‘Andei com prova de crime no braço’, conta sobrevivente de chacina em SP

    Atingido no braço em ataque no dia 7 de janeiro, Pedro ficou três semanas com projétil alojado no cotovelo; primeira chacina no ano em São Paulo deixou quatro pessoas mortas

    Bala atingiu sobrevivente no braço e ficou alojada no cotovelo | Foto: Arthur Stabile/ponte.org

    Há exatos 30 dias, Pedro* estava com outros dois amigos vendo televisão pelo celular dentro do carro modelo Palio, de cor prata. Era por volta de 3h de um domingo quando ouviram barulhos consecutivos e que pareciam muito próximos. Pouco depois, o mesmo ruído surgiu de outro lugar, mais distante. “É tiro”, disse um dos amigos. Até então, eles não sabiam do que se tratava. Os sons eram de dois ataques a tiros que mataram quatro pessoas na Vila Miriam, zona norte de São Paulo. O trio entendeu o que acontecia da pior forma: sendo atacados.

    “Do nada, saiu um cara encapuzado do escadão e começou a atirar na gente. Ele usava um moletom cobrindo o rosto e um boné na cabeça, disparou até a arma esvaziar”, conta o sobrevivente, relembrando dos instante de desespero e pânico que viveu. Um dos tiros furou a blusa, atingiu o braço de Pedro e a bala ficou alojada próximo ao cotovelo. Um dos amigos teve os ossos da mão destruídos por um disparo – no procedimento cirúrgico, foi necessário retirar pedaço de osso da bacia para reconstruir a mão. O outro amigo saiu ileso.

    Depois de atingido, o sobrevivente saiu e correu em volta do carro para fugir dos disparos, mais de dez, segundo suas contas. “Eu até tentei gritar: ‘Calma, é trabalhador’, mas não adiantou nada, aí abaixei. Nenhum outro tiro me atingiu”, diz. Quando a arma silenciou, o barulho era do homem de blusa e boné correndo para a rua de cima em direção a um carro, que desapareceu. “Não dava pra ser um só carro nos três lugares, foi muito rápido. Não dava tempo”.

    Pedro e seu amigo, apesar de feridos, tiveram sorte. Os dois barulhos ouvidos pelo trio quando estavam no carro – incluindo o amigo não atingido – mataram quatro pessoas: Bryan Dantas de Carvalho, de 16 anos, Luís Vagner Gonçalves de Oliveira e Matheus da Silva Rocha, ambos de 18, na Rua Duarte Moreira, em frente à casa de Bryan. Menos de um quilômetro distante, Willian Tomas Oliveira Leite, na Rua Brasilina Vieira Simões, também em frente à sua residência, acabou atingido e não resistiu.

    Três semanas sem trabalhar andando com prova do crime no corpo | Foto: Arthur Stabile/ponte.org

    O carro em que os sobreviventes estavam segue parado na Rua Santo Antônio dos Coqueiros, na Vila Miriam, com marcas do ataque. São furos no capô, no vidro dianteiro e na fuselagem do lado do motorista. As marcas dos sobreviventes são físicas e psicológicas. Por cerca de 20 dias, Pedro não pôde trabalhar. Neste tempo, a cirurgia para retirar a bala alojada em seu cotovelo foi desmarcada duas vezes. “Quando chegava no hospital, falavam que não tinha perigo e colocavam casos mais graves na frente”, lembra. Caminhoneiro, só conseguiu voltar aos trabalhos no fim de janeiro, não exatamente pelo ferimento, mas, sim, por ter ficado três semanas com uma prova do crime em seu corpo. “Estava perdendo dinheiro aqui, parado. Andei com prova de crime no braço. Como sair do estado assim? Não dá”, desabafa.

