Ampliar acesso a armas é uma política enganosa que privilegia grupo restrito, diz gerente do Sou da Paz

Bruno Langeani lança Arma de fogo no Brasil: gatilho da violência e faz um histórico sobre a política de armas no país, que piorou com Bolsonaro: “A população não consegue comprar carne e o presidente fala de uma solução que custa R$ 5 mil”

Bruno Langeani lança neste mês Arma de fogo no Brasil: gatilho da violência e faz um histórico sobre a política de armas no Brasil, que para ele piorou com o governo Bolsonaro: "A gente tem uma população hoje que não está conseguindo comprar carne ou colocar gasolina para trabalhar, e o presidente está falando de uma solução que custa R$ 5 mil"
Livro de Bruno Langeani traz estudos, histórico, problemas e soluções sobre armas de fogo no Brasil | Foto: arquivo pessoal

Quando editou quatro decretos de flexibilização de acesso às armas, em fevereiro deste ano, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) publicou em seu Twitter: “Em 2005, via referendo, o povo decidiu pelo direito às armas e pela legítima defesa”. O referendo, porém, tinha apenas uma pergunta com resposta para sim ou não, que era se o comércio de armas e munições deveria ser proibido no Brasil, cuja reposta para “não” foi de 66%. Nada mencionava sobre ampliar o acesso à população ou rejeição ao Estatuto do Desarmamento, que havia sido aprovado em 2003. “Já naquela época — e nos 15 anos que se passaram desde então —, as pesquisas de opinião nacionais feitas com representatividade e metodologia científica apontaram que a maior parte da população acredita que mais armas trazem mais violência”. Esse é um dos trechos do livro Arma de fogo no Brasil: gatilho da violência, do gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, que será lançado nesta quarta-feira (17/11), e pode ser encomendado no site da Editora Telha.

Na obra, que o autor começou a escrever antes das eleições de 2018, Langeani explica que a arma de fogo está no centro da problemática da violência no Brasil, mas o debate sobre o tema não aparece de forma qualificada e estrutural, restringindo-se ao lobby da indústria armamentista e a grupos privados, como CACs (caçadores, atiradores e colecionadores), embora seja o meio empregado em sete a cada 10 homicídios no país, acima da média mundial de 44%, de acordo com dados de 2015 da organização suíça Geneva Declaration. “Existe uma rede de informação falsa, de disseminação de informação falsa, que quer continuar garantindo o lucro sem assumir sua parcela de responsabilidade no problema”, declarou Bruno em entrevista à Ponte. De 2017 a 2020, o número de armas em mãos de civis dobrou, de 637.972 registros de armas ativos para 1.279.491. Além do aumento do registros de CACs, que passou de 200.178, em 2019, para 286.901, em 2020, um aumento de 43,3%, de acordo com o 15º Anuário de Segurança Pública.

Para ele, o governo Bolsonaro, que fez 31 alterações em relação ao acesso às armas no Brasil, por meio de portarias e decretos, piorou a regulamentação, que já continha problemas de fiscalização por parte do Exército, a fim de pressionar opositores. “Quando a gente olha a quantidade de modificações que foram feitas no estatuto, isso não tem precedente nenhum momento da história do Brasil e, pelo número, pela intensidade das mudanças, fica claro que não era uma mudança para atender o cidadão que queria comprar uma arma pra defesa, já fica claro que teria outras agendas por atrás”, enfatiza. “A gente tem uma população hoje que não sabe se vai ter como pagar o aluguel, não está conseguindo comprar carne ou colocar gasolina para trabalhar, e o presidente está falando de uma solução que custa R$ 5 mil, R$ 6 mil, para essa parcela da população acessar”, critica.

Em entrevista à Ponte, Bruno Langeani destaca os principais problemas e elenca soluções para a questão das armas e munições no país, além dos papéis dos governos federal e estaduais e das empresas do setor para a redução da violência armada e do tráfico desses instrumentos.

Ponte – O que te levou a escrever um livro sobre armas no Brasil?

