Após 8 anos, Justiça de SP absolve acusados pela morte de Laura Vermont

Jurados entenderam que agressões não causaram a morte de jovem trans em 2015 e condenaram três dos cinco réus por lesão corporal; julgamento foi permeado por transfobia e família diz que vai recorrer

Família de Laura Vermont protesta antes do início do julgamento nesta quinta-feira (11/5) | Foto: Jeniffer Mendonça / Ponte Jornalismo

AVISO: esta reportagem contém descrições de violências física e verbal contra a população trans e pode gerar gatilhos.

O Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu, nesta sexta-feira (12/5), os acusados de perseguir e agredir a jovem trans Laura Vermont, 18, na Vila Nova Curuçá, na zona leste da cidade de São Paulo, em 2015. Ela ainda assumiu a direção de uma viatura da PM que bateu no muro de um prédio, foi perseguida, agredida e baleada no braço por policiais. A vítima morreu por traumatismo craniano devido aos ferimentos.

Wilson de Jesus Marcolino, os irmãos Van Basten Bizarrias de Deus, Iago Bizarrias de Deus e os primos Bruno Rodrigues de Oliveira e Jefferson Rodrigues Paulo foram acusados pelo Ministério Público por homicídio triplamente qualificado (por motivo fútil, por recurso que dificultou a defesa da vítima e emprego de meio cruel) que entendeu que os socos, chutes e pauladas mataram a jovem.

Os jurados acolheram a tese da defesa dos cinco jovens, feita pela Defensoria Pública, ao absolver Bruno e Jefferson e descaracterizar o crime de homicídio por lesão corporal para Van Basten, Iago e Wilson. A defesa sustentou que o trio agrediu Laura, mas os ferimentos não foram responsáveis pela morte dela, já que após as agressões ela ainda percorreu alguns metros da Avenida Nordestina até ser abordada pelos PMs Ailton de Jesus e Diego Clemente Mendes.

Na ocasião, Laura entrou na viatura da dupla, acelerou e bateu num muro de um prédio. Depois, imagens mostram os policiais indo atrás dela, dando chutes. A filmagem não alcança o final da perseguição e a jovem aparece morta depois. Ela foi socorrida pelos próprios pais, já que os PMs não prestaram socorro. Os policiais não foram acusados por homicídio pelo MP e, por isso, não foram processados.

Com a desclassificação do homicídio para lesão corporal, o juiz Roberto Zanichelli Cintra, da 1ª Vara do Júri do Fórum Criminal da Barra Funda, ficou responsável pela análise de pena e entendeu se tratar de lesão corporal de natureza leve. Como esse crime tem como pena um ano de detenção e prescreve em quatro anos, Van Basten, Iago e Wilson não vão cumprir pena pois o crime prescreveu.

A mãe de Laura, Zilda Laurentino, não ficou na sala do plenário para acompanhar o veredito e ficou indignada com o resultado. “Foi uma baita palhaçada. Quem perdeu a filha fui eu e olha o que acontece. Muita baixaria, muita mentira e eu vou recorrer”, declarou. “Eu quero justiça. Não vou ter minha filha de volta, mas eu quero justiça. A minha filha eu não tenho mais, mas eles podem fazer com outras. Lá dentro, eu me senti como se fosse a ré, como se minha filha fosse a ré”.

O advogado José Beraldo, que representa a família de Laura e atuou como assistente de acusação, disse que conversou com o promotor e ambos vão recorrer da sentença. Ele argumentou que o júri “agiu com parcialidade” porque se manifestou incomodado com as conversas paralelas que a acusação fazia durante os depoimentos. “Eles disseram que enquanto estávamos conversando entre nós, em bom tom e de forma discreta, atrapalhava e isso gerou uma animosidade e a defesa também contribuiu nesse sentido”, disse.

Já a defensora pública Juliana Belloque considerou que o resultado foi justo. “Os jurados compreenderam hoje que houve naquela noite uma grave violência policial e uma omissão policial contra a Laura, inclusive mediante demonstração de vídeos que não estavam sendo anunciados com a força que deveriam ter sido”, declarou.

