltura dos acusados.

    O Desembargador Amaro Thomé, que anteriormente já havia assinado documento no qual solicitava à Presidência do TJSP o afastamento da juíza substituta em 2º Grau Kenarik Boujikian de sua Câmara por não ter ela acompanhado “as diretrizes e entendimentos consolidados” pelos titulares de cadeiras na 7ª Câmara, desta vez ofereceu representação contra ela por alegada ofensa ao princípio da colegialidade.[4]

    Na sua visão, não poderia a magistrada, ao se deparar com apelações nas quais os acusados já tinham cumprido preventivamente toda a pena a que foram condenados, determinar sua soltura imediata, até que fossem julgados, pelo colegiado, os recursos.

    Leia também: ‘Não poderia fingir que não vi’, diz juíza que pode sofrer processo por soltar presos provisórios

    O nível de distorção do que está contido na referida representação é tão grande que chega ao ponto de se afirmar que as solturas levadas a efeito não teriam respaldo em lei e que “acabaram resultando prejuízos irreparáveis aos réus, na medida em que ocasionaram a suspensão das execuções das penas a eles cominadas.

    Traduzindo em bom português: soltar os acusados – e nem se menciona que o motivo da soltura é o cumprimento integral da sanção! – os prejudicou, exatamente porque os impediu de ficar presos (executar pena).

    Cela superlotada de prisão em Vila Velha (ES), em 2009. Foto: Wilson Dias/Abr
    Cela superlotada de prisão em Vila Velha (ES), em 2009. Foto: Wilson Dias/Abr

    É de se pensar: se o único e principal objetivo de um acusado preso, invariável e naturalmente, é a sua soltura – daí os recursos, habeas corpus etc. – como pode lhe ser prejudicial alcançar a liberdade? Não seria, então, o caso dos acusados representarem contra a juíza, por ter ela determinado sua soltura? Seria curioso perguntar para eles – os prejudicados, na visão do preocupado Desembargador – o que acharam das decisões! Está triste porque foi solto??

    E a falta de previsão legal? Ah… A falta de previsão legal é uma afirmação juridicamente inaceitável, beira à irresponsabilidade. A prisão por mais tempo do que determinada em sentença é algo tão grave que se encontra, para começar, na Constituição Federal, segundo a qual “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença” (art. 5º, LXXV).

    Para a óbvia obrigação de soltar quem se encontre nessa situação – algo que, de tão lógico, nem precisaria de Lei –, o Código de Processo Penal é expresso, em pelo menos três passagens:

    – “Art. 316. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no correr do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. (Redação dada pela Lei nº 5.349, de 3.11.1967)”

    – “Art. 282… § 5º O juiz poderá revogar a medida cautelar ou substituí-la quando verificar a falta de motivo para que subsista, bem como voltar a decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).”

    – É considerada coação ilegal, passível de solução por habeas corpus, “quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei” (art. 648, II), algo que, evidentemente, deve ser resolvido de ofício, nos termos do art. 654, §2º, do CPP.

    A comunidade jurídica está atenta. Inúmeras notas de apoio à magistrada e de repúdio à possibilidade de abertura de processo disciplinar contra ela têm sido emitidas[5][6][7][8][9]. Dada a relevância jurídica da matéria, o professor de processo penal da USP Maurício Zanoide de Moraes elaborou, pro bono, minucioso e irretocável parecer sobre o caso, no qual, de forma precisa e objetiva, demonstrou que as decisões atacadas não ofendem o princípio da colegialidade, tampouco usurpam a competência da Vara de Execução Penal – tese posteriormente surgida nos autos –; ao contrário, representaram não só o cumprimento da Constituição e do Código de Processo Penal, como evitaram que o Estado fosse posteriormente obrigado a pagar indenizações por manter pessoas injustamente presas por mais tempo do que suas condenações.

    Respeitar a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) nunca está errado, e nunca estará. É inaceitável a possibilidade de uma juíza que decidiu segundo a Constituição e as leis para evitar injustiças evidentes sofrer procedimento disciplinar. A representação contra ela apresentada representa um claro recado, já anteriormente ouvido pelo juiz Corcioli: não ouse soltar pessoas demais. Não ouse divergir, não ouse debater. Esse tipo de coação precisa acabar no Tribunal de São Paulo, como também precisam acabar as possibilidades de manipulação dos juízes auxiliares e substitutos segundo critérios inconfessáveis.

    As garantias para a independência e imparcialidade dos juízes precisam ser efetivamente respeitadas, e o caso da juíza Kenarik pode ser o primeiro passo para uma alteração profunda do que se dá no TJSP.

    Sob uma nova presidência, com uma nova corregedoria e no início de um novo ano, nossa Corte pode iniciar um tempo em que o debate é valorizado, em que a divergência é entendida como enriquecedora, em que soltar não é pecado.

    Quem sabe não sairemos todos muito mais fortes dessa crise? Quem sabe a representação não será arquivada no dia 27, e o TJSP não fará proposta para regulamentar de forma impessoal e objetiva as designações de seus juízes auxiliares e substitutos? Quem sabe o Tribunal não extinga seus inúmeros Departamentos e crie Varas para provimento por concurso interno? Infelizmente não dá para sonhar tão longe ao ponto de juízes que prendem desnecessariamente ou mantêm prisões desnecessárias sejam perseguidos, mas quem sabe?

    Não custa sermos otimistas!

    * Andre Pires de Andrade Kehdi, advogado, é Presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM)

    [1] Trecho da inicial da ADI 5070, Rel. Min. Dias Toffoli.

    [2] Exemplificativamente, ler o Editorial do Boletim IBCCRIM n. 253, de dez/2013.

    [3] MS 33.078, Rel. Min. Rosa Weber.

    [4] No Tribunal, em princípio, as decisões são tomadas por mais de um magistrado, de forma colegiada, daí falar-se em princípio da colegialidade.

    [5] http://ddh.org.br/nota-de-solidariedade-a-juiza-kenarik-boujikian/

    [6] http://ittc.org.br/nota-do-ittc-em-apoio-a-desembargadora-kenarik-boujikian-felippe/

    [7] http://carceraria.org.br/nota-em-apoio-a-desembargadora-kenarinik-boujikian-felippe.html

    [8] http://portal-justificando.jusbrasil.com.br/noticias/298638268/juristas-se-mobilizam-em-favor-de-desembargadora-processada-por-posicionamento-garantista

    [9] http://www.iddd.org.br/index.php/2016/01/21/nota-publica-iddd-manifesta-apoio-a-desembargadora-kenarik-boujikian-felippe/

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