Bruno Langeani – Foi por uma questão profissional. Foi o meu trabalho no Instituto Sou da Paz, que tem um histórico de trabalho nessa área de controle de armas. Eu entrei no Sou da Paz em 2012 e essa foi a minha primeira área de trabalho, desde então estou há praticamente 10 anos trabalhando com isso, mas a motivação do livro em si tem a ver, na verdade, com a minha percepção trabalhando nessa área de como esse assunto, apesar de ser absolutamente central para explicar a violência no Brasil, é muito mal explorado e muito desconhecido. Essa motivação parte por aí, de uma linha tanto de conversar com pessoas que têm interesse na arma de fogo, mas também com gestores da área de segurança. Esse era o plano inicial, mas como foi um livro que eu comecei a escrever antes das eleições de 2018 e foi terminado já no governo Bolsonaro, foi preciso também incluir uma nova dimensão nesse livro que é uma dimensão da arma de fogo com o uso político, que é algo que foi absolutamente trazido como central por esse presidente. Ele [o livro] começou com um projeto, mas precisou ter algumas modificações no meio do caminho para incorporar esse momento que o Brasil está vivendo.

Ponte – Você acredita que o governo Bolsonaro é um divisor de águas nesse nesse tema?

Bruno Langeani – Sim. Acompanhando esse tema há mais de 10 anos, a gente vê que o debate, não só no Brasil mas em outros lugares, ficou muito pautado nessa dicotomia que eu acho muito ruim: das pessoas que gostam de arma e das pessoas que não gostam de arma. Sempre uma discussão tanto de impactos sociais da arma de fogo e na questão de direito das pessoas. Esses grupos pró-armas sempre trazem muito essa questão da liberdade individual como a justificativa para [ter] arma de fogo. Mas com o governo Bolsonaro, a gente vê que [a flexibilização de acesso às armas] começa com uma agenda oculta. Quando a gente olha a quantidade de modificações que foram feitas no estatuto, isso não tem precedente nenhum momento da história do Brasil e, pelo número, pela intensidade das mudanças, fica claro que não era uma mudança para atender o cidadão que queria comprar uma arma pra defesa, já fica claro que teria outras agendas por atrás.

Acho que quando a cortina cai de fato é quando se divulga aquela reunião de abril de 2020, quando o presidente está assumindo que quer uma população que possa fazer uma pressão política armada contra seus opositores. Então, primeiro tem uma agenda que parece um pouco oculta, um pouco esquisita, meio fora de propósito, mas depois que vaza essa reunião, o presidente não faz mais questão esconder isso. Ele tem cada vez mais falado sobre isso, sobre como ele que ele quer cidadãos armados para fazer frente aos seus opositores, a quaisquer grupos que questionem as suas políticas, sejam outros poderes, como é o Judiciário, sejam outros grupos da sociedade civil como a própria imprensa, que vem sendo muito atacada. 

Ponte – Por que essa pauta da flexibilização de acesso às armas também é presente em integrantes das forças da segurança pública? Eu vi uma publicação do deputado Coronel Telhada, que é uma pessoa que vem desse nicho, atuou na polícia, teve treinamento para uso de arma, mas quer que civis também tenham esse acesso.

Bruno Langeani – Então acho que essa é uma questão de compreensão porque eu trago dados no livro mostrando como os próprios policiais são uma das principais vítimas de violência armada e muitas das vezes essa vitimização acontece com o policial armado, com o policial reagindo armado. E também policiais, especialmente policiais militares, praças, por serem as primeiras a chegarem nas ocorrências, eles também sentem muito na pele essa mudança do cidadão armado, que gera outros tipos de ocorrência que o Brasil há muito não tinha. Então, para dar um exemplo bem claro: a gente teve neste ano, há poucos meses, um cidadão de Marília [interior de São Paulo], um empresário que tomou medicamento, surtou dentro de casa e a mãe chamou a polícia. Quando a polícia chegou, ele disparou contra os policiais e feriu três policiais antes de ser baleado.

Foto: Reprodução / Instagram

Essa flexibilização e esse incentivo à arma de fogo para o cidadão tem como uma das das vítimas os próprios policiais, mas eu acho que essa adesão dos policiais no campo político tem a ver com uma adesão ao conservadorismo mais geral, essa defesa do indivíduo frente ao Estado, que é algo que é muito difícil de compreender porque vai contra a própria existência da polícia. Se você advoga que é cada um por si fazendo essa defesa com arma na mão, para que precisa de polícia? A gente pode extinguir a polícia por esse argumento, mas essa defesa não é muito complexa, esse raciocínio não é muito complexo. Muitos policiais que defendem a arma de fogo são os mesmos que vão defender o crescimento da polícia.

Ponte – A arma de fogo está tão presente na violência urbana, por que não é um assunto prioritário na discussão da segurança pública?

