Após oito meses, Justiça manda soltar motorista preso por crime ocorrido enquanto trabalhava

Julio Cesar Damasceno foi detido em 28 de julho de 2021 após um reconhecimento irregular e um flagrante forjado; “foi um trauma pra mim e ainda vai ser difícil acreditar na polícia”

Julio Cesar Damasceno de Souza trabalha como motorista de aplicativo e foi preso em julho de 2021. | Foto: arquivo pessoal

Depois de oito meses, entre buscas por provas e adiamentos de audiência, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) concedeu liberdade ao motorista de aplicativo Julio Cesar Damasceno de Souza, 30. Em 28 de julho do ano passado, ele e outros dois rapazes foram presos “em flagrante” por policiais civis no Jardim Arpoador, zona oeste da capital paulista, acusados de tráfico de drogas e do envolvimento de um roubo ocorrido oito dias antes na região contra uma escrivã da Polícia Civil.

Durante a audiência sobre o roubo, realizada no dia 29 de março de forma semipresencial, a juíza Erika Soares de Azevedo Mascarenhas, da 6ª Vara Criminal, acolheu a manifestação do Ministério Público e reconheceu a falta de provas para sustentar a manutenção da prisão preventiva de Julio e do atendente Daniel Semionato Ribeiro, 26. O motorista saiu do Centro de Detenção Provisória (CDP) IV de Pinheiros na tarde de quarta-feira (30/3), foi recebido pela família celebrando a decisão.

“No primeiro instante, foi um choque, mas acreditei muito na justiça, na polícia, pelo fato de eu nunca ter feito nada e de que tudo ia se resolver. E depois, quando acabei sendo reconhecido pela vítima por um crime que não cometi, aí caiu a ficha que eu estava sendo injustamente preso”, relata. A reportagem da Ponte que revelou o caso em janeiro mostrou um vídeo do momento em que o motorista foi detido junto com Daniel em frente a uma adega no Jardim Arpoador e contou que, no dia do roubo, ele estava a caminho de Cotia, na Grande São Paulo, para buscar uma passageira.

No dia 17 de março, a dupla já havia sido absolvida da acusação de tráfico de drogas. Na decisão, a juíza Margot Chrysostomo Corrêa, da 6ª Vara Criminal, elencou as contradições nos depoimentos dos dois policiais civis que participaram da ação, Denis Kapitanovas e Manoel Francisco dos Santos Junior, e mencionou o descumprimento da ordem judicial para que se apresentasse a fotografia dos acusados. “Ambos, sem qualquer consciência da importância de seus relatos e da gravidade dos fatos imputados aos réus, depuseram de forma descuidada, de dentro da viatura, sem interesse algum em prestar esclarecimentos necessários ao juízo”, criticou.

Além disso, a magistrada argumentou que diante das imagens das câmeras de segurança da adega nenhuma apreensão de drogas foi feita e que não houve fuga dos acusados. “Portanto, não há credibilidade alguma no relato dos policiais cujas falas foram totalmente descredenciadas pelas filmagens, pelo desligamento de uma das câmeras por um deles e por tantas contradições captadas no decorrer da produção da prova oral, sem falar na postura de ambos, bastante incompatível com o cargo que ocupam”. Por fim, a juíza determinou que a conduta dos policiais seja apurada pela Corregedoria da Polícia Civil do estado.

Para Julio, sua liberdade é resultado da luta por justiça que sua família empreendeu nos últimos oito meses. “Eu estava em uma situação difícil, sabendo de pessoas que cometeram crimes contra policiais e ver que realmente eles ficavam muito tempo [presos], eu já comecei a me colocar nessa situação, que a palavra dela [da vítima] teria mais força que a minha. A partir disso eu vi que não ia ser fácil, que eu precisava de muita paciência e controle emocional para passar por isso”, conta.

Na saída do CDP de Pinheiros, Julio reencontrou com seus filhos de 4 e 6 anos. | Foto: Arquivo pessoal

Ana Caroline Alencar de Lima e Silva, esposa de Julio, diz que essa espera gerou expectativa e frustração por conta do adiamento da audiência sobre o tráfico de drogas, que aconteceria em janeiro. “Pra gente, ver ele sair foi emocionante demais porque saber que passar do portão é tipo ‘vou viver a minha vida novamente’ e as crianças receberam ele, se abraçaram, choraram bastante, foi só felicidade. Então só tenho mesmo a agradecer a Deus, a todo mundo que teve do nosso lado, que ajudou”, ressalta.

Alvo de reconhecimento irregular e flagrante forjado

“Eu lembro como se fosse hoje os dois dias que estava sendo acusado. Sempre fui ruim de memória, mas devido a precisar tanto a lembrar desses dois dias para a audiência, acabou que gravei todos os passos”, relata Julio. No dia em que foi abordado, o motorista estava na adega aguardando a esposa para buscar a filha mais nova do casal na creche quando foi surpreendido por policiais civis.

Segundo a versão policial, as diligências foram feitas após uma denúncia anônima que indicou que as mesmas pessoas envolvidas no roubo ocorrido no dia 20 de julho estavam na adega traficando drogas. Mesmo sem nenhum entorpecente ter sido encontrado no local, Julio, Daniel e outros dois rapazes foram detidos “em flagrante” e submetidos a um reconhecimento pessoal com a vítima do roubo que não cumpriu os procedimentos previstos no Código de Processo Penal.

“Foi um trauma pra mim e ainda vai ser difícil acreditar na polícia. E não é à toa que nesses dias que estou na rua, não tive coragem de ir em um bar, em uma adega com medo da polícia encostar e me levar”, afirma. O motorista retornou aos trabalhos e agora aguarda a sentença do processo do roubo.

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Ele diz que pretende entrar com um processo de indenização contra o Estado e lamenta como outros jovens pelo Brasil também passam pela mesma situação de injustiça. “Da minha parte mesmo, eu quero ajudar a conscientizar. Quando falo com os meus amigos referente ao que aconteceu, eu tento explicar da melhor forma pra que eles não cometam os mesmos equívocos. Pois eu não estava no lugar errado e nem na hora errada, como muitas pessoas falam. Eu estava em um lugar e fui preso pela companhia que estava. É uma coisa muito injusta, mas é uma realidade”, aponta.

O que diz a polícia

A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública (SSP), do governo Rodrigo Garcia (PSDB), em relação à conduta dos policiais civis envolvidos na abordagem de Julio e Daniel e a falta de provas que justificassem a prisão do motorista. A pasta encaminhou a seguinte nota:

“A corregedoria da polícia civil apura todas as circunstâncias relativas ao caso assim como a conduta dos agentes por meio de inquérito.”

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