Movimentos sociais relatam o mesmo medo para organização internacional: Bolsonaro

    Feministas, negros, LGBTs, indígenas e movimentos que combatem tortura contam suas angústias e histórias para representantes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos

    Esmeralda Arosemena, comissionária da CIDH, recebe documento de uma militante | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    Um medo em comum une mulheres, negros, LGBTs, indígenas e defensores de direitos humanos no Brasil: o presidente eleito Jair Messias Bolsonaro. À representante da CIDH (Comissão Interamericada de Direitos Humanos), órgão da OEA (Organização dos Estados Americanos), representantes desses grupos apontaram seus temores com o futuro governo do militar reformado.

    A comissionária Esmeralda Arosemena de Troitiño ouviu histórias pelo terceiro dia seguido em sua visita a São Paulo. Outros seis representantes da entidade estão em outros cinco estados do país.

    Os grupos, formados pelos comissionários e outros membros da CIDH, têm a missão de ouvir histórias, ver as realidades locais e coletar denúncias. Em sete meses, formularão e enviarão um documento com recomendações ao governo federal.

    Depois de uma tarde inteira debruçada aos relatos de violência de Estado na quinta-feira (8/11), quando ouviu mães que perderam os filhos vítimas da letalidade policial e as mortes no Massacre do Carandiru, bem como as ações de tortura em presídios, a representantes ouviu 26 grupos nesta sexta-feira (9/11).

    “Sou ativista e feminista, isso por si só já é uma ameaça para mim. O Brasil está perigoso”, disse Amelinha Teles, presa e torturada na ditadura militar. A palavra – e o mesmo temor – esteve presente nos relatos dos demais.

    “Uma sociedade que é indiferente à tortura, que mantém a ditadura para os pobres e periféricos, é uma sociedade doente”, complementou Ângela Almeida, viúva do jornalista Luiz Eduardo Merlino, assassinado no Doi-Codi, centro de repressão em São Paulo no período ditatorial.

    “Não há centros de memórias no Brasil e vivemos um período de revisionismo e negação da ditadura, respaldado pelas autoridades públicas”, relatou Marília Bonas, do coletivo Memória e Resistência. “É um país que a justiça fala em suposta ditadura e suposto torturador ao se referir ao coronel Ustra”, emendou Ângela.

    A cada nova pauta apresentada, representantes de grupos diferentes falavam. De fato repetitivo, o temor é como será a vida a partir de 2019. Ou melhor: de como já está sendo a vida.

    “Viemos alertar os altíssimos riscos que a população LGBTI+ vive, preocupados com a revogação de direitos fundamentais e até mesmo de morrer”, discursou o advogado Carlos Eduardo Carreira, do grupo Advogados pela Liberdade Sexual e de Gênero.

    “Teve uma transexual que quer refúgio em outro país pelas ameaças de morte que sofreu”, contou, após citar casos de travestis mortas em São Paulo. “As travestis falam que saem de casa e não sabem se vão voltar”, contou o militante seguinte.

    Mães, lutadoras sem medida de esforços pelos vivos ou mortos, também defenderam os seus filhos LGBTs. “A LGBTIfobia afeta toda uma família, seja o pai que sempre ouvirá uma piada até a criança, que é silenciada, oprimida, violentada e morre. Muitos se matam ou são assassinados”, contou uma das mães do movimento.

    “Não temos para onde correr, não queremos voltar para o armário. É triste falar que não se pode beijar na rua, não pode dar as mãos ao seu marido… Estamos dando um passo para trás por medo”, lamentou um homem gay. “Nosso medo é real, a proposta de voltar para o armário é impossível. Queremos existir e vamos resistir”, disse, na sequência, uma mulher lésbica.

    Mulheres também defenderam suas bandeiras e alertaram para os riscos que passam. Uma apontou para o estupro de duas jovens no Parque Villa Lobos, em São Paulo, com o agressor armado dizendo que “esse era o Brasil” que ele queria. “A violência contra a mulher sempre tem o cunho sexual”, completou.

    Regina Lúcia, do MNU (Movimento Negro Unificado) trouxe o alerta para o genocídio da juventude negra. “Este é o momento mais delicado nos 40 anos do MNU. Existe uma chancela do futuro presidente para se matar jovens, negros e pobres. O risco é iminente”, sentenciou.

    Nas ruas, o medo é real e passa para dentro dos presídios. Segundo Padre Valdir, representante da Pastoral Carcerária, o ambiente que já vive à base de tortura e falta de direitos, só irá piorar de 2019 em diante. “Os presídios são ambientes onde nunca se soube o que é democracia, os direitos inexistem”, definiu.

    “Há uma alta taxa de suicídio nos presídios e as privatizações só irão criar uma multidão de trabalhadores escravos para a iniciativa privada. Além de ter uma alta possibilidade de corrupção nestes acordos”, prosseguiu uma representante da Amparar, integrada por familiaress de presos.

    Temas como o decreto de imigrantes assinado pelo atual presidente, Michel Temer, que restringiu o acesso de estrangeiros ao país, a perseguição aos povos indígenas e a tentativa de membros da justiça de calar parentes de jovens mortos na Boate Kiss, incêndio ocorrido em Santa Maria (RS) também foram citados.

    Membros da Craco Resiste, que atua na Cracolândia, entregaram documento à Esmeralda, testemunha ocular daquela realidade na última quarta-feira (7/11). “Precisamos de tempo para ter uma precisão do que todos vocês falaram. Todos estão conectados com a necessidade de se unirem e encontrarem força de mobilização”, começou a discursar Esmeralda, que ressaltou a identidade em comum entre todos.

    “Identificamos sempre que se criminaliza a mesma problemática: social estrutural, pobre e mais vulnerável. O grande temor é para um processo de retrocesso de direitos. Todos os cenários apresentados aqui indicam uma preocupação gigantesca”, definiu a comissionária.

    As visitas dos grupos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos tiveram fim nesta sexta-feira (9/11). A partir de agora, eles se encontram no Rio de Janeiro neste fim de semana para formularem um documento com recomendações iniciais ao país. Depois, serão seis ou sete meses de trabalhos para os apontamentos finais.

    “Os direitos são de todas as pessoas, sem exceção nenhuma. Nesta visita, a Comissão tem plena segurança que os temas comentados aqui e nos outros lugares precisam ser estudados para avaliarmos o tamanho do desafio que vocês estão enfrentando”, encerrou Esmeralda.

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas