Preso soropositivo que denunciou agressões e falta de remédio no DF consegue autorização para trabalhar

Jovem foi condenado ao regime semiaberto, mas estava no fechado por um jogo de empurra judicial; ‘eu não fui condenado para ser agredido e humilhado’, diz

Fachada do CPP (Centro de Progressão Penitenciária) de Brasília, para onde Jonathan foi transferido para cumprir o regime semiaberto | Foto: reprodução / Google Street View

“Eu estou completamente destruído e agora eu vou começar a recolher os cacos”, contou Jonathan*, de 32 anos, a caminho do trabalho como pintor nesta quinta-feira (20/5), o primeiro dia em que começou a cumprir o regime semiaberto no Distrito Federal.

Desde janeiro, quando foi preso no CDP II (Centro de Detenção Provisória) de Brasília e depois encaminhado ao CIR (Centro de Internamento e Reeducação), do Complexo Penitenciário da Papuda, o jovem passava por dois abusos. Primeiro, o imbróglio judicial sobre a execução da sua pena de cumprimento de cinco anos no regime semiaberto (quando o preso trabalha durante o dia e retorna à noite para dormir na unidade prisional), já que a Vara Federal de Marília (SP) e a Vara do Distrito Federal alegavam não ter competência para prosseguir o caso.

A Justiça de Marília alegava que Jonathan foi preso na cidade onde reside e que deveria cumprir a pena no DF por estar próximo à sua residência. Já a do Distrito Federal justificava que ele deveria cumprir a pena próximo à comarca onde o crime ocorreu e onde foi processado

Depois, veio a situação desumana, como ele mesmo relata, que passou dentro das unidades prisionais nesse período. Desde março, a Ponte conta o drama da família de Jonathan, que denunciava aos órgãos de controle agressões que ele estava sofrendo, falta de atendimento médico, fornecimento de remédios, já que ele é soropositivo, e condições adequadas de alimentação e higiene. O rapaz recebeu a medicação 17 dias depois de ter sido preso e chegou a se contaminar com a Covid-19 dentro da unidade.

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“Eu fiz uma escolha errada, mas a pena que eu fui condenado não foi para ser agredido, humilhado, passar fome com comida ruim, não ter atendimento médico”, lembra, chorando. “Eu saio dali com traumas para vida toda, a forma como te tratam é para acabar com a sua humanidade, eu cheguei a um ponto em que pensei em tirar a minha própria vida diante de tanta dor, de estar no limite”, prossegue ao telefone, muito emocionado. Agora, ele passa a dormir no CPP (Centro de Progressão Penitenciária) de Brasília.

“E isso não acontece só comigo. Eu tenho sorte de ter família, não estar sozinho, mas tem muitos que não têm advogado, não tem para onde recorrer”, denuncia. Uma das denúncias que teve repercussão neste mês é a de agressões e tortura que teriam sido cometidas por agentes penitenciários no CDP II de Brasília contra o ativista Rodrigo Pilha, que cumpre regime semiaberto por condenações de desacato e embriaguez ao volante. Ele ficou 14 dias na unidade, onde os agentes teriam o agredido e o chamado de “petista”. Segundo o portal Metrópoles, a juíza Leila Cury, da VEP-DF (Vara de Execuções Penais do Distrito Federal), mandou afastar os agentes.

Juíza faz inspeção no CIR

Em 4 de maio, o juiz Alexandre Sormani, da 1ª Vara Federal Criminal de Marília, decidiu acatar um pedido de autorização de trabalho feito pela família de Jonathan para ser cumprida no Distrito Federal enquanto Jonathan não era transferido para Marília, já que, na argumentação do magistrado, esse não poderia ser um obstáculo para a execução da pena. “De toda forma, consigno que o trabalho externo na capital federal não obstará a efetivação da transferência do apenado para estabelecimento penal do Estado de São Paulo, uma vez que foge ao alcance deste juízo as questões administrativas relativas à vaga para cumprimento da pena no Distrito Federal, motivo pelo qual, inclusive, ensejou a devolução dos autos de execução a este juízo”, escreveu.

A juíza Leila Cury, três dias depois, criticou a decisão do colega por ter determinado uma execução da pena à distância, sendo que caberia à VEP-DF a analisar a proposta de trabalho e fiscalizar o cumprimento. Porém, de forma excepcional, decidiu assumir a competência da execução, “considerando que foram feitas denúncias contra policiais penais locais e, considerando o imbróglio processual ao qual a VEP-DF não deu causa, para facilitar a sua apuração e para não prejudicar a marcha processual”.

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No mesmo dia, a magistrada foi ao CIR, onde Jonathan estava preso, para conversar com ele e inspecionar o local. Determinou o atendimento odontológico do jovem, já que, desde a denúncia, estava com o aparelho nos dentes quebrado. Sobre o atraso de agendamento das visitas virtuais, Cury informou que a direção da unidade deveria se atentar ao espaço de tempo em que Jonathan foi transferido do CDP para o CIR, já que a família só conseguiu se cadastrar 13 dias depois.

Com relação ao período de 17 dias em que ficou sem os antirretrovirais, a magistrada determinou que a Seape (Secretaria de Administração Penitenciária) orientasse acerca de “protocolo adequado para que custodiados em tratamento medicamentoso não tenham o acesso a medicação interrompido ao serem transferidos para outras unidades prisionais”.

