Apresentador chama estudante negro assassinado de ‘criminoso’ e familiares protestam em frente à emissora

    Cerca de 100 pessoas se reuniram em frente à RedeTV em Belém (PA), para denunciar a cobertura da morte de Vinicius Gonçalves feita pelo canal: “Não respeitaram a nossa dor”

    Familiares, amigos, artistas e representantes do candomblé se reuniram em frente a RedeTV para protestar contra o programa Alerta Pará | Foto: Marcelo Lelis

    “O sentimento é de revolta. A memória e a história dele estava sendo deturpada”. É dessa forma que Vitor Gonçalves, 27 anos, antropólogo, se sentiu quando se deparou com a cobertura da emissora televisiva RedeTV sobre o assassinato de seu irmão, Vinicius Gonçalves, 20 anos, ocorrido em Belém, capital do Pará no último domingo (20/03).

    O jovem estudava para prestar a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e sonhava em entrar no curso de Educação Física. Além disso, era atleta de Jiu-jitsu e treinava outros esportes. Praticante do candomblé, como sacerdote, tinha um papel de liderança na religião. Era conhecido como Taata Kimbelenkosi, do tradicional terreiro Mansu Nangetu. “O sacerdote equivale a um padre da igreja católica e ao pastor da igreja evangélica”, conta Vitor. 

    Vinícius Gonçalves era Sacerdote em um terreiro de candomblé | Foto: Arquivo Pessoal

    No dia em que foi morto por três tiros, por volta das 18h30, saía de uma festa em um terreiro acompanhado de um amigo. Então, segundo a família, foi surpreendido por um homem que saiu de um veículo na cor prata, que atirou em sua direção.

    “Antes ele do que um cidadão de bem”

    No dia seguinte ao assassinato, o programa Alerta Pará, da RedeTV Belém, divulgou uma reportagem na qual o repórter Marcelo Alencar cita o nome de Vinícius como o homem assassinado, mas utiliza a foto de um outro homem, não identificado. Na matéria, o repórter dá o endereço exato da residência de Vinícius e mostra uma poça de sangue na rua.

    Em seguida, o apresentador Valter Lobato inicia seu comentário no estúdio: “Homicídio sempre vai ter, só muda aquele que morre. Então, juventude, pensa bem, só existem dois fins, cadeia ou cemitério. Você que escolhe viver na criminalidade saiba, esse ditado já é antigo… crime não compensa”. 

    Valter Lobato então continua: “Você é jovem e ainda tem oportunidade de trabalhar, estudar, escolher uma coisa mais útil da vida.. nessas horas só a mãe que chora, só a família que chora.. pela família que perdeu aí um familiar, um filho, um neto, um sobrinho pro mundo da criminalidade, infelizmente. Mas olha, antes ele do que o trabalhador, do que um policial, do que um cidadão de bem em geral.”

    Na sequência, Valter chama outra matéria. “Acabamos de falar e já tem mais um caso aí de criminoso se dando mal”. 

    Como resposta ao tratamento acintoso dado pelo apresentador a Vinícius, a família, junto a amigos, artistas e representantes do candomblé se uniram na manhã deste domingo (27/03), em um ato por justiça e retratação da emissora pelo conteúdo do programa. A manifestação ocorreu em frente à RedeTV, na rua Mariz de Barros, em Belém. 

    “A ideia foi da família e dos amigos, nós nos mobilizamos nas redes sociais, tivemos apoio de muitos artistas que o Vinícius conhecia, ele era frequentador de muitas rodas de samba”, diz Ana Paula Claudino Gonçalves, 32 anos, doutoranda em Antropologia pela UFPA (Universidade Federal do Pará) e prima de Vinicius. 

    O ato, segundo ela, foi um manifesto contra o jornalismo feito por programas como o Alerta Pará. “Programas sensacionalistas que todos os dias tratam um jovem morto na periferia como criminoso. A minha tia é só uma das muitas mães que todos os dias não tem sua dor respeitada.”

    A ideia, segundo ela, é chamar a atenção não só sobre Vinícius, mas a todos os jovens que diariamente são mortos na periferia e que os culpados nunca são identificados: “Queremos justiça!”

