Ameaça de morte a escritor negro pode ter vindo de fórum de extrema-direita

    Dogolachan propaga racismo e misoginia, e citou Anderson França depois que ele publicou artigo sobre nazismo; em 2017, escritor cancelou ida a Flip por ameaça

    Anderson França em foto do início do ano passado | Foto: Reprodução/Facebook

    Colaborou Leonardo Coelho

    O escritor Anderson França recebeu ameça de morte por e-mail na quarta-feira (22/1), segundo relato dele mesmo na página que mantém no Facebook. Na mensagem, o remetente afirma saber que ele está em Portugal e diz que vai matá-lo pelo mesmo motivo da ex-vereadora Marielle Franco, morta em março de 2018, um crime ainda sem solução. “Por você ser negro, LGBT e defensor dos direitos humanos”. E na sequência: “Nós vamos matar você porque você mexeu com gente poderosa, gente de farda e políticos”.

    Em outro trecho da mensagem, a pessoa cita uma ameaça anterior. “A pessoa que te ameaçou não está presa”. Em 2017, França chegou a cancelar a participação na Flip (Festa Literária de Parati), por causa de ameaça semelhante.

    Na outra parte da mensagem, o remetente ameaça matar Jorge Cabral, embaixador de Portugal no Brasil.

    Há suspeitas de que a ameaça tenha vindo do Dogolachan, fórum de extrema-direita que funciona na deep web (não pode ser facilmente detectável, é o contrário de surface web, que está na superfície, que é visível e pode ser detectado por buscadores que qualquer um conhece como Google). Desde 2017, a Ponte investiga e denuncia ações do grupo, que propagam mensagens de racismo, misoginia, além de incitar outros crimes e combinar ataques a desafetos, a chamada trollagem. O perfil dos frequentadores é majoritariamente de incels – os celibatários involuntários – homens que não conseguem fazer sexo e culpam as mulheres e o mundo por isso.

    A reportagem acessou o fórum e encontrou mensagem que fazia referência direta a França. A última mensagem faz referência ao deputado estadual Coronel Telhada (PP), que, nesta semana, compartilhou reportagem da Veja que informava que a Polícia Militar de SP iria processar o escritor. Em dezembro, após o massacre de Paraisópolis, que deixou 9 jovens mortos em ação policial, Anderson publicou em sua conta do Twitter uma montagem que mostrava o símbolo da PM paulista com uma suástica.

    O governador João Doria (PSDB) se manifestou nas redes sociais repudiando a montagem, que tem quase dois meses. E isso tudo aconteceu porque, nesta semana, Anderson França se envolveu em uma polêmica. Em artigo à Folha de S.Paulo, o escritor cobrava uma posição de uma parte da classe artística ao discurso de conteúdo nazista proferido por Roberto Alvim, que custou o cargo à frente da Secretaria de Cultura do governo Bolsonaro.

    A mensagem da atual ameaça a França está assinada como “Homem-Aranha da Pedofilia”. No remente, está o nome de Ricardo Wagner Arouxa, um consultor de tecnologia que vive no Rio de Janeiro e nega a autoria da ameaça. Em entrevista à Ponte pelo Whatsapp, Wagner afirma estar convicto de que as ameaças vieram do Dogolachan. “Eu soube das ameaças pelo próprio autor, conhecido pela mídia anteriormente como GOEC, hoje DPR”, escreveu. GOEC e DPR são codinomes usados no Fórum por uma das principais figuras que opera o Dogolachan.

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    No início de 2018, o Dogolachan imputou a Ricardo Wagner a criação de um site de conteúdo racista chamado Rio de Nojeira. Em 2017, o nome de Ricardo já tinha sido usado para enviar ameaças e ofensas a pessoas públicas, entre elas, justamente Anderson.

    Wagner afirmou não saber por qual razão voltou a ser alvo dos ataques dos trolls e afirma que não entra no fórum há mais de um ano, desde quando Marcelo Valle Silveira Mello, apontado como líder do Dogolachan, foi condenado a mais de 41 anos de prisão.

    A reportagem procurou Anderson França que, em breve troca de mensagens, escreveu o seguinte: “Consideramos a hipótese de bravata pura e simples. Mas os termos são, em todo caso, graves, mesmo que feitos apenas para chamar a atenção” e informou que iria se pronunciar e publicar as ameças em sua página do Facebook. Leia nota completa:

    https://www.facebook.com/DinhoEscritor/posts/1230196240524503?__xts__%5B0%5D=68.ARDt89Lo9omt_Pj9yz930GidsUkYQAIoc3orKX0YMfc4xUUMHMfhQ3qkDpLyJ-NayZRkR8vx6F3oO4IS8nGEYHBUQSglDQ6GGtgxbzz2B1IFEK0aLISih6evIFHvX-w4WKbCbO9wuLCijp5S7Aqot5itFKCR7waAps6zrLqzAIEQOqHaCwv0WN1bu8CAvoGFnrUDPlE3PwE0I6qStg744BZlJKYNH7OFqCdSMKSoBsfjF0IHSoiiqbZ3ri4K1bYfGZCHVagXDxVlmfqRuJlOE9PxAE6YSZDwIFhcJjO4I4ubdV0iCW4vXyl42BrnmoElT4XAhtXhW637iDPGYSAkmgQ3Uw&__tn__=K-R

    Quem também é vítima do Dogolachan é a professora universitária e blogueira feminista Lola Aronovich. Ela convive com as ameaças há mais de 10 anos, que às vezes de fortalecem, outras tantas diminuem. Lola convive foi inspiração para a criação da lei federal 13.642/18, conhecida como Lei Lola, que dá à Polícia Federal atribuição para investigar crimes de misoginia praticados na internet.

    “Receber um e-mail dizendo: ‘Vamos te estuprar e te matar e depois te estuprar de novo’ já é hediondo. Imagina receber essa mesma mensagem e, junto, seu endereço residencial, o nome dos seus familiares e o endereço deles, seu CPF, a placa do seu carro? Isso leva a ameaça para um outro nível”, declarou Lola, em entrevista à Ponte em janeiro do ano passado.

    No início deste mês, o Ministério Público do Rio de Janeiro realizou a segunda fase da operação Iluminate, em conjunto com o MP de São Paulo, para combater a ação desses grupos – como é o Dogolachan – na deep web.

    “O objetivo é identificar integrantes de uma organização criminosa investigada por fomentar o ódio e ataques contra minorias e mulheres. O grupo age no submundo da internet, nos chamados dark web e deep web“, diz nota publicada no site do MPRJ. “No início de 2019, dois jovens ingressaram na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, mataram diversos estudantes e servidores, suicidando-se depois do ataque. O crime, que passou a ser conhecido como ‘Massacre de Suzano’, foi idealizado e estimulado por um ‘Chan’ da darkweb chamado ‘Dogolachan’“, diz outro trecho da nota.

    A reportagem procurou a Polícia Federal do RJ, o MPRJ e o Ministério Público Federal do RJ para questionar especificamente sobre essa nova ameaça a Anderson França.

    A PF não se pronunciou até o fechamento da reportagem. No ano passado, logo após o Massacre de Suzano, a Ponte publicou uma reportagem que mostrava a incapacidade técnica e estrutural da PF de investigar crimes cibernéticos.

    Em nota, o MPF informou que há uma investigação em curso na DELINST (Delegacia de Defesa Institucional), mas que corre em sigilo. O MPE informou que iria apurar, mas também destacou sigilo caso haja uma apuração em curso.

    A Ponte também enviou um e-mail à Embaixada de Portugal no Brasil questionando sobre as ameaças a Jorge Cabral, mas até o fechamento não havia resposta.

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