Apesar de haver um esforço por parte do juiz que comandava a sessão, da acusação e da defesa em tratar Laura pelo nome social e por pronomes femininos, as próprias partes, vez ou outra, trocavam a referência pelo masculino e citavam o nome de registro da vítima. Expressões de cunho transfóbico também permearam os dois dias de julgamento, que começou nesta quinta-feira (11/5). Zilda afirmou que vai entrar com representação contra o promotor João Calsavara e contra o juiz por terem se referido à Laura algumas vezes pelo nome de registro. “Tudo ali foi transfóbico”, declarou em relação ao julgamento.

Wilson, os irmãos Van Basten e Iago e os primos Bruno e Jefferson sustentaram que agrediram Laura para se defender dela. No dia crime, estavam comemorando o aniversário de Bruno na casa de Iago, na Avenida Nordestina, e disseram que Van Basten e Wilson saíram para o portão para conversar enquanto o restante estava dentro jogando videogame.

Segundo Van Basten, Laura teria lhe dado uma pedrada na cabeça e arranhado suas costas “do nada”. Ele e os demais divergiram se houve alguma discussão antes da suposta pedrada. A briga, segundo ele, foi se estendendo até a padaria da avenida, onde Laura tentou entrar, mas acabou expulsa. Van Basten afirma que foi atrás dela para questionar por que o agrediu. Ali, diz ele, a jovem teria dito que era “mais homem do que ele” e as agressões continuaram.

Iago e Wilson teriam ido atrás correndo, e Bruno e Jefferson os seguiram andando, para, de acordo com eles, apartar a briga, mas também admitiram que deram empurrões na jovem. Videos da farmácia e da padaria registraram parte da briga, com discussões de Laura com Van Basten, Iago e Wilson, troca de socos e chutes que os homens deram nela. Bruno e Jefferson chegam depois e, nas filmagens, não aparecem agredindo. A confusão se estende até próximo de um córrego em que as câmeras de segurança não alcançam.

Um veículo teria parado próximo dali, dizem os réus, para questionar o que ocorria e pedir para cessar as agressões. Iago afirma que Laura segurou sua perna neste momento e os dois caíram.

Van Basten pegou um pedaço de madeira e agrediu a vítima pelas costas. “Não foi uma paulada na cabeça, eu bati nas costas dela de cima para baixo para ela soltar meu irmão. Só dei um golpe”, disse. “Não tenho como sentir a dor da família, mas eu não matei ninguém”. Os cinco voltam depois.

Iago também disse que se arrependeu de ter participado das agressões. “Não tenho preconceito nenhum, tem gente na minha família que é homossexual”, declarou.

Os defensores públicos Rafael Gomes Bedin e Juliana Belloque argumentaram que os acusados não foram responsáveis pelo homicídio. “O Bruno e o Jefferson não fizeram nada, como é possível ver nas imagens. O Van Basten, o Iago e o Wilson agrediram e não agiram em legítima defesa”, ponderou Bedin.

“As agressões que a Laura sofreu durante a briga não são compatíveis de como ela estava depois da abordagem da PM”, complementou Belloque. “Ela não teria sobrevivido tanto tempo para conseguir percorrer uma distância tão grande”, afirmou.

Os defensores sustentaram que a Polícia Civil e o Ministério Público foram negligentes em não acusar os policiais pela morte de Laura, tendo em vista as acusações de fraude processual contra os PMs, que acabaram expulsos da corporação, e de os réus terem mantido suas versões desde o início e admitido as agressões. “Não houve predisposição institucional para investigar a polícia”, criticou Belloque. “Não é à toa que colocam sempre os mesmos na cadeia: os pardos, os negros, os pobres, para limpar a sujeira do Estado”, disse em referência a cor de pele dos acusados.

Além disso, houve momentos de discussão acalorada tanto entre os representantes da acusação — Ministério Público e advogados contratados pela família que eram assistentes — e testemunhas, os réus e a Defensoria Pública, que defendia os acusados.

No segundo e último dia de julgamento, momento em que acusação e defesa sustentaram oralmente aos jurados os motivos para condenar ou absolver os réus, o promotor João Carlos Calsavara argumentou que os acusados agrediram Laura porque seriam “enrustidos”. “Isso não é um crime comum, é um crime de ódio por problemas não resolvidos, por uma erotização não resolvida, por isso eles procuram uma travesti porque a travesti é uma mulher com pênis”, declarou. “Se a Laura tinha um pinto maior, o que importa? Isso é fetiche. Essa história de [ela teria dito] ‘eu sou mais homem do que você’ o que significa? Isso justifica?”, prosseguiu.

