Artigo | Saquear, expulsar, prender: qual o papel da prisão no ecocídio de Belo Monte?

A equipe da coluna Abolição se debruça sobre as conexões entre o desastre ecológico de Belo Monte e o sistema de justiça criminal, com a rebelião do Centro de Recuperação Regional de Altamira e a promessa da construção do Complexo Penitenciário de Vitória do Xingu

Ilustração: Antonio Junião / Ponte Jornalismo

Em 2007, o governo do então presidente Lula lançou o PAC (Programa de Aceleraçõa do Crescimento). Um programa de estímulo ao desenvolvimento nacional que buscava focar em três aspectos entendidos como fundamentais para que o Brasil pudesse seguir o trilho à prosperidade econômica: infraestrutura, logística e geração de energia. O carro-chefe deste programa foi a usina hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, em Altamira, no Pará.

Belo Monte foi um projeto pensado no contexto da ditadura militar. Com a ideia de integração nacional, os governos de fato imaginaram diversas obras que cumpririam o papel de integrar regiões supostamente inabitadas ao país. O projeto de Belo Monte surge desta iniciativa. Inabitados, neste caso, eram os territórios indígenas que foram sistematicamente roubados e saqueados por grupos privados, que também eram responsáveis por violência aberta, muitas vezes letal, contra os povos originários. Um exemplo dessa política genocida se encontra no relatório da Comissão Nacional da Verdade: a usina hidrelétrica de Tucuruí foi construída em território Akrãtikatejê, cujo povo foi removido violentamente.

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Entretanto, foi no último mandato de Lula que se decretou que Belo Monte não seria apenas um projeto. Mesmo com toda resistência de povos indígenas e ribeirinhos que se viam ameaçados pela construção da usina, o então ministro da Secretaria Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, afirmou em 2011 que Belo Monte seria construída de qualquer forma – e que o que estava em discussão era a existência de uma construção que fosse adequada ao “saneamento ambiental adequado para a região e com realocação adequada da população de ribeirinhos”. A questão é que não houve saneamento ambiental devido, nem realocação adequada dos ribeirinhos.

Ao longo do seu processo de construção, Altamira viu sua população explodir. Pessoas expulsas, removidas, deslocadas ou em busca de trabalho: de 90 mil habitantes, a população chegou a 175 mil, e hoje – pela falta do censo demográfico – o que se tem é uma estimativa em torno dos 115 mil habitantes. O aumento vertiginoso do número de habitantes fez a cidade entrar em colapso. A insuficiência das redes públicas de educação, saúde, lazer e cultura, mas também da oferta de bens e serviços privados, fez com que Altamira mudasse de perfil. De uma cidade pacata, tornou-se marcada pela violência.

Como já noticiado pela Ponte, o Atlas da Violência de 2017 demonstrou que a cidade havia se tornado a mais violenta do Brasil pelo número relativo de homicídios; de 13 assassinatos para cada 100 mil pessoas em 2000, para 114 em relação ao mesmo número de habitantes em 2015. Entretanto, a violência é ainda maior do que pode medir o número de homicídios. A ausência de acesso a direitos, as remoções e reassentamentos executados de maneira negligente em relação às necessidades dos atingidos, e a situação de insegurança alimentar de muitas famílias da região é o contexto que algumas lideranças de movimentos sociais identificam como propício ao aumento do número de suicídios entre jovens, assim como o aumento da violência relacionada ao comércio ilegal de drogas.

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Belo Monte, portanto, se enquadra num modelo de desenvolvimento neoextrativista: uma reconfiguração das relações do país com a economia global, onde a subordinação aos interesses econômicos dos países desenvolvidos e das empresas transnacionais se sobrepõe aos interesses dos povos que vivem nos territórios onde se dá a extração de recursos da natureza. O principal resultado desse modelo de desenvolvimento é o que chamamos de ecocídio. Trata-se da destruição de todo o ecossistema, o que inclui a fauna, a flora, os seres humanos e todas as formas de existir.

E por que estamos falando disto numa coluna sobre abolicionismo penal? Bem, porque há uma relação direta entre os megaempreendimentos extrativistas e o sistema de justiça criminal, da qual começaremos a falar hoje, aqui na coluna, mas que já atravessa nossos debates há algum tempo, e pretendemos voltar a ela sempre que possível, pois é um assunto pouco falado, mesmo entre abolicionistas.

Em julho de 2019, 68 pessoas foram mortas em uma rebelião no Centro de Recuperação Regional de Altamira. De acordo com relatório do Conselho Nacional de Justiça, produzido depois da rebelião, o presídio contava com 343 homens encarcerados, mas sua capacidade era apenas de 163. Veículos de mídia e órgãos do sistema de justiça criminal atribuíram a rebelião e as mortes, dentre outros fatores, à superlotação do presídio, e reivindicaram a inauguração de um complexo prisional na cidade vizinha, Vitória do Xingu, como de fato já estava previsto pelo governo do estado. A ideia de que massacre prisional se evita construindo mais prisões é uma máxima que atravessa proposições punitivistas e humanistas, no mínimo, desde o massacre do Carandiru, em 1992, e falha miseravelmente desde então.

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Com uma rápida visualização dos dados da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Pará (SEAP-PA), encontramos que o Complexo Penitenciário de Vitória do Xingu foi inaugurado em novembro de 2019, com uma capacidade de 612 vagas, distribuídas entre duas unidades para regime fechado (masculina e feminina) e outra para semi-aberto. Como já era de se esperar, no mês seguinte, em dezembro de 2019, a unidade masculina já estava superlotada, com 379 detentos nas instalações onde cabiam apenas 306 – sendo 234 deles presos provisórios. Desta maneira, o argumento de que o massacre de julho não teria ocorrido se a nova prisão já tivesse sido entregue se torna insustentável. Mais uma vez, a história das prisões brasileiras foi contundente em demonstrar que a construção de novas prisões não resolve a superlotação das mais antigas, só repete, e o mesmo vale para a chamada “guerra de facções”, que se dinamiza e fortalece a cada unidade inaugurada.

O Complexo Penitenciário de Vitória do Xingu estava previsto no consórcio para construção de Belo Monte. A Norte Energia, empresa responsável pela usina, estava comprometida contratualmente a entregar uma prisão. Assim, uma das primeiras denúncias sobre as causas do massacre de julho de 2019 foi que a prisão de Vitória do Xingu não havia sido inaugurada ainda. Tragicamente, que o que era uma obrigação contratual ganhou ares de reivindicação nas palavras de ambientalistas e juristas.

Porém, uma vez inaugurado, o Complexo Penitenciário de Vitória do Xingu não passou de profecia autorrealizável. A previsão contratual para sua construção já deixava claro que nada seria feito para conter ou minimizar os efeitos de Belo Monte. O fato de existir uma prisão anunciada entre o conjunto de medidas compensatórias pelos danos e impactos causados pela hidrelétrica informou, desde cedo, que não haveria qualquer política pública na região do Xingu que não fosse a de segurança.

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O raciocínio, portanto, é inverso ao que muitos analistas divulgaram: não é porque a prisão de Vitória do Xingu não havia sido inaugurada que houve massacre na unidade de Altamira, mas é porque a prisão de Vitória do Xingu estava prevista no consórcio de Belo Monte que nenhuma das questões sociais que impactaram o aumento da violência na região recebeu qualquer tratamento. A prisão é a própria impossibilidade de qualquer compensação ou reparação aos povos afetados pela hidrelétrica e cumpre seu papel, até o momento, quase sem levantar suspeitas, mesmo entre muitos que resistiram a Belo Monte. Pelo menos, até aqui.

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