Análise | De tucanos a urubus: Doria sepulta o sonho de um PSDB humanista

    Fundadores do PSDB paulista combatiam violência policial e chegaram a propor a extinção da PM, mas seus sucessores optaram pela truculência

    Quem te viu, quem te vê.

    Quem não conhece os primórdios do PSDB paulista não pode mais ver para crer que o partido desembocou em João Doria, um governador eleito após se pendurar em um presidente de extrema direita, e que fundamenta seu marketing de segurança pública na ideia de que a polícia precisa mandar pessoas “para o cemitério” — e olha que Doria vai gerir um estado em que os policiais já estão batendo todos os recordes de letalidade — e para quem os direitos humanos significam apenas a defesa da “família e da propriedade”.

    Quem jamais esquece as posturas do antigo governador tucano Mário Covas, que adotou medidas reais de controle da violência policial e chegou a propor a extinção da Polícia Militar, não pode reconhecer o partido que agora participa de um projeto de militarização nacional da segurança, com representantes do Exército assumindo postos de comando da segurança pública em diferentes estados, numa onda verde-e-oliva de presença fardada na gestão pública como não se via desde 1985, quando chegou ao fim do regime político preferido do atual presidente eleito da República.

    Ao mostrar que pretende trocar a alcunha de João Trabalhador pela de João Matador, Doria desferiu o tiro de misericórdia que faltava no sonho de um PSDB humanista, dotado de algum interesse real em fortalecer a democracia e defender os direitos humanos. Acredite: isso já existiu.

    Sim, no tempo em que era tudo mato na redemocratização brasileira, alguns dos primeiros opositores da ditadura a assumirem o poder em governos estaduais entendiam que haviam herdado uma estrutura autoritária na segurança pública e que tinham o papel histórico de desmontá-la. Antes de partir, o regime militar havia deixado como herança, em cada estado, a divisão das forças de segurança em duas polícias, uma civil, com funções judiciárias, e outra militar, para o policiamento ostensivo das ruas, que também era uma força auxiliar do Exército — um tipo de arranjo que foge a tudo o que se vê nos países democráticos.

    O primeiro governo que tentou desmontar a máquina de matar pobres e negros que os militares haviam deixado foi o do pedetista Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, uma liderança histórica da esquerda brasileira. Em seus dois mandatos (1983-1987 e 1991-1994), Brizola proibiu a PM de invadir barracos de favelas sem mandado judicial, criou um Conselho de Direitos Humanos e Justiça e buscou diminuir a repressão sobre manifestações populares.

    Ao mesmo tempo, em São Paulo, a gestão do governador peemedebista Franco Montoro (1983-1987), que viria a ser um dos fundadores do PSDB, criou um programa que buscava coibir a violência policial, ao afastar por seis meses os policiais envolvidos em ocorrências com morte, e apresentou uma proposta de reforma da PM que não foi para a frente, mas que previa a extinção da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), a tropa mais mortífera da PM paulista. Originalmente criada para combater os inimigos da ditadura militar, a Rota acabou redirecionando seus esforços para a criminalidade comum e se tornou especialista da matança de jovens negros das periferias, alvo de constantes denúncias de tortura e execuções extrajudiciais.

    Em 1995, entra em cena Mário Covas, que anos antes havia fundado o PSDB ao lado de Montoro e do futuro presidente Fernando Henrique Cardoso, entre outros. Covas acabaria dando início ao domínio do PSDB em São Paulo, uma dinastia de partido único sem paralelo no restante do país. Ao lidar com a violência policial, contudo, Covas — que havia sido cassado em 1968 pelo AI-5 e conhecia bem os efeitos da truculência fardada  — seguiu um caminho bem diferente dos tucanos que viriam sucedê-lo.

    Ao assumir o governo, uma das primeiras ações de Covas foi a instalação da Ouvidoria da Polícia, primeiro órgão autônomo criado no Brasil para fiscalizar a ação policial. Retomando as políticas de Montoro, implantou o Proar (Programa de Acompanhamento para Policiais Envolvidos em Ocorrências de Alto Risco), que obrigava os policiais envolvidos em homicídios a se afastarem do serviço de rua por dois meses, período em que passavam por acompanhamento psicológico e reciclagem profissional. A gestão Covas também instituiu uma comissão de combate à letalidade policial, com representantes de movimentos sociais, e pela primeira vez tornou obrigatório o exame residuográfico (para detectar restos de pólvora) de policiais envolvidos em crimes de morte.

    “Polícia não é para matar. O policial que matou a primeira vez, mesmo que em legítima defesa, vai começar a matar sem necessidade”, me disse, em 2006, o advogado José Afonso da Silva, que atuou como secretário de Segurança Pública de Covas entre 1995 e 1998.

    Em 1997, quando um grupo de PMs foi flagrado espancando moradores da Favela Naval, em Diadema, na Grande SP, Covas não só não passou pano para os policiais como ainda sugeriu uma solução radical: uma emenda constitucional para extinguir a Polícia Militar e criar uma única polícia. Isso mesmo. Um governador tucano que defendia o fim da PM, isso muito antes de os manifestantes de 2013 transformarem em modinha o grito de guerra “Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar”. São Paulo já teve disso.

    A história não tem final feliz. As tentativas todas de adaptar as forças policiais para o regime democrático falharam logo após começar. No Rio, a política brizolista de conciliar segurança e outros direitos humanos foi bombardeada por vários setores da mídia e acabou abandonada pelos seus sucessores. O primeiro deles, Marcelo Allencar (1995-1999), chegou a criar a “gratificação faroeste”, concedida aos policiais envolvidos em ações violentas. “É certo que falhamos. Não conseguimos implantar o modelo democrático que defendíamos (…) não conseguimos fazer a polícia entender que a sua principal tarefa era prender e não matar”, lamentou Carlos Magno Nazareth Cerqueira, comandante geral da PM no governo Brizola — e um dos raros casos de um policial negro a ocupar essa função.

    Em São Paulo, o sonho tucano de uma política de segurança pública democrática entrou em agonia após a morte de Covas, em 2001. Seu sucessor foi Geraldo Alckmin, um político do interior de São Paulo ligado ao conservadorismo católico da Opus Dei, que ficou conhecido pela falta de carisma e pelo jeito anódino, que lhe renderam o apelido de Picolé de Chuchu. O governador sem sal, contudo, fazia questão de apimentar as palavras quando abordava o trabalho policial, usando declarações do tipo “Em São Paulo, bandido tem dois destinos: prisão ou caixão” ou “Quem não reagiu está vivo”. Pior do que as palavras de Alckmin, contudo, foram as suas práticas.

    O início da metamorfose dos tucanos em urubus (ou em carcarás, como definiu o jornalista Elio Gaspari), tem uma data precisa: 5 de março de 2002. Foi nesse dia que a PM matou 12 homens ligados ao PCC (Primeiro Comando da Capital) em uma emboscada na rodovia Castelinho, em Sorocaba (SP). Chamada pelo Ministério Público de “maior farsa já protagonizada pela polícia de São Paulo”, a operação Castelinho teria envolvido o uso de criminosos infiltrados pela PM, os quais convenceram colegas a embarcarem na aventura do roubo a um avião pagador que não existia e ainda lhes forneceram o armamento que seria usado no suposto crime, sem revelar que a munição era de festim. Cercados de surpresa por mais de 100 policiais militares, os 12 homens foram alvejados dentro do ônibus em que viajavam por mais de 700 tiros. Ninguém foi punido, seja pela Justiça, que absolveu todos os envolvidos, seja pelo governo Alckmin, que garantiu promoções a cargos de primeira linha aos comandantes da operação, conforme narrado no livro Cobras e Lagartos, do mestre e jornalista da Ponte Josmar Jozino.

    A guinada na política de segurança foi lamentada por José Afonso da Silva, o primeiro secretário de Segurança Pública de Covas. “A nossa era uma política de segurança democrática, o que significava, em primeiro lugar, o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. A política do Saulo [de Abreu Castro Filho, primeiro secretário de segurança pública de Alckmin] tomou outro rumo, especialmente no que tange à ação da Polícia Militar”, declarou.

    Dali para a frente, o PSDB mergulhou São Paulo num banho de sangue. O “outro rumo” tomado pela política de segurança tucana chegou ao seu nível mais brutal em maio de 2006, também sob o comando de Saulo de Abreu Castro Filho, durante o breve governo interino de Cláudio Lembo (PSD), quando o Estado comandou uma suposta reação a ataques do PCC que haviam matado 43 agentes públicos, a maioria policiais. A reação da polícia e de grupos de extermínio elevou para 493 o número de mortes, várias delas com indícios de execuções, apontadas por instâncias tão diferentes como o Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), o Laboratório de Análise de Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a Clínica Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard.

    Difícil imaginar uma reviravolta maior: o PSDB paulista, que havia cogitado extinguir a Polícia Militar por considerá-la um resquício autoritário, agora revelava que, em pleno regime democrático, era capaz de matar, em nove dias, mais do que a ditadura militar em 20 anos.

    E viriam outras. Em 2012, novamente sob uma gestão de Geraldo Alckmin, o secretário de Segurança Pública, Antonio Ferreira Pinto, resolveu colocar a Rota na linha de frente do combate ao crime organizado. O resultado foi uma série de mortes de integrantes do PCC, muitas delas com suspeitas de execuções, seguida de uma reação violenta da facção, que passou a atacar e matar policiais em emboscadas. Veio, então, o contra-ataque dos PMs, que, como já havia ocorrido em 2006, matou muito mais gente do que a ação dos bandidos. Numa reportagem que fiz com William Cardoso para a Agência Pública, identificamos em 2012 pelo menos 38 homicídios que se seguiram a 11 ataques contra policiais, numa aparente ação sistemática de vingança. Um estudo de de Camila Nunes Dias, com Maria Gorete Marques, Ariadne Natal, Mariana Possas e Caren Ruotti, publicado na Revista Brasileira de Segurança Pública, apontou na mesma direção. Muitas das vítimas dos ataques policiais, é bom lembrar, não tinham qualquer relação com a criminalidade — caso, por exemplo, dos sete mortos na chacina do Jardim Rosana.

    2012 também é simbólico da metamorfose dos tucanos porque foi o ano em que o PSDB aceitou a candidatura do coronel Paulo Adriano Lopes Lucinda Telhada, que havia sido comandante da Rota — a mesma tropa que Franco Montoro, um dos tucanos pioneiros, havia tentado eliminar anos antes, sem sucesso. Telhada elegeu-se vereador e, dois anos depois, tornou-se deputado estadual, ainda pelo mesmo partido. Sinal de como o PSDB havia mudado: a presença de um policial da Rota com 36 mortes nas costas, sempre pronto a elogiar a ditadura e a atacar os direitos humanos, jamais provocou qualquer constrangimento dentro do partido.

    E não foi só o PSDB. De modo geral, todos os partidos identificados com a esquerda ou centro-esquerda que chegaram ao poder foram logo deixando de lado qualquer ideia que tivessem sobre limitar as execuções extrajudiciais praticadas por agentes do Estado, diminuir o encarceramento em massa ou combater a militarização da segurança pública assim que sentavam nas cadeiras de seus palácios.

    O PT foi outro. Em 14 anos na Presidência da República, o partido deu poucos passos dignos de atenção na luta contra a violência do aparelho estatal e ainda colecionou retrocessos: uma delas foi a famigerada Lei Antiterrorismo, sancionada por Dilma Rousseff pouco antes de seu impeachment. A presidenta não deu atenção a análises de entidades como a Conectas e a Artigo 19 e abriu caminho para a armadilha dos dias de hoje, com propostas de parlamentares que buscam usar a mesma lei para criminalizar movimentos sociais. E ainda teve governador do PT que abraçou a matança de negros pobres com um entusiasmo digno dos tucanos mais sanguinolentos: foi o caso de Rui Costa, reeleito neste ano para o governo da Bahia no primeiro turno, que em 2014 saudou as mortes de 12 jovens cometidas pelos seus policiais e ainda comparou a chacina a uma partida de futebol.

    Voltando aos tucanos e sua transformação em urubus, é chocante imaginar que alguém ainda acredite que truculência e mortes sejam a resposta para combater o crime organizado, se nem o governo que produziu as matanças de 2006 e 2012 conseguiu qualquer avanço na tentativa de impedir que o PCC se tornasse a maior facção criminosa do país.

    O problema é que a mente dos que defendem a violência policial fora da lei e a matança como políticas de Estado é que suas mentes parecem presas a um looping: a resposta é sempre mais violência e, se uso de violência não deu certo, é porque faltou violência, precisamos de mais, sempre mais.

    Levando em conta toda essa trajetória, que o PSDB resolvesse abraçar a extrema direita e adotar uma militarização ainda mais exacerbada da segurança, agora não só com as forças auxiliares do Exército em ação nas ruas, mas também com um general do próprio Exército no comando da pasta de Segurança Pública, era um passo natural.

    E talvez seja até um exagero afirmar, como disse no começo, que Doria, nosso candidato a João Matador, tenha dado um tiro de misericórdia no projeto original de um PSDB humanista. Esse é um sonho que já tinha morrido faz tempo. Triste de quem ainda acreditava nele.

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