Calsavara também confundiu drag queen (performance artística ou personagem que pode ser interpretada por qualquer pessoa independentemente do gênero) com pessoa trans (que não se identifica com o gênero de nascimento) ao dizer que ninguém agrediria a cantora e drag queen Pabllo Vittar porque “travestis famosos têm beneficiências”, diferentemente das travestis periféricas.

Ele apontou que não teria como Laura ter revidado as agressões com a mesma proporção dos acusados porque “era uma contra cinco brutamontes” e ela “tinha corpo de adolescente, era franzina”.

No primeiro dia de julgamento, foram ouvidos os cinco acusados e quatro testemunhas.

A delegada Ivna Shelble, que estava no plantão no dia e investigou a participação dos PMs no caso, mas não coordenou o inquérito sobre o homicídio, foi ouvida como testemunha indicada pela defesa.

Apesar de ela ter apurado que os PMs mentiram, forjaram uma testemunha e não relataram as agressões contra Laura, ela entendeu que os policiais inicialmente não foram responsáveis pela morte da jovem trans e o caso precisava ser melhor investigado, inclusive com a participação dos PMs já que, até então, ela não tinha conhecimento de que a vítima tinha sido agredida pelos réus antes da abordagem policial.

“O que a gente viu foram dois policiais que tentaram conter uma pessoa agressiva e não conseguiram. O tiro no braço não foi em uma região letal e, pelo vídeo [em que ela aparece ferida], ela parecia bem alterada”, declarou Ivna. “Na situação com os policiais, ela tinha bastante vigor em afastar os policiais, chutar e correr”, declarou.

O caso do homicidio foi encaminhado ao delegado titular Michel Augusto Torricelli, que indiciou os cinco réus pelo homicídio e descartou a participação dos PMs. Ele foi convocado para depor como testemunha da acusação no julgamento, mas o promotor o dispensou e ele não foi ouvido.

A delegada também apontou o depoimento de uma travesti, de nome social Amanda que disse que era amiga de Laura, que denunciou ter sido agredida com canivete por Laura após uma discussão por conta de carona e teria sido o primeiro evento antes das agressões dos réus. “Ela disse que a Laura tinha usado drogas e agrediu a Amanda porque o cliente dela não quis dar uma carona por ser fora do caminho”, declarou. A família disse que não conhece essa jovem nem que ela teria amizade com Laura.

O exame toxicológico de Laura deu negativo para uso de entorpecentes, e a Defensoria Pública também mencionou o episódio na sustentação oral. “Para a gente não importa se ela usou ou não usou droga, se ela fez ou não programa, a gente não quer fazer juízo de valor, mas que houve um padrão de comportamento naquele dia porque a gente não sabe porquê ela agrediu a Amanda”, disse Belloque.

O promotor João Casalvara contestou as habilidades de investigação da delegada e disse que ela estava fazendo “ilações” contra a vítima. “O que a senhora tem contra travesti? Só porque ela era travesti isso quer dizer que ela usava droga?”, rebateu. “Como uma mulher franzina tinha força para bater nos policiais se ali eram dois contra um?”, prosseguiu.

A delegada reclamou do tom do promotor, que foi mais agressivo em relação às testemunhas homens. “Em mais de 10 anos de profissão, nunca tratei uma travesti, uma mulher ou qualquer pessoa com preconceito”, disse. Também declarou que Laura “era biologicamente um homem, tem testosterona e tinha força para reagir”.

O investigador Julio Cesar Daniel, que atuou com a delegada, também acabou fazendo questão de se referir à vítima pelo nome de registro quando o juiz perguntou se ele tinha conhecimento do caso Laura Vermont, que era transexual. “Laura? Ah, o [nome de registro que omitimos por respeito à identidade da vítima]”.

Um frentista de posto de gasolina que gravou Laura ensanguentada andando cambaleante na avenida não conseguiu dizer o motivo de ter feito a filmagem e não tê-la ajudado. “Era uma muvuca, eu vi ela e não a reconheci”, disse. “Quando eu cheguei no serviço, os funcionários disseram de quem se tratava e eu fui na casa da família avisar.”

