Artigo | A burrice contra Roger Waters e o caminho da inclusão radical

    Eleito ou não, o violento, preconceituoso e admirador da tortura Bolsonaro sequestrou o debate público brasileiro. Falhamos? Onde falhamos?

    Então o pessoal que “pode pagar” descobriu que Roger Waters não gosta de sujeitos violentos como Jair Bolsonaro¹. Descobriu que artistas são seres políticos. Ficaram bravos, literalmente jogaram dinheiro fora saindo do show antes do fim, ameaçaram registrar boletim de ocorrência contra o músico, incomodados com a verdade gritada num telão, a de que estão prestes a eleger um presidente neofascista. O ex-líder da banda inglesa Pink Floyd, que há mais de 40 anos confronta autoritarismos, foi uma surpresa incômoda para os que se movem no mundo baseados na ideia de que podem pagar. E só para eles.

    Comentei nas minhas redes pessoais que o autoritarismo 2.0 sabe espalhar mentiras e manipular a burrice, mas que é só isso que sabe. O episódio mostra que o conhecimento e as artes são nossos, eu disse no meu post, dos defensores da liberdade e da democracia, e que devem ser o nosso caminho para enfrentar o cenário sombrio e violento. Como resposta, recebi uma interessante provocação.

    “Temos de fazer uma autocrítica: onde os detentores do conhecimento e das artes falharam? Nós falhamos feio ao não conseguir espalhar o que sabemos, fracassamos ao não esclarecer. É simplista dizer que o outro lado é só burro ou ignorante.”

    É um incômodo que vejo se manifestar por toda parte. Eleito ou não, o violento, preconceituoso e admirador da tortura Bolsonaro sequestrou o debate público brasileiro, com larga aprovação à sua visão tacanha de mundo. Falhamos? Onde falhamos?

    Vou tentar ir longe, mas do jeito mais simples e esquemático possível. Começo pela pergunta, que contém em si parte do que acredito ser a resposta: detentores do conhecimento. Dito de outra forma, exclusão.

    Como chegamos a este ponto?

    Os últimos 30 anos foram decisivos na transmutação do capitalismo industrial em capitalismo financeiro-especulativo. O preceito fundamental do capitalismo, o lucro, depende de aceleração do giro da produção, o que intensificou a exploração dos recursos da Terra até o limite da percepção de que o valor da mercadoria, nesse ciclo, tende à baixa (porque dialeticamente, aumenta-se a produção para aumentar o lucro mas, quanto mais se produz, menor é o preço da mercadoria). É um problema para o lucro. Por isso, o valor se descola da mercadoria e passa aos papéis – as ações.

    O dinheiro se torna independente de seu lastro, ou seja, dos recursos da Terra. Consolida-se o capitalismo financeiro-especulativo. Os agentes do capital financeiro-especulativo são os bancos e as corporações transnacionais que se tornam mais poderosas que governos na decisão dos rumos dos países (esta não é uma defesa absoluta do estatismo, porque o Estado-nação não é uma vