Após prisão ilegal de jovem negro pela Rota, polícia e Ouvidoria fingem que nada aconteceu

    Após detenção ilegal, Erik Santos Souza foi ouvido como testemunha na delegacia; especialista aponta que policiais cometeram crimes de constrangimento ilegal, abuso de autoridade, cárcere privado e crime contra a honra da mulher

    Momento em que Erik (de vermelho) é abordado em frente ao comércio da família, antes de ser detido | Foto: Reprodução

    Seis dias após a Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) deter ilegalmente o faxineiro Erik Santos Souza, 23 anos, dentro do mini mercado de sua família, na Vila Norma, zona leste da cidade de SP, a Secretaria da Segurança Pública e a Polícia Militar ainda não apuraram nem se posicionaram sobre a ação.

    Erik foi levado sem motivo pelos policiais da Rota, que ficaram com ele por 3h rodando dentro da viatura, algemado e no camburão, até ser levado para o 63º DP (Vila Jacuí), onde foi ouvido como testemunha. “Vocês não tiraram o meu sobrinho do comércio como testemunha, tiraram ele como um bandido, algemado e no camburão”, questionou Alice dos Santos Jesus, 55 anos, tia do jovem e proprietária do comércio, na delegacia.

    Passado o desespero de ficar procurando o sobrinho de delegacia em delegacia, Alice detalha à Ponte como foi a ação de 10 de setembro. Nas filmagens da câmera de segurança do comércio, fornecidas à reportagem pela tia, é possível ver o momento em que Erik está parado, de camiseta vermelha, e é chamado pelos policiais para ser revistados. Ele é revistado ao lado de um pedestre.

    No momento da abordagem, Alice foi avisada que o sobrinho estava sendo revistado pelos policiais e foi verificar a motivação. “Eu saí para ver, falei que ele era meu sobrinho e voltei para o comércio”, lembra.

    Pouco depois, foi chamada novamente lá fora. “Me perguntaram se ele era meu sobrinho e eu falei que sim. Foi quando eles me falaram ‘você sabe que posso levar ele como traficante?’, eu questionei se haviam pegado alguma coisa com ele, se o Erik estava com alguma coisa e ele disse que não”.

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    Apesar dos questionamentos da comerciante, sobre as motivações para deter Erik, a discussão continuou. “Aí um dos policiais falou ‘some com esse lixo daqui’, se referindo ao Erik. Mandei o Erik entrar e ficamos conversando lá fora”.

    Nesse momento, lembra a tia, os policiais ofenderam a família com a frase “seus vagabundos, lixos”. “Foi quando minha irmã respondeu que ali não tinha nenhum vagabundo, que era tudo trabalhador, ‘lixo são vocês’. Ai os policiais foram atrás dela, falando que iam prendê-la. Ela falou que não iria e foi nessa que levaram os meninos”.

    A única preocupação da tia, a partir daí, foi de impedir que o sobrinho fosse preso injustamente. “Eles ficaram falando para os meninos ‘vou jogar é 1 kg neles’. A gente vê muita injustiça, muitas pessoas na cadeia inocentes. O Erik não ficou preso porque eu tinha as filmagens daqui. Eles não fizeram nada porque sabiam disso”.

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    Do comércio, a tia ficou indo de delegacia em delegacia atrás do sobrinho. A primeira parada foi no 63º DP, onde ouviu de um funcionário, ao questionar se a Rota havia passado ali com dois jovens, que “devem ter levado para matar”. De lá, ela foi para o 22º DP (Vila Americana), mas, assim que chegou, ouviu que os policiais haviam estado ali, mas que saíram a caminho do 63º DP.

    “Peguei a filmagem e mostrei para eles verem. Quando eu mostrei, falaram ‘vish’. Então fui para o 63º, mas lá disseram que o caso seria registrado no 22º DP. Quando foram de novo para o 22, eu creio que não quiseram atender porque eu já tinha mostrado as filmagens, então foram para o 63º, que acabou pegando o caso. Ficaram rodando de delegacia em delegacia com os meninos”, denuncia.

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    Erik foi liberado por volta das 23h50 do dia 10/9, mas o outro jovem ficou detido, sendo liberado somente na audiência de custódia no dia seguinte. Já em casa, a tia perguntou ao sobrinho se ele havia sido agredido ou ameaçado pelos policiais. Erik afirmou que não.

    “Erik é tranquilo, a rotina dele é essa: ele trabalha no hospital, passa aqui por volta das 16h, quando chega do trabalho, toma um café, vai para casa tomar um banho e quando é umas 18h ele sobe para ficar aqui comigo, porque é perigoso ficarmos aqui sozinhas. Ele fica comigo até fechar”.

    A reportagem acionou a Ouvidoria assim que soube do caso no dia 10/9. O ouvidor Elizeu Soares Lopes ligou para o coronel Alencar, comandante geral, e para o coronel Gasparian, da Coordenadoria de Operações da PM questionando a ação. Mas, até esta quarta-feira, nenhuma ocorrência foi aberta. Segundo o assessor Ouvidoria Evandro Spinelli, “foi aberto um procedimento, mas sem nenhuma informação concreta. Não foi possível nem mesmo dar andamento. A Ouvidoria tem algumas travas burocráticas. Uma delas é que não tem B.O. [boletim de ocorrência], e sem B.O. só dá pra dar andamento com denúncia”.

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    A reportagem procurou a Secretaria da Segurança Pública e a Polícia Militar quatro vezes por e-mail. No primeiro e-mail, enviado às 17h58 do dia 10/9, cobrava um posicionamento sobre as motivações da Rota estar rodando com o jovem na viatura.

    Às 23h27 e às 23h30, a Ponte enviou mais dois e-mails cobrando informações sobre a prisão do jovem que estava com Erik e enviando o vídeo com a abordagem. No dia 15/9, cobramos pela quarta vez uma resposta da SSP e da PM sobre as investigações da ação dos policiais. Não obtivemos retorno até agora.

    Para Adilson Paes de Souza, tenente-coronel da reserva da PM paulista, doutor em psicologia da Universidade de São Paulo, a ausência de resposta da SSP e da PM configura em “cerceamento da atividade jornalística”, ferindo o artigo 139 da Constituição Federal Brasileira, que trata da liberdade de imprensa.

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    “Eles têm obrigação de informar a imprensa, para manter uma imprensa livre, que é um dos valores fundamentais da democracia e é assegurado na nossa Constituição [artigo 5]. Não cabe qualquer juízo de valor de não informar, dentro da publicidade ou da impessoalidade”, aponta.

    Assim que recebeu a denúncia, explica Adilson, o comando da Polícia Militar deveria ter aberto um Inquérito Policial Militar para apurar os seguintes crimes: constrangimento ilegal, abuso de autoridade, cárcere privado e crime contra a honra da mulher, todos do Código de Processo Penal Militar.

    “No primeiro contato feito, a Polícia Militar disse que ia apurar o caso, já tiveram tempo de sobra de incluir isso em alguma portaria. Foram vários crimes que tornam obrigatório a instauração de um IPM, que deveria ter sido instaurado há seis dias”, aponta.

    ATUALIZAÇÃO: Reportagem modificada às 18h42 do dia 16/9/2020 para incluir novo posicionamento da Ouvidoria

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