PEC da Segurança de Lula aposta em modelo repressivo para ter voto, dizem especialistas

Projeto enviado por Lewandowski ao Congresso Nacional tem, entre as medidas, transformar a PRF em uma espécie de PM federal. Para pesquisador, “esquerda tem que parar de emular extrema direita”

Reunião com governadores no Palácio do Planalto para apresentação do projeto da PEC da Segurança Pública | Foto: Ricardo Stuckert/PR

Quatro dias depois do segundo turno das eleições municipais, em 31 de outubro, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que recebeu o nome de PEC da Segurança Pública. A proposta encaminhada pelo governo federal tem três objetivos principais:

Apesar de o presidente Lula (PT) ter declarado que a proposta é “um ponto de partida” para abertura de diálogo com o Congresso Nacional, pesquisadores entrevistados pela Ponte consideram a proposta como vinda “de cima para baixo”, sem discussão com a sociedade civil, e que o texto repete erros passados, não discute reformas estruturais e pode acirrar uma disputa que já existe entre as polícias.

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Para os especialistas, trazer o governo federal de forma mais clara na coordenação das políticas de segurança pública e colocar o SUSP na Constituição são boas iniciativas — pois seria mais fácil o Congresso derrubar uma lei ordinária, como é o caso da lei do SUSP, instituída em 2018, por meio de uma votação de maioria simples. Já uma alteração constitucional demanda um processo mais longo no âmbito legislativo e depende de aprovação de três quintos dos parlamentares em duas votações na Câmara dos Deputados e no Senado.

Por outro lado, apenas a PEC não garante que o sistema vai ser implementado de fato. “Eu acho que as PECs, as medidas provisórias, as leis acabam caminhando para um excesso de legislações em função dessa falta de disposição e de diálogo para resolver questões do ponto de vista da prática, do próprio exercício da atividade de Estado”, afirma Luiz Fábio Paiva, coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC).

O texto inclui como justificativa a padronização de protocolos, informações e dados estatísticos das 27 unidades federativas. No caso dos dados estatísticos, no entanto, já existe o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais, de Rastreabilidade de Armas e Munições, de Material Genético, de Digitais e de Drogas (Sinesp), que virou lei em 2012 e, apesar dos avanços, como ter incluído dados de letalidade e vitimização policiais em 2023, ainda não chegou ao patamar desejável porque os dados fornecidos pelos estados ainda são precários.

Para Luiz Fábio, não seria necessário uma PEC para isso. “O grande problema é que quando você vai fazer uma discussão, por exemplo, sobre um sistema, sobre a própria maneira de fazer um registro de ocorrência e nos estados não há uma consonância”, analisa. “A gente observa que ainda ficam lacunas imensas para que o real trabalho de integração seja feito por meio de colaborações políticas. O governador tem que concordar de aquelas políticas estarem integradas e não consigo visualizar como esse processo de integração do trabalho vai se dar.”

Na reunião em que Lewandowski e Lula apresentaram a proposta a representantes de 21 estados, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), que pretende disputar as eleições presidenciais de 2026, disse que trabalharia para barrar o avanço da PEC por entender que é “uma usurpação de poder” dos estados.

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Essa dificuldade de integração também é vista na transformação da PRF em uma nova polícia. Na apresentação do projeto, a justificativa para a criação da “Polícia Ostensiva Federal” é de que a União não tem um tipo de corporação equivalente às polícias militares estaduais e seria importante haver “simetria” entre as polícias, já que a Polícia Federal tem atribuição de fazer investigação assim como as polícias civis.

Na opinião de Adilson Paes de Souza, pesquisador em segurança pública e pós-doutorando em psicologia social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), o governo federal replica um modelo que já não dá certo nos estados, em que a investigação fica com uma polícia e o patrulhamento ostensivo com outra. “Há estudos e estudos indicando que o fato de existir duas polícias é um entrave à segurança pública porque ambas ficam competindo entre si, sonegam informações”, diz.

A análise é compartilhada por Fernando Rodrigues, que é integrante do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Segurança Pública (INCT) e coordenador coordenador do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (PPGS/UFAL). “É uma reforma que tem o caráter de uma reforma legal, mas ela não traz nada de concreto em relação à reforma das instituições policiais”, critica.

“Em nome da ideia de combate ao crime organizado e à milícia, está apenas adicionando uma nova força que potencialmente vai atuar de maneira concorrente com todas essas forças”, afirma.

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Fernando aponta que desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, a segurança pública ficou de lado e a discussão dos limites do poder de polícia não foi feita até hoje, o que causa conflitos de competência não só entre as polícias civis e militares, mas também com guardas municipais e até mais recentemente a PRF. “Você tem um rearranjo sempre informal porque nunca sabe dizer onde é que começa a responsabilidade da da guarda municipal e da PM, por exemplo. E, em muitos casos, há tanto sobreposição de atuação”, analisa.

Na minuta, além de ser responsável pelo patrulhamento e fiscalização das rodovias federais, a previsão é de que a nova POF faça o policiamento nas hidrovias e ferrovias, além de “exercer o policiamento ostensivo na proteção de bens, serviços e instalações federais” e “prestar auxílio, emergencial e temporário, às forças de segurança estaduais ou distritais, quando requerido por seus governadores”.

As atribuições são semelhantes ao que consta na Portaria nº 42/2021, assinada pelo então ministro da Justiça, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), André Mendonça, sob a presidência de Jair Bolsonaro. O texto, que continua em vigor, permite que a PRF faça operações fora das rodovias e estradas federais, quando requisitada, para dar apoio a governos estaduais.

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“A Polícia Rodoviária Federal não era uma polícia ruim até aquele momento, fazia uso de tecnologias de uma maneira muito inovadora, atuava baseado nas informações colhidas nesse arranjo tecnológico que se fazia no policiamento rodoviário”, lembra Daniel Hirata, professor de sociologia e coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF).