Sobre as agressões, encaminhou para apuração do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios e também solicitou posicionamento da Seape.

Até então, o Nupri (Núcleo de Controle e Fiscalização do Sistema Prisional do MPDFT) havia solicitado exame de corpo de delito 11 dias depois de quando as agressões contra Jonathan teriam acontecido e a médica do Instituto de Medicina Legal Emílio Ribeiro, responsável pelo laudo de 11 de março, concluiu que não havia lesões recentes. Na ocasião, segundo o documento obtido pela Ponte, Jonathan reclamou que foi agredido em cinco situações, que teve o aparelho que usa nos dentes quebrado e que sentia dores no MSE (membro superior esquerdo) e no joelho, mas o laudo informava que “não há vestígio de lesão nos locais apontados”. Nas fotos anexadas, que são de corpo inteiro, pela baixa qualidade, não é possível visualizar com precisão.

A irmã de Jonathan continuou encaminhando a denúncia para OAB-DF, ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e à própria VEP. A juíza argumentou que a vara não foi omissa por ter instaurado procedimento investigatório sobre as denúncias, mas dessa vez, depois que a familiar reiterou o pedido de apuração das denúncias, resolveu fazer uma oitiva com Jonathan.

Revezamento de profissionais de saúde

Durante a inspeção, a juíza Leila Cury relata que se deparou com “uma situação preocupante” ao ver que profissionais da equipe de saúde da UBS (Unidade Básica de Saúde) do CIR e que deveriam estar naquele momento atendendo presos estavam se deslocando para unidades móveis da secretaria de Saúde para reforçar equipe de aplicação de vacinas e não comunicaram a VEP.

“No contexto da pandemia de COVID-19, este Juízo teve o cuidado de determinar que se atendesse a todas as recomendações técnicas da Secretaria de Saúde, para evitar o descontrole do quadro sanitário do sistema prisional e, dentre as medidas pactuadas, inclusive com solicitação expressa deste Juízo diretamente ao Excelentíssimo Senhor Governador do DF, e homologadas pelo Conselho Distrital de Saúde e pela Secretaria de Saúde, destaca se a ampliação do horário de atendimento das UBSs e incremento das ações em saúde, inclusive por meio da realização diária de busca ativa”, escreveu.

Com isso, ela determinou que o governador, o secretário de Saúde, a gerência de Saúde Prisional da pasta e o Conselho Distrital de Saúde que fossem intimados e explicassem sobre a situação, que considerou como “grave”, em até cinco dias úteis, conforme decisão de 11 de maio.

O que diz a Seape: ‘denúncias inverídicas’

Em documento que a Ponte teve acesso no qual a Secretaria de Administração Penitenciária responde a respeito das denúncias feitas pela família de Jonathan, o diretor-geral do CIR Luiz Lima de Medeiros afirma que não ocorrem subtração de objetos pessoais nem agressões na unidade, apontando que o laudo de Jonathan não constatou lesões, e que ele recebeu ao menos 12 atendimentos médicos no local. “É compreensível a situação de êxtase à que se submetem os familiares, sobretudo quando possuem algum familiar encarcerado. Contudo, valer-se de tal sofrimento para menoscabar a reputação desta instituição é medida que deve ser absolutamente rechaçada”, alegou Medeiros. Não ficou claro o que o diretor-geral quis dizer com a palavra “êxtase”.

Sobre a falta de colchão e cobertor, na época em que ele deu entrada na unidade, o diretor afirmou o CIR estava com 140% de superlotação, sendo que não daria para colocar outro colchão na cela, e a prisão passava por “falta de insumo”, mas que foram fornecidos dois cobertores a Jonathan.

“Consideramos importante o direito à transparência e às denúncias como melhoria do sistema, sobretudo aos canais de recebimento de denúncia, contudo, tais mecanismos não devem se servir de amparo à denúncias levianas, que visam menoscabar o serviço público e atentar contra a moral da administração pública”, escreveu.

A Ponte questionou a pasta sobre a situação e sobre a inspeção da juíza Leila Cury e aguarda uma resposta.

O que diz o MP

A reportagem questionou o Nupri a respeito das denúncias cuja assessoria disse que arquivou o procedimento “por falta de lastro probatório mínimo quanto à materialidade e à autoria delitivas”.

Também perguntamos sobre o caso de Rodrigo Pilha o qual o órgão declarou que está em sigilo e segue em apuração.

Já sobre o revezamento de profissionais da saúde, o MP declarou que “se manifestará no procedimento judicial respectivo, que segue em sigilo”.

O que diz a secretaria de Saúde

A Ponte procurou a secretaria de Saúde sobre o revezamento de profissionais. Em nota, a pasta informou que a as Superintendências Regionais tem autonomia para remanejamento dos servidores das UBS prisionais e que as unidades não sofreram com falta de atendimento. “A Diretoria de Atenção Primária da Região de Saúde Leste informou que  a disponibilização de servidores das equipes de saúde prisional para apoio à campanha de vacinação contra Covid-19 foi feita de forma equalizada, de modo a não onerar os serviços.  Vale ressaltar que no ápice a pandemia (abril a julho de 2020), uma força tarefa foi montada no Complexo Penitenciário da Papuda, com reforço de servidores de outras unidades de saúde,   para dar assistência aos internos e policiais penais”, declarou.

*O nome do preso foi trocado a pedido da família.

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