    Preconceito religioso

    Durante a manifestação que encerrou por volta das 13h, um dos apresentadores da emissora tentou falar no evento, conta o publicitário Andrey Pedro de Sousa Rodrigues, 45 anos, amigo da família, que participou do ato. “O apresentador da RedeTV [Bruno Rodrigues] foi lá para uma fala. Mas ele pode falar no veículo a hora que quiser para se retratar, os familiares, os amigos tinham só aquele momento ali. Ele não quis esperar para ouvir-nos, foi embora sem nos dar a real e sincera atenção.”

    Ao fundo Bruno Rodrigues, apresentador da RedeTV escuta a fala do ativista Jorge André | Foto: Marcelo Lelis

    Em uma postagem nas redes sociais, a família questiona: “Se fosse um sacerdote de outro segmento religioso, como um pastor ou um padre, o repórter também iria taxá-lo de bandido?” 

    Hoje, Ana lembra do primo com carinho. “Me senti indignada e bastante triste por se referirem ao Vinícius dessa forma, o taxando de criminoso. Vinícius era um menino do bem, não tinha envolvimento nenhum no mundo do crime. Nossa família já estava muito abalada pela forma violenta que ele foi morto. E ainda ter que passar por isso, assistindo esse programa. Não respeitaram nossa dor, e ainda divulgaram nosso endereço na matéria. Estamos com medo, não dormimos direito.”

    Ela se lembra da última vez que viu o primo, na sexta-feira (18/03): “Ele era um menino alegre, sacerdote no terreiro terreiro Mansu Nangetu aqui no nosso bairro. Nós morávamos na mesma casa, ele é meu primo irmão. Ele faleceu domingo, mas sábado passou o dia no terreiro do qual fazia parte e domingo eu não estava em casa”.

    “O meu irmão era uma pessoa extremamente alegre”, conta Vitor. “Era de bem com a vida, não guardava mágoas, não era rancoroso com ninguém, sempre foi muito intenso e se posicionava, nossa família tem um histórico de atuação em movimento social. Além disso, ele teria uma entrevista de emprego nesta semana para atendente em uma academia.”

    A família, segundo ele, está tendo apoio de um advogado, que encaminhou à RedeTV uma notificação extrajudicial apontando o crime de difamação contra a honra e memória da pessoa morta e danos morais. Ainda de acordo com o antropólogo, foi feita uma retratação por parte da RedeTV. “A gente da família não se sente satisfeito, foi uma retratação totalmente debochada, esqueceram o nome do meu irmão no meio da retratação, tem um tom de chacota, então essa retratação não repara os danos e a gente também exige que o vídeo da matéria seja retirado do ar.”

    Especialistas comentam o caso

    Na visão de Rogério Christofoletti, professor de ética jornalística e membro do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o jornal foi irresponsável e covarde. “É ruim tecnicamente porque não apura todo o caso, não vai buscar todos os elementos, inclusive chega a trocar a imagem da pessoa. É irresponsável porque faz um pré-julgamento do Vinícius, é covarde, porque acusa quem está morto, então não pode se defender.”

    Eticamente é muito ruim, diz o professor. “É muito comprometedora da qualidade do jornalismo que o público da RedeTV no Pará merece e precisa sobre esse caso.”

    Coberturas apressadas, irresponsáveis ​​e covardes também ajudam a reforçar o preconceito e não só em religiões de matrizes africanas, mas em um conjunto de traços culturais que encontramos no Brasil, pondera Christofoletti. “Isso desinforma, ajuda a construir o preconceito, a marginalização de camadas da sociedade e não contribui para o conhecimento, para a instrução e educação das pessoas e nem para uma compreensão da realidade.”

    Diante disso tudo, coberturas como essa podem atrapalhar inclusive as investigações, analisa o professor. “Causando um clima de animosidade social, de cobrança das instituições.”

    Lambe com o rosto de Vinícius colado durante o ato em Belém | Foto: Marcelo Lelis

    Danilo Angrimani é professor, doutor em comunicação social pela Universidade de São Paulo (USP), com passagem pela Sorbonne, autor de vários livros, entre eles “Espreme que sai sangue – um estudo do sensacionalismo, tendo como objeto o jornal Notícias Populares”. Ele analisa a edição do programa televisivo negativamente: “O telejornal sensacionalista faz vítimas. A principal delas é o telespectador. O pobre telespectador que liga a TV para se informar e acaba inundado por um show mundano deplorável.”