    Investigação

    Foram duas as idas de Pedro ao DHPP (Departamento Estadual de Homicídio e Proteção à Pessoa) da Polícia Civil de São Paulo para contar o que viu. A investigação da 3ª Delegacia de Homicídios Múltiplos é liderada pelo delegado Antônio Carlos Cândido Araújo e as informações oficiais dão conta de que, desde o dia seguinte da chacina, as apurações estão em andamento. De lá para cá, não houve mais qualquer nova informação da SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública de São Paulo). A Ponte solicitou entrevista com o delegado responsável e nota para a CDN Comunicação, assessoria de imprensa terceirizada da pasta. Sobre as apurações, a pasta apontou que “oitivas estão sendo realizadas e a equipe aguarda laudos periciais que poderão ajudar no esclarecimento do caso. As duas vítimas sobreviventes já prestaram declarações e câmeras de monitoramento seguem em análise”, disse. O pedido de entrevista com o delegado não foi respondido.

    Cápsulas de calibre .40, de uso exclusivo do Estado, se tornaram as primeiras provas coletadas na investigação, após perícia nos ataques anteriores ao sofrido por Pedro – neste, não foi encontrado nenhuma cápsula, segundo relatado no Boletim de Ocorrência do caso. O fato de um calibre usado por forças do Estado fez o MP-SP (Ministério Público de São Paulo) designar a promotora Renata Cristina de Oliveira a acompanhar os trabalhos de Cândido Araújo e sua equipe. Cabe ao órgão fiscalizar a atuação das polícias, seja civil ou militar. A Ponte pediu entrevista com a promotora, contudo, a presença em um júri impossibilitou a entrevista por telefone, conforme explicado pela assessoria do MP-SP. “O MPSP acompanha o caso. Não foi possível contatar a promotora de Justiça nesta terça (6/2)”, respondeu a assessoria.

    Onze dias após os três ataques, investigadores da Polícia Civil estiveram em frente à casa de Bryan para coletar vídeo de uma câmera de segurança frontal a onde aconteceram os homicídios. Porém, conforme revelado pela Ponte, o equipamento estava sem condições de registrar as imagens.

    Traumas

    Pedro mora há mais de quatro décadas na Vila Miriam, região de Pirituba. Está ali desde que nasceu e, segundo ele, não sairá de lá apesar do medo deixado. “A minha vida toda eu morei aqui, não vou sair. Não devo nada para ninguém. Acredito que essas pessoas não vão retornar, não. Já atacaram uma vez”, garante, sem apagar a experiência de quase morte. “É difícil. Não tenho dormido direito desde aquele dia. Ficamos assustados. Nós, vítimas, e também nossos familiares, sofremos”, conta.

    Maria Cecília, mãe de Matheus, uma das vítimas da chacina | Foto: Arthur Stabile/ponte.org

    Nem todos tem o mesmo pensamento. Familiares de Bryan seguem morando no mesmo lugar, mas não sabem até quando. “Meu filho está com medo, nem sai de casa direito. A gente, mais velho, só sai acompanhado pra qualquer lugar. É uma sensação grande de insegurança. A gente não sabe quem foi, vai que voltam e façam o mesmo com a gente?”, explica um dos parentes do jovem morto, pedindo para não ser identificado por medo de represália. “A gente morava de aluguel até seis meses antes disso acontecer, quando subi um puxadinho no fim do terreno. Agora, não sei mais. Meu filho quer sair daqui de qualquer jeito”, disse.

    Maria Cecília Livino da Silva não mora na Rua Duarte Moreira, mas o trauma é tão grande quanto. Matheus da Silva Rocha era seu filho mais velho e morreu ao lado dos amigos Bryan e Luís Vagner Gonçalves de Oliveira. “Foi um choque muito grande. Não esperava que ia acontecer isso com ele, até por ser um menino tranquilo. Meu filho era muito esforçado, responsável, não faltava ao serviço e não dava trabalho”, relembra.

    Dona de casa e com dois empregos – ajudante de cozinha e cuidadora de idosos -, ela retornou apenas a um dos empregos. Diz que segue firme pelos três filhos, mas sua mãe, que ajudou na criação de Matheus, sofre mais. “Não fosse o emprego dela, que também cuida de um senhor, já tinha entrado em depressão. Eles dois eram muito ligados”, lembra.

    *Nome fictício para proteger o sobrevivente

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