Bruno Langeani –  Acho que tem duas coisas aí. Primeiro tem um fator de um poder privado que no Brasil é muito forte, então estou falando tanto de grupos privados que têm muitas armas e que estão em posições influentes do país, especialmente esses grupos de CACs (caçadores, atiradores e colecionadores). É uma atividade que demanda muito dinheiro e está concentrado nas camadas mais ricas da população, então a gente tem uma série de delegados, desembargadores, policiais, juízes, promotores que gostam de armas e que querem assegurar esse acesso à arma de fogo. Falar que a arma não é um problema ajuda a conseguir ter esse acesso. O segundo grupo privado que interfere muito nesse debate de arma de fogo é a própria indústria. Já cansei de receber, por intermédio de outros jornalistas, releases que a indústria manda para as redações com informações falsas falando que as armas que eles produzem não são problema, que o que está no crime é tudo arma ilegal que vem por contrabando.

Existe uma rede de informação falsa, de disseminação de informação falsa, que quer continuar garantindo o lucro sem assumir sua parcela de responsabilidade no problema. A explicação pública tem a ver com o nosso modelo de segurança, que vocês da Ponte falam muito, que é privilégio do policiamento ostensivo e pouquíssimo investimento numa ação investigativa e preventiva que consiga trabalhar a repressão à arma antes que ela seja disparada. Em geral, as nossas polícias trabalham para apreender arma no varejo, no trabalho rotineiro, fazendo abordagem policial chegando num flagrante de um crime e, além disso ser muito ineficiente, são atividades muito mais arriscadas. Você apreender uma pistola, um fuzil durante um roubo a banco, o risco é muito maior do que você fazer uma interceptação dessa arma enquanto ela está sendo transportada ou enquanto ela está num paiol porque não corre o risco de tomar tiro e, em geral, se apreende uma quantidade muito maior de armas e munições. Eu acho que esse modelo de segurança pública não privilegia que a gente olhe para os principais focos de problema.

Ponte – Quais são esses problemas?

Bruno Langeani – Quando a gente faz o diagnóstico da arma que está sendo usada no crime no Brasil, a gente vê que a esmagadora maioria dessas armas são nacionais, armas que foram fabricadas no Brasil e vendidas para entidades brasileiras ou para cidadãos brasileiros e depois, em algum momento da sua vida, desviadas para o crime. Em sua maioria, a gente está falando de revólveres e pistolas fabricadas há muitas décadas que vão vazando para o crime. Quando a gente faz um olhar de rastreamento dessas armas, a gente vê que há um tanto de desvio pulverizado, um desvio que muitas vezes não tem uma intencionalidade, é um cidadão que tinha essa arma e algum ladrão entrou e levou. Mas a gente vê também que há desvios de maior volume em grupos vulneráveis. A quantidade de armas que estão no crime que um dia estiveram com empresa de segurança privada é gigantesca. A quantidade de armas que foram desviadas de grupos com muitas armas, como os CACs, também é muito grande. É preciso que cada estado faça esse diagnóstico para encontrar os maiores desviadores e fazer uma atuação preventiva evitando que essa arma vá para a mão do crime. Esse dado para o varejo que eu falo, para o “arroz com feijão”, é da arma nacional.

Mas a gente tem também uma parcela menor e mais perigosa que são as armas de maior poder de fogo, que são os fuzis, são submetralhadoras, que nesse grupo o perfil já muda um pouco, já tem muito mais desvio de polícias e muito mais armas de contrabando mesmo, de tráfico internacional. E aí, nesse caso, você precisa ter mais colaboração com órgãos de controle de polícia e, para arma internacional, uma articulação maior com a Polícia Federal, que consegue rastrear e pedir ajuda para outros países para prevenir esse problema antes que ele chegue no Brasil. Para dar um exemplo prático, a Polícia Federal fez um esforço de rastreamento de pistolas Glock apreendidas no Brasil e descobriu que elas se concentravam em algumas importadoras e lojas paraguaias. Sabendo dessa informação, com o rastreamento, te permite a pedir tanto uma ajuda de polícias paraguaias para prender essas pessoas que estão importando para contrabandear, mas também pressionar o governo dos Estados Unidos a não exportar mais armas para o Paraguai. Então ao invés de a gente ficar num trabalho pescando com vara de bambu e pegando uma Glock hoje, outra Glock amanhã, você faz um trabalho que você vai na fonte. Você identifica a fonte e vai fechar quem está traficando arma e quem está ganhando muito dinheiro com esse comércio que gera tantas vidas perdidas no Brasil.

Ponte – Tem também também uma questão política importante de quem se adquire essas armas. O Intercept Brasil revelou que a Taurus adulterou informações das armas que vendeu sem autorização do Exército; agora o Congresso em Foco mostrou que o sistema de rastreamento de munição usada pelo Exército foi criado pela CBC. Como fica a responsabilização dessas empresas?

Bruno Langeani – Acho que tem alguns problemas no modelo brasileiro. O primeiro é que há muitas competências que estão concentradas na mão do Exército, que faz uma péssima fiscalização dessas empresas, e que tem uma relação de integrantes muito promíscua. A gente tem alguns exemplos de profissionais que atenderam a indústria, que estavam do lado de cá do balcão tendo que fiscalizar a indústria, e quando se aposentaram conseguiram emprego na própria indústria que eles deveriam fiscalizar. É a mesma coisa do Sicovem [Sistema de Controle de Venda e Estoque de Munições, ligado ao Ministério da Defesa], de você ter um sistema que é feito para fiscalizar a indústria, mas que foi criado, desenvolvido e é controlado pela própria indústria. Tem um conflito de interesse gigantesco aí colocado e o Exército não faz nada com relação a isso. Esse é um primeiro ponto. O segundo ponto é que esses tentáculos da indústria não estão só no Exército. A gente vê aí, por exemplo, os levantamentos sobre visitas de lobistas do governo em vários ministérios, Casa Civil, Defesa, Itamaraty.

Esse assédio já era muito frequente mesmo antes do governo Bolsonaro, mas pós-governo Bolsonaro, com essa agenda sendo central para ele, esse número explodiu. E para piorar, a gente tem alguns integrantes do próprio governo, do alto escalão, como o ministro Onyx Lorenzoni [da Casa Civil] que recebeu em quatro ou cinco campanhas [eleitorais], tanto regionais do Rio Grande do Sul quanto para deputado federal, o dinheiro da indústria de armas. É um conflito de interesse explícito que ninguém faz questão de esconder. Só lembrando que o Onyx Lorenzoni colocou a assinatura dele em várias das portarias, decretos que flexibilizaram a compra de arma. Ele recebeu o dinheiro da indústria para se eleger e depois foi responsável direto por várias flexibilizações que beneficiaram a indústria, fizeram com que ela explodisse nas vendas e hoje a Taurus é uma das empresas que teve a valorização mais alta na Bolsa de Valores, especialmente, por conta de toda essa gama de benefícios que ela recebeu do governo Bolsonaro. 

Ponte – Mas ela já recebia antes pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Porque o banco tem essa questão contraditória de que não incentiva o comércio de armas, mas investe em empresas que tenham caráter de defesa como a Taurus. 

Bruno Langeani – Na verdade, acho que pelas próprias regras do BNDES e Taurus não seria uma empresa elegível para receber financiamento, mas recebe desde antes do Bolsonaro e recebe isenções de impostos por ser uma por ser considerada pelo Ministério da Defesa uma empresa estratégica. Mas aí eu até faço um paralelo com você sobre o que a gente está vendo agora com o governo do México entrando com ação contra fabricantes de armas americanas. Se a Taurus tem, em vários estados, 60% ou 70% das armas apreendidas no crime fabricadas por ela, como que a gente não está enquanto governo buscando uma reparação dessa empresa para todo o impacto de política pública que ela gera? O Brasil tem aproximadamente 50 mil mortes por arma de fogo todo ano, sem contar hospitalizações, sem contar pessoas que ficaram com alguma sequela permanente e vão ter que ser indenizadas ou ficar em previdência social, e a empresa não está assumindo esse custo social. Pelo contrário, o Brasil está dando um incentivo para sua atividade e facilitando a sua comercialização, não só no Brasil, mas também a exportação dos seus produtos. É uma loucura. Quando a gente olha para o que está acontecendo em outros países, o que está acontecendo no Brasil não faz o menor sentido.

Ponte – Por que a violência armada é mais preponderante nas Américas do que em outras regiões?

Bruno Langeani – A América Latina, as Américas no geral, concentram um número de homicídio muito mais alto. Você tem entre os países com o maior número de homicídios, com as maiores taxas, vários estão América Latina, mas outra coisa que chama atenção é que a porcentagem de homicídios por arma de fogo na América Latina é maior do que em qualquer outra região do mundo. A do Brasil é uma das campeãs porque em algumas regiões chega a quase 80% dos homicídios cometidos com arma de fogo. O que eu acho que é um problema e, ao mesmo tempo, uma oportunidade para o Brasil. É um problema muito claro porque a gente vê que toda vez que o [índice de] homicídio sobe, um dos principais vetores desse aumento é a arma de fogo, só que o Brasil tem uma grande vantagem com relação ao México, por exemplo, que é o fato de o Brasil, ao sofrer de violência armada, é de armas brasileiras em sua maioria, não depende de terceiros para resolver o problema. E esse é um dos pontos que eu mais bato no livro: da importância de a gente combater essa visão da arma estrangeira, porque isso hoje, no Brasil, permite um jogo de empurra que é maravilhoso para todos os governantes. O governo federal culpa outros países, os governos estaduais falam que o problema é o governo federal que não cuida da fronteira, mas a gente vê que não só tem uma porcentagem muito grande de armas legais que foram para o crime e que essas armas foram registradas no mesmo estado onde ela cometeu o crime. Enquanto os governadores ficam olhando para o Paraguai, discursando sobre o governo federal e o Paraguai, os desvios estão acontecendo no nosso quintal, estão acontecendo no quintal dos próprios estados. Acho que esse é um dos principais eixos que a gente precisa trabalhar e cobrar políticas porque é aí onde a gente vai conseguir mexer no ponteiro e conseguir impactos mais rápidos.

Ponte – Você menciona que só tem duas delegacias de governos de estado que procuram coibir o tráfico de armas, além de uma da Polícia Federal. Por que esse investimento não acontece nos governos estaduais?

Bruno Langeani – É absurdo esse número tão pequeno. É absurdo principalmente porque os estados têm delegacias especializadas para tudo, tem delegacia especializada para lavagem de dinheiro, tem centenas de delegacias para narcóticos, que produz um efeito muito pequeno na segurança pública, e quando a gente fala de arma de fogo, você não vê essa priorização. Agora o que dá para mostrar com essas pouquíssimas experiências que a gente teve, eu já eu já comentei sobre um caso positivo da Polícia Federal, essas Desarmes (Delegacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos) nos estados, mesmo com pouca vida e com pouca estrutura, têm gerado um impacto muito interessante, pelo simples fato de que elas não param a investigação quando a arma é apreendida, é com a arma apreendida que a investigação delas começa. Quando você faz um paralelo, por exemplo, às DEICs de roubo a banco, quando o delegado consegue provar que a arma esteve num roubo a banco e, eventualmente, esteve em outro episódio em outro estado, para aquele inquérito, basta, e não vai atrás para rastrear aquela arma e saber quem fornece, quem alugava.

Assim fica muito fácil para o traficante ou para quem comercializa essa arma. Nas Desarmes os policiais estão justamente buscando esses elos, olhando para as apreensões do estado buscando correlações e indo atrás dos fornecedores. Então um caso de grande repercussão, que foi conseguido pela Desarme do Rio, foi feito a partir do rastreamento de munições apreendidas no Rio de Janeiro que eles começaram a perceber que tinha muita munição aparecendo, munição de fuzil aparecendo com número de lote. Rastrearam esse número e descobriram que era de um lote do Exército e da polícia do DF. Com isso, eles foram investigando e conseguiram prender um sargento do Corpo de Bombeiros do DF que trabalhava para o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República no governo Temer. Alguém do altíssimo escalão que estava desviando centenas e centenas de munições e, se você não tem um trabalho de investigação desse tipo, esse canal continuaria aberto, facilitando e barateando o acesso à compra de munição que alimenta os tiroteios diários no Rio de Janeiro.

Ponte – Como coibir a cooptação desses agentes da segurança pública para o tráfico de armas?

Bruno Langeani – A primeira coisa é que a gente precisa ter um um controle mais racional, precisa ter uma discussão sobre que grupos e que categorias precisam de fato acessar cada tipo de arma e cada tipo de munição, o que foi completamente desmontado pelo governo Bolsonaro. Será que atirador esportivo teria que ter acesso a 30 fuzis semiautomáticos de mesmo calibre que as Forças Armadas estão usando? Será que o cidadão comum deveria ter acesso a uma carabina semiautomática .40 ou de calibre 9mm para ter em casa? Essa é uma primeira racionalização que o Brasil precisaria voltar a fazer pós-governo Bolsonaro. E a segunda coisa é a gente ter um um mecanismo melhor de marcação e rastreamento com instituições mais fortes de fiscalização porque gente teve uma explosão de gente com armas mais potentes, mas a estrutura de Polícia Federal e do Exército, que deveriam cuidar dessa fiscalização, não cresceu na mesma proporção. Os mecanismos de marcação e rastreamento, na verdade, andaram para trás com o governo Bolsonaro. Ele mandou revogar portarias de marcação e rastreabilidade. Com isso você abre um uma avenida gigantesca para essa migração de agentes corruptos para fazer esse tráfico e comércio de arma e munição, o risco fica muito baixo de essa pessoa ser pega.