    Angrimani notou a baixa qualidade jornalística até no tratamento da línga portuguesa. “[A matéria] ainda confunde ‘mas’ com ‘mais’, algo que a gente aprende ainda no ensino fundamental. O apresentador foi rápido no gatilho. Ele julgou e condenou a vítima, o rapaz assassinado. Não houve qualquer preocupação em mostrar provas, explicar melhor os fatos.”

    O apresentador age como um superego, na expressão freudiana, para agir como um pai severo, um educador rigoroso, é a interpretação do especialista em sensacionalismo. “Ele se transforma, assim, supostamente, no ‘protetor’ da ordem social, colocando as coisas nos eixos, ‘tranquilizando’ o público. Ele assume os papéis de ‘juiz’ e ‘carrasco executor’ simultaneamente. É um superego acessório punindo um id transgressor.”

    O professor pondera que falta um órgão mediador, fiscalizador, que entre em ação nesses casos e estabeleça uma punição exemplar para o apresentador e a emissora. “Imagine se fosse meu filho que tivesse sido assassinado e fosse tratado como um criminoso pelo programa? Qual seria a minha reação?  Evidentemente, eu faria o possível para buscar uma retratação indenizatória e direito de resposta do canal responsável pela programação.”

    O que diz a RedeTV e o apresentador

    Em retratação ao comentário e aos erros cometidos da reportagem, a RedeTV exibiu no programa da última sexta-feira (25/03), um pedido de desculpas de Valter. Ele e o apresentador Bruno Rodrigues iniciam a conversa dando risadas. 

    Valter assume que a foto e as informações estavam erradas: “As primeiras informações que nós tivemos é de que tinha sido uma execução e que um possível acerto de contas teria provocado essa execução.” 

    A foto da matéria “não era da vítima”, diz ele. “Eu estava pensando que era um criminoso, alguém ligado à criminalidade, já que a informação foi passada de forma equivocada, me excedi nos comentários. Fui pra cima, até porque, não é o caso, mas quando se trata de bandido, a gente não passa a mão”, disse Valter. 

    Em seguida, o apresentador Valter alega que ligou para a família de Vinicius para se desculpar, mas esquece o nome do estudante. “Eu mesmo liguei para um dos familiares do jovem, conversei com ele, uma conversa muito produtiva e prometi à família do jovem…qual era o nome do jovem?”, pergunta para a direção do programa por meio do ponto.

    Segundo ele, a família confirmou que ele não tinha antecedentes criminais, ao final ele se desculpou novamente. “Em nome da RedeTV comprometida com a verdade, eu peço desculpas a esse equívoco e a este comentário.”

    Em nota publicada no perfil do Instagram a RedeTV Belém afirmou que o comentário do apresentador foi “infeliz”. Segundo a nota, “houve um erro no comentário” e assim que souberam das postagens com relação a matéria, a emissora teria reagido imediatamente para a verificação dos fatos e erros cometidos.

    “O próprio jornalista e apresentador Valter Lobato, com muita hombridade e caráter, fez uma ligação via telefone para um familiar pedindo desculpas pelo erro e se comprometeu a se retratar publicamente e ao vivo no alerta para da edição de 25 de março”, diz um trecho da postagem. “Sabemos que qualquer profissional é passível de erro, quem nunca errou em uma informação? A RedeTV Belém através dessa nota pede mais uma vez desculpas à família do jovem Vinícius Gonçalves pelo acontecido e teremos mais cuidado nas apurações dos fatos”, conclui o post

    A Ponte questionou se a RedeTV compactua com os comentários do apresentador e com os erros da reportagem e por que a emissora se referiu a Vinicius como um rapaz que vive na criminalidade. Nenhuma das questões foi respondida até o momento. Além disso, o apresentador foi procurado mas não se manifestou até a publicação desta reportagem. 

    Ajude a Ponte!

    A reportagem indagou a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup), sobre em qual local e horário ocorreu o crime, por quantos tiros Vinícius foi atingido, se há algum indício da motivação do crime e quais medidas as polícias do Pará está tomando para reduzir a violência armada na capital, nenhuma das questões foi respondida. Além disso, a Ponte questionou, qual o delegado responsável pelas investigações e se haveria a possibilidade de ocorrer uma entrevista com ele. 

    A Polícia Civil informou apenas que o caso é investigado pela seccional do Guamá, e que “diligências estão sendo tomadas para identificar os envolvidos.” 

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas