Análise | Solitária: a literatura revolvendo o passado escravagista do trabalho doméstico

    Em seu novo romance, a carioca Eliana Alves Cruz recria em um condomínio de luxo as relações coloniais à la brasileira

    Eliana Alves Cruz na apresentação de seu livro | Imagem: Divulgação

    O romance mais recente de Eliana Alves Cruz, Solitária, publicado pela Companhia das Letras, me remeteu a uma colcha de histórias que já vi e ouvi e tenho certeza de que, se o leitor pertencer a famílias como a de Mabel e Eunice ou se tiver alguma sensibilidade social, se lembrará de casos e mais casos que perpassam a narrativa.

    Nesse livro, a autora mantém aquele tom de suspense de O Crime do cais do Valongo e de Nada digo de ti que em ti não veja. No entanto, esse é um romance de nossos tempos com nossos desafios, ainda que com estruturas parecidas dos séculos passados mais com outros nomes.

    O cenário do condomínio de luxo é quase o cenário de um Brasil onde ainda há senhores e subalternos que não dividem os elevadores, os quartos, os banheiros e, por vezes, nem a comida. Quando Eunice precisa levar sua filha, Mabel, para o trabalho por não ter com quem deixá-la ecoa a falta de estrutura social que milhares de mulheres diariamente enfrentam. Mulheres que não possuem acesso a uma rede de proteção que as ajude a cuidar de seus filhos enquanto trabalham com baixos salários, poucos direitos e muita cobrança. Afinal, alguém precisa manter a classe média e a elite confortável, limpa, alimentada, alheia ao trabalho braçal.

    Os lugares sociais são os mesmos dos tempos de escravidão. A cozinha, a área de serviço, o quartinho são resquícios das senzalas. As grandes salas com mil berloques inúteis e caros, coberta com tecidos e texturas de última geração recria os grandes salões das sinhás. Mesmo sob o manto da PEC das Domésticas, as relações trabalhistas desta categoria ainda se escondem a sombra do período escravagista. Corpos negros ainda jovens são recebidos por famílias “de bem” como pequenas criadas que não terão salário, talvez nem liberdade – a menos que alguém as resgate, mas, por Deus, querem pagamento maior do que um teto de um quartinho mofado sobre suas cabeças, roupas de segunda mão e os restos dos pratos dos patrões? (Acho melhor avisar que este trecho contém ironia).

    Mabel é filha da geração do ProUni, das cotas, dos operários, trabalhadores domésticos e braçais que viram suas crias acessaram às universidades federais. Ainda que tenha sido parte do mundo de sua mãe, ao ajudá-la a cuidar da filha da patroa, ela foi a primeira de sua família em ousar romper a barreira, ousar sonhar em ser médica e conseguir sob o olhar desdenhoso dos patrões. Em contraposição, a filha da patroa não precisava fazer nada. Afinal, aquele mundo já lhe era dado, o privilégio de seu berço e de sua pele dava tudo por garantido. E ainda, contava com o cuidado de duas mulheres: sua mãe e a empregada enquanto Mabel cresceu com o cuidado de “não dar trabalho” para sua mãe a fim de não a prejudicar e, assim, não prejudicar a ordem estabelecida da vida dos patrões.

    Há tantas referências atuais no livro que chega ser como ler uma página de jornal – obviamente, escrita de forma bem mais interessante. Violência doméstica, acesso ao aborto, cuidado infantil, relações de trabalho, ascensão da extrema-direita, a chegada da covid-19. Todos nossos últimos 10 anos como país e sociedade estão condensados nas pouco mais de 160 páginas do livro, remexendo assuntos que ainda são tabus para quem goza de privilégios.

    Ainda assim, o romance também é uma ode às solitárias, aos quartinhos, às sonhadoras, às ousadas, às ancestrais. Reconhece suas existências e resistências e o legado que deixam as novas gerações. Geralmente, como jovens, não reconhecemos o legado de luta das mulheres que nos cercam.

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    Minha avó nunca foi em um protesto feminista ou do movimento negro. Minha mãe nunca leu Angela Davies. Minhas tias não conhecem Lelia Gonzales. Todas trabalharam em “casa de família” antes mesmo de irem para a escola. É sob a base sólida e resiliente que elas construíram que eu me coloquei e dei um passo adiante, trazendo todas comigo. O avançar de Mabel contra as estruturas é o avançar de todas as que vieram com ela. Um avançar dolorido, cansativo, mas que dele depende nossa sobrevivência. Um avançar que só foi possível graças Eunice, sua mãe, dona Codinha, sua avó e todas as ancestrais que compartilhamos.

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