69% dos moradores de favelas do Rio viram ou souberam de ações policiais em suas áreas durante a pandemia

Pesquisa feita nas comunidades Cidade de Deus, Complexo do Alemão, Complexo da Maré e outras retrata cotidiano de violência policial, precariedade e inação do Estado na vida dos moradores durante o período

Policiais militares no Complexo do Alemão. | Foto: Bento Fábio / Coletivo Papo Reto

A ameaça de ser atingida por tiros no Complexo da Maré, comunidade na zona norte do Rio de Janeiro faz parte do cotidiano de Aline*. Ela é profissional de saúde na clínica da família na favela e atuou na região durante a pandemia. “A gente ficava ali na clínica bem exposto. A clínica já chegou a ser alvejada, tivemos os vidros estilhaçados, a gente teve que se jogar no chão. Ficávamos bem vulneráveis ali quando tinha operação policial.”

O cenário revelado por Aline é traduzido em um novo estudo que mostra que 83% dos moradores das comunidades Cidade de Deus, Complexo do Alemão, Complexo da Maré ouviram tiros de suas casas durante a pandemia. O dado é da pesquisa “Coronavírus nas favelas: A desigualdade e o racismo sem máscaras?”, divulgada nesta segunda-feira (27) pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), junto ao coletivo Movimentos, feita entre setembro e outubro do ano passado.

Foram aplicados 342 questionários na Cidade de Deus, 305 no Complexo da Maré, 165 no Complexo do Alemão e 143 de outras favelas, totalizando os 955 participantes do estudo. A proporcionalidade dos questionários por favela usou como base dados populacionais divulgados pelo IBGE (2010).

Em plena pandemia, tiros, racismo e operações policiais

A doméstica Elaine Pacheco, de 43 anos, conta que já fica desestabilizada só em saber que há um tiroteio em um local próximo da sua casa no Complexo do Alemão. “Tenho um filho adolescente e aí, quando eu estou no trabalho e vejo no grupo Voz das Comunidades, por exemplo, que está tendo tiroteio, eu já fico preocupada porque meu filho é um adolescente sozinho em casa.”

Para ela, que mora há 14 anos no Complexo do Alemão, o local não é tranquilo para se viver. “É tenso por causa da UPP [Unidade de Polícia Pacificadora], então de vez em quando sempre tem uma troca de tiro ali ou aqui, isso nos torna mais apreensivos.”

Aflita, de um lado com a violência policial e de outro com a Covid-19, Elaine considera que está mais ansiosa. “Estou mais ansiosa sim, muito mais preocupada, aquela preocupação de morrer e deixar meu filho. Como vai ser? Tento organizar as coisas para ele, caso algo aconteça comigo ele vai estar amparado.”

47% dos respondentes declararam ter sofrido algum episódio de racismo ou discriminação na vida. Desses, 93% são negros. Já 16% dos participantes relataram ter sofrido racismo durante a pandemia. Houve um aumento de casos de violência doméstica para 73,8% dos entrevistados.

O estudo também aponta que 69% dos entrevistados já presenciaram ou tomaram conhecimento de operações policiais na favela em que vivem.

MC Martina, moradora do Complexo do Alemão, é coordenadora do Núcleo de Mobilização do Movimentos. Essa é uma organização de jovens de diferentes favelas do Rio de Janeiro dedicada a construir uma nova política de drogas a partir de uma perspectiva periférica. Para ela, o racismo e a violência policial, provocada pelas operações policiais, estão intimamente ligados.

“O Estado tenta a todo momento, tirar a nossa humanidade. Ele não chegou aqui na favela com uma política pública para diminuir, nem que seja minimamente a desigualdade. Ele chegou aqui para reprimir a gente e aí chegou o ponto que muitos moradores muitas vezes não tinham álcool em gel, não tinham máscaras, não tinham comida dentro de casa, mas tinham uma cápsula de bala na sua porta. Isso é um absurdo.”

Ela cita os exemplos de operações ocorridas no Complexo do Alemão e no Jacarezinho, onde 28 pessoas foram executadas, ambas ocorreram em meio a pandemia do novo coronavírus. “Aqui no Complexo do Alemão, em maio aconteceu uma chacina, mais de 10 pessoas foram assassinadas e não houve investigação. Ficou por isso mesmo e acabou que pouco tempo depois aconteceu a chacina do Jacarezinho, a maior que a gente já viu aqui no RJ. O estado olha para a gente não como pessoa, mas como inimigo. ”

Essas operações não deveriam ocorrer, desde junho do ano passado o STF (Supremo Tribunal Federal) proibiu o ingresso das forças policiais em comunidades, que só podem ocorrer em casos excepcionais, a partir da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 635, conhecida como “ADPF das Favelas”. 