Jackson Araújo, pai de Laura e que também foi ouvido como testemunha, disse que o frentista ligou e ele foi correndo atrás da filha quando ela já havia sido agredida pelos PMs. “Os policiais não disseram o que tinha acontecido, só me ajudaram a colocar ela no carro para eu levar para o hospital”, lembrou.

Em diversos momentos, ele e Zilda deixavam a sala onde acontecia o júri porque não se sentiam bem.

Relembre o caso

O assassinato de Laura vai completar oito anos em 20 de junho e, até o julgamento desta sexta-feira (12/5), já foi adiado duas vezes. Primeiro pela ausência de testemunhas, em maio de 2019. Depois, por causa da pandemia, em março do ano passado. Os acusados chegaram a ser presos na época, mas foram soltos pouco menos de um mês depois e desde então respondem em liberdade.

Já os policiais militares foram demitidos da corporação em dezembro de 2016, conforme publicação no Diário Oficial do Estado. Eles ficaram presos por quatro dias e a Polícia Civil e o Ministério Público entenderam que os dois não participaram do homicídio e o inquérito foi arquivado.

Na época, Ponte revelou imagens de câmeras de segurança de estabelecimentos comerciais que mostram Laura sendo perseguida e agredida pelos cinco homens quando passava pela avenida Nordestina, Vila Nova Curuçá, zona leste de São Paulo. Na versão da polícia, ela se desentendeu com o grupo ao passar por ele.

A PM foi chamada para atender a ocorrência. Os policiais Ailton de Jesus e Diego Clemente Mendes alegaram que Laura estava extremamente agitada e, sem que os dois militares percebessem, a jovem teria assumido o volante do carro da PM e partiu em alta velocidade, vindo a perder o controle e bater contra o muro de um condomínio poucos metros depois. A família afirma, porém, que Laura não sabia dirigir.

Diego disse que ainda teria se ferido ao tentar pará-la e, quando ela desceu do veículo, Laura continuou a correr pela avenida Nordestina, e disse que ela foi atingida na cabeça por um ônibus, que não parou. Não existem imagens de câmeras de segurança que mostrem algo do tipo.

Os PMs não mencionaram o disparo que foi feito contra ela na delegacia, nem que a agrediram. Contaram que haviam a socorrido ao hospital, mas a família afirma que os próprios pais a levaram para ter atendimento médico. Laura, porém, chegou sem vida ao hospital. Os policiais também forjaram uma testemunha.

Desde então, familiares lutam por justiça. “É pelo o que eu vivo todos os dias”, desabafou Zilda Laurentino, mãe de Laura, em entrevista à Ponte em maio do ano passado, quando contou estar à base de remédios e ter tentado fazer acompanhamento psicológico. “Eu vou levar a perda da minha filha por toda a minha vida, se não fosse o trabalho no pet shop, já teria enlouquecido, mas não vou desistir.”

Em 2022, o governo paulista foi condenado a dobrar o valor da indenização aos familiares de Laura, quando a 6ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça acatou o recurso impetrado pela Defensoria Pública, que representa os parentes, para que seja pago o valor de R$ 100 mil em danos morais.

A relatora e desembargadora Maria Olívia Alves entendeu a conduta dos policiais militares no atendimento de Laura agravou o sofrimento dos parentes e foram negligentes ao permitirem que a vítima entrasse na viatura.

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Na primeira instância, quando o Estado foi condenado pela primeira vez, o juiz Kenichi Koyama atendeu parcialmente o pedido ao determinar o pagamento de R$ 50 mil. Ele reconheceu que os PMs Ailton de Jesus e Diego Clemente Mendes, que então atuavam no 39º Batalhão, omitiram socorro, foram negligentes na abordagem e cometeram fraude processual ao mentirem em depoimento, mas que não seriam os responsáveis diretos pela morte da jovem, já que o laudo médico identificou que ela morreu por traumatismo craniano e não por disparo de arma feito por Ailton, que a atingiu no braço.

Em 2016, a Prefeitura de São Paulo inaugurou o primeiro Centro de Cidadania LGBT+ batizado com o nome de Laura Vermont, na Avenida Nordestina, na zona leste da cidade.

Á Ponte, após o julgamento, Zilda disse que assim que receber os valores vai abrir uma ONG voltada ao acolhimento de pessoas trans. “Vai ter o nome de Laura Vermont”, disse.

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