“Ao longo do governo Bolsonaro, ela se transformou numa espécie de guarda pretoriana do presidente e dos seus interesses, atuou de forma inadequada para além das suas atribuições em estradas e rodovias federais, em operações policiais em favelas, por exemplo. Isso tudo, além de inadequado, foi desastroso do ponto de vista do resultado dessas ações”, lembra.

É partir da gestão Bolsonaro que uma corporação que não era conhecida pela letalidade policial passou a protagonizar episódios como uma chacina de 26 pessoas no Complexo da Penha, no Rio de Janeiro, uma outra chacina de 26 pessoas em Varginha, em Minas Gerais, e a morte de Genivaldo Santos, preso no porta-malas de uma viatura da PRF com bombas de gás em Umbaúba, no Sergipe.

Ele ainda afirma que o governo federal não menciona o que seria feito com a Força Nacional, que é composta por agentes de segurança pública estaduais, as Forças Integradas de Combate ao Crime Organizado (FICCO), que são forças-tarefa da Polícia Federal com os estados, e a Força de Cooperação Penitenciária (Focopen), que é a tropa dos presídios de policiais penais federais.

Para ele, a POF parece uma tentativa de substituir a Força Nacional. “O efetivo da Polícia Rodoviária Federal é muito baixo para dar conta do policiamento ostensivo real e nós já temos as polícias militares que fazem isso nos estados. Me parece que talvez isso tenha a intenção de reduzir os custos das diárias para a Força Nacional porque ele é bastante alto. Talvez eles estejam mirando em algo que seja mais permanente, menos custoso”, avalia.

Polícia sem limites

Outro ponto visto com preocupação é a unificação dos fundos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário. O texto, que inclui o 11 no artigo 144, faz essa previsão: “A União instituirá o Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária, com o objetivo de garantir recursos para apoiar projetos, atividades e ações em conformidade com a política nacional de segurança pública e defesa social, sendo vedado o contingenciamento de seus recursos”.

Fernando Rodrigues, da UFAL, destaca que a ausência de contingenciamento desses recursos e a falta de limitação também da atuação das polícias penais podem desvirtuar a finalidade desses investimentos.

“O que tem acontecido é um aumento do número de operações de policiais penais fora do sistema penitenciário. À luz de você fazer investigações, atuar em repressão de apenados que estão em prisão domiciliar, que estão com tornozeleira ou que fugiram e que estão na rua, está dando um poder de polícia ostensiva, mesmo que velado, à polícia penal”, diz. “Então, uma parte desse dinheiro está servindo para isso: para comprar viatura, armamento, o que a princípio, lá atrás, na função de agente penitenciário, não faria muito sentido. Então, qual é o limite de atuação dessas polícias entre si?”, contesta.

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Em alguns estados, como no caso do Amazonas, por exemplo, a Polícia Militar tem uma relação intrínseca com a administração do sistema penitenciário e há uma dinâmica de agentes de segurança pública vinculados à proteção de mercados ilegais, como o garimpo, explica Fabio Magalhães Candotti, coordenador do coletivo de pesquisa ILHARGAS: Cidades, Políticas e Violências da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e membro da Rede de Observatórios da Segurança.

Para ele, falta discutir o controle externo das polícias, já que o papel dos Ministérios Públicos não é citado na proposta da PEC — e nenhum estudo científico a respeito da motivação dos objetivos do texto é mencionado na justificativa dada por Lewandowski.

“Parece que a gente já chegou num ponto em que a reforma das polícias é uma utopia improvável. Mas não tomar medidas para controlar a violência policial, o envolvimento das polícias nos mercados ilegais e a participação de policiais na política e, ainda, submeter a política penitenciária à segurança pública é uma forma de negacionismo que custa muito caro à parcela negra, indígena e pobre da sociedade”, diz.

Assim como ele, Fernando Rodrigues, da UFAL, também faz coro sobre a falta de discussão sobre a politização das polícias, como a própria PRF, cujos integrantes tentaram impedir que eleitores fossem votar em cidades nordestinas nas eleições de 2022. “Se ao mesmo tempo a polícia é um braço armado e ao mesmo tempo ela pleiteia fornecer candidatos eleitorais a qualquer coisa, a vereador, a câmara estadual ou a câmara federal, a gente está confundindo poderes que não deveríamos confundir, que é ao mesmo tempo dar o poder armado e querer ter o voto das pessoas”, critica.

“Quem tem a arma pode constranger de uma maneira muito diferente o eleitor na produção do voto. Então, essa para mim é uma questão que passa batida e a gente não sabe as implicações dessa PEC no que tange este ponto do papel que essas polícias federais vão ter”.

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Daniel Hirata concorda. “A minha hipótese é que o governo federal está tentando fazer uma sinalização que, do meu ponto de vista, é equivocada quando a gente pensa em um posicionamento de um governo mais à esquerda com relação ao bolsonarismo, por exemplo”, afirma.

“Acho que a esquerda tem todas as condições de ter um programa e um projeto na área de segurança pública bastante diferente da extrema direita, um projeto que efetivamente atue pensando um horizonte de legalidade, de eficiência das ações e oferecer resultados tangíveis para população desse ponto de vista, atuando dentro da legalidade e da eficiência. Mas, para isso, tem que abandonar de vez essa tentativa de emular a extrema direita, achando que com isso vai conseguir ter mais votos”.

Adilson Paes de Souza, da USP, compartilha da opinião: “Sucessivos governos estão adotando soluções paliativas ou soluções aparentemente úteis que, na minha visão, visam tão somente produzir um efeito positivo para a opinião pública dizendo que está fazendo algo.”

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