Morador da Cidade de Deus, Ricardo Fernandes, é ator, comunicador, co-fundador do Instituto Arteiros, diretor artístico na produtora SobreCena Filmes, diretor geral na Agência Brecha e mobilizador territorial. Ele lembra de uma operação ocorrida enquanto moradores da própria Cidade de Deus faziam doações de alimentos, durante a pandemia: “Na Cidade de Deus, a Frente CDD esteve no meio do tiroteio entre caveirões, entre fuzis, entre balas enquanto faziam a distribuição de alimento para as pessoas que estavam dentro de casa, sem ter dinheiro e logo sem ter comida e ao mesmo tempo tendo que desviar da bala do Estado letal”.

Uso de substâncias piora

A correlação entre a saúde da população e o perfil socioeconômico, e o uso de drogas, são traçados no estudo. Isso expõe os impactos da pandemia na saúde mental dos moradores das favelas.

Um exemplo disso é já citado racismo, que provocou algum nível de depressão em 63% dos entrevistados que sofrem com essa violência. 82% das pessoas que sofreram racismo na pandemia expressaram o desejo de experimentar novas substâncias psicoativas.

O álcool foi a substância mais usada, aparecendo em 45% das respostas, seguido por remédios de tarja preta (principalmente calmantes), com 19%, cigarro, 18%, inalantes (como éter), com 16%, seguido da maconha, com 12%. 

Pela pesquisa, 76% dos entrevistados declararam ter algum distúrbio do sono, 43,1% alegaram ter algum nível de depressão, outros 34% disseram que a ansiedade é o sentimento mais presente em relação à pandemia. Os outros sentimentos elencados foram: tristeza, medo, pânico, pensamentos negativos, dores e palpitação acima da média.

O diretor Ricardo Fernandes defende que o aumento de consumo de substância durante a pandemia não se limita somente à favela. “Percebemos que as leis proibicionistas são utilizadas para fazer o controle e cerceamento dos corpos periféricos e pretos quando o consumo de substância aumenta na sociedade inteira, mas quem é reprimido, genocidado e morto, são as pessoas da favela, com ações truculentas.”

Aristênio Gomes é ativista defensor dos direitos humanos, educador popular e historiador, morador do Complexo da Maré e um dos pesquisadores. Ele avalia esses dados como uma solução buscada dentro e fora das comunidades para suportar a nova rotina de inseguranças provocada pela pandemia.

Por isso, no olhar dele é preciso encerrar a guerra às drogas. “A sociedade de um modo geral consome drogas, mas o que existe é uma criminalização do corpo negro, a criminalização da pobreza, dentro disso é utilizada a guerra às drogas pra incidir nesses territórios e na verdade controlar, matar e encarcerar a população pobre e preta.”

Isolamento impossível

O fato de que muitos moradores das favelas tiveram que sair para trabalhar é um dos aspectos colocados por MC Martina como fonte de distúrbios psicológicos. “Boa parte dos entrevistados não conseguiram se isolar, eles se expuseram ao vírus, não foi por besteira ou algum motivo fútil, mas sim para conseguir renda, para conseguir ter o que comer dentro de casa e principalmente para servir uma parte da população que estava em casa o estudo mostra como nós enquanto moradores estamos adoecidos”, afirma.

Segundo o estudo 54% declararam não ter conseguido fazer isolamento social durante a pandemia, principalmente pela necessidade de sair para trabalhar – motivo apresentado por 55% dos respondentes. “Desigualdade, tiroteio, bala sempre teve antes da pandemia, só que nem com a pandemia parou e por que não parou? Porque nós somos pessoas matáveis”, afirma a artista.

Mesmo se há a opção de trabalhar de casa, o tamanho das habitações pode tornar isso inviável. 22,9% das pessoas afirmaram à pesquisa viver em moradias com até três cômodos, 25,9% em residências com quatro cômodos, 46,6% com cinco a seis e 9,5% acima de seis cômodos.

Aline, a profissional de saúde, diz que seu trabalho já foi prejudicado pelas operações policiais. “Existe uma vontade de fazer um bom trabalho, de realizar realmente o projeto do SUS. Acho que as operações policiais acabam interferindo sim no nosso trabalho, no desempenho e na vida de todo o mundo que mora ali. É um uma situação muito de risco, acaba limitando algumas ações. Muitas vezes a gente tinha que ir embora, não podia continuar o expediente.”

Segundo a pesquisa, com a alta demanda por atendimento médico e a baixa oferta de serviços, 37% dos que precisaram de atenção médica não conseguiram. Como forma de conseguir algum tipo de assistência, 14% recorreram à rede particular. 

Entre os moradores das comunidades, 63% deles ficaram sem água em algum momento durante a pandemia. Para o diretor Ricardo Fernandes, esse dado demonstra um desprezo do Estado pelas favelas. “Para além de todo o policiamento, que foi aumentado, a gente ainda tem a precariedade das matérias-primas, que faz com que a pandemia se expanda. Isso significa que a água, que é para lavar a mão e de alguma maneira se prevenir da Covid, está em falta. Um bem natural, tão abundante no Brasil e fica em falta nas favelas, durante o momento onde as favelas mais precisam da água para se prevenir.”

Diante disso tudo, para ele é muito nítido “que há no governo um pensamento de desprezar todas as necessidades que as favelas têm durante a pandemia”.

Sobreviver sem emprego

Dentro ou fora das favelas, a crise econômica que acompanhou a pandemia colocou um número imenso de pessoas em situação de desemprego. Segundo o estudo, 54% dos moradores das favelas estudadas perderam o emprego. Somente 26% dos respondentes afirmaram possuir carteira assinada, sendo que 26,8% da população não branca está em situação de desemprego e 30% estão em trabalhos informais.

Com isso, as doações se tornaram determinantes para grande parte das pessoas conseguirem sobreviver, 50% dos entrevistados disseram que solicitaram doações e, dentre esses, 56% receberam ajuda. Outros 36% ajudaram arrecadando ou fazendo doações e participando de redes de solidariedade. 

Doações de comida feitas pela Frente CDD, em agosto de 2020 na Cidade de Deus, Rio de Janeiro | Foto: Frente CDD

62% dos moradores das comunidades solicitaram o auxílio emergencial de R$ 600,00, e 52% receberam o benefício. A pesquisa nota: “A volta do pagamento do auxílio ocorreu de maneira insuficiente: o valor foi cortado a menos da metade e contemplou apenas 2/3 do total de beneficiários quando comparado a 2020.”

Perante o exposto, o pesquisador Aristênio Gomes lembra que o governo federal deixou de gastar mais de R$ 80 bilhões do um orçamento que já era destinado ao combate da pandemia. “Ao fazer isso obviamente quem é atingido na ponta é a população mais pobre, é a população periférica, negra que tem o sistema de saúde público sucateado, assim como a educação, todos esses setores vêm sofrendo cortes e isso significa em última instância a perda de direitos.”

Para ele, é urgente que alimentação, saúde e emprego sejam garantidos a população de baixa renda. “É preciso garantir uma estrutura mínima no SUS [Sistema Único de Saúde] e dar renda, trabalho, emprego para essas pessoas e um auxílio emergencial.”

Com a divulgação da pesquisa, o Ricardo Fernandes alega que o objetivo é transformar os dados em políticas públicas. “Temos um objetivo importante com essas informações, de que sejam consideradas na elaboração, no planejamento e na implementação de novas políticas públicas para as favelas e territórios populares do Rio de Janeiro.” 

“Um berro de urgência” é a frase utilizada por Ricardo Fernandes para definir as informações da pesquisa. “Continua sendo berro de urgência, para algo que tem que ser feito imediatamente, porque não tem como esses números, com todas as informações, com todas as vivências, a favela continuar seguindo sendo o que é. Então esses números precisam ser considerados pela sociedade civil, pelo Estado, para que a gente mude de forma coletiva todos esses números num futuro não tão distante.”

Ajude a Ponte!

Outro lado

Procurados, o governo do estado do Rio de Janeiro, a Secretaria de Saúde estadual e a Secretaria de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro não responderam às questões enviadas referentes aos dados do estudo.

Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde do RJ afirmou que perdeu nos últimos anos seis mil funcionários. “Nos últimos meses, a Secretaria Municipal de Saúde realizou a contratação de mais de três mil profissionais de saúde, sendo 800 médicos. A SMS está com processo seletivo aberto para todas as áreas, com salário em dia e recomposição das gratificações perdidas. A SMS está atenta à Saúde Mental da população. Uma das prioridades da pasta é a recomposição das equipes e ampliação da oferta de serviço”.

A pasta ainda diz que no Complexo da Maré, o estudo Vacina Maré imunizou 36.929 moradores da comunidade, superando a meta prevista de 30 mil pessoas da população alvo (18 a 33 anos). “A cobertura vacinal dos moradores a partir de 18 anos é de 92% para D1, e 22,2% com o esquema vacinal completo.”

*O nome foi trocado a pedido da entrevistada por medo de represálias

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude

mais lidas