Ponte – Algumas pesquisas que você traz no livro mostram que a região Sul do país é a que mais tem armas dentro de casa e ao mesmo tempo também é a que tem maior número de suicídios. Por quê?

Bruno Langeani – A região do Sul, pela proximidades com com países com muita tradição de caça, como Argentina e Uruguai, e o perfil é de uma população rural, você tem essa tradição mais antiga de arma em casa e, muitas vezes, inclusive, de arma longa, espingarda, com essa finalidade de caça. E agora a gente vê que as pesquisas no Brasil e fora mostram que existe uma sucessão direta entre esse crescimento, essa prevalência de armas nos domicílios e a propensão a suicídios. Várias políticas públicas internacionais de prevenção de suicídio, isso é muito visto aqui no Brasil dentro das polícias, de que assim que você tem a identificação de alguém com quadro de depressão, a primeira medida recomendada é fazer um acautelamento dessa arma para proteger a pessoa porque esses impulsos suicidas acontecem de forma muito abrupta. E a presença da arma dentro de casa faz com que esse impulso tenha muito mais chance de virar uma ação e, no caso da arma de fogo, a tentativa de suicídio quase 100% [das vezes] vira um suicídio consumado porque é um artefato que foi feito para matar com muita eficiência.

Ponte – Você mencionou que a discussão sobre as armas fica muito restrita a grupos privados e à indústria. Como trazer esse debate para a população de maneira que seja mais participativo?

Bruno Langeani – Acho que a sociedade, a imprensa e os partidos políticos precisam ter clareza de que esse assunto com o presidente Bolsonaro não vai sair de pauta. Se na eleição de 2018 esse tema foi muito central, em 2022 é mais provável que esse assunto cresça, então as pessoas precisam estar mais informadas e mais bem preparadas para fazer esse debate. Esse é um primeiro ponto. O segundo ponto que eu acho é que a gente precisa é falar desse assunto de arma de fogo também de uma perspectiva de justiça. De justiça social, porque é falado sobre essa questão da arma, sobre a possibilidade de ter acesso etc, mas quando a gente olha na prática, 90% da população brasileira não tem a renda necessária para comprar uma arma de fogo. O presidente está defendendo uma solução individual que não está disponível para a maioria da população. Em especial à juventude negra. A única parte dessa política que eles vão ver ou que eles vão ter contato são os tiros, a arma em si não chega para eles. Então, para além dessa discussão que esse armamento não funciona para resolver a segurança pública, e ele ainda agrava o problema, acho que tem essa discussão sobre de como a gente tira a máscara dessa narrativa, mostrando que na prática, é um privilégio para um grupo muito seleto de pessoas, que não é o grupo principal que sofre hoje e que vai sofrer as consequências dessa regulação. A gente tem uma população hoje que não sabe se vai ter como que pagar o aluguel, não está conseguindo comprar carne ou colocar gasolina para trabalhar, e o presidente está falando de uma solução que custa R$ 5 mil, R$ 6 mil, para essa parcela da população acessar. Falar sobre isso ajuda a mostrar como essa é uma política enganosa que está sendo vendida.

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Quando a gente olha as pesquisas nacionais que perguntam a opinião da população brasileira sobre arma, a maioria sempre foi contra e essa contrariedade tem aumentado com o governo Bolsonaro. A nossa impressão é de que existe um mar de gente defendendo essa solução e isso acontece porque os grupos que defendem a arma do Brasil são grupos muito barulhentos, com muito acesso a recursos, e a impressão que dá olhando o debate por cima é que esmagadora a maioria defende o armamento, mas as pesquisas de opinião nacionais mostram o contrário. O que a gente precisa fazer, e acho que o livro tenta trazer isso, é mostrar que quem não quer arma ou quem não tem opinião sobre arma precisa começar a ter, precisa começar a se informar sobre as consequências porque senão as pessoas que gostam de arma vão continuar dando as cartas, vão continuar decidindo as políticas que afetam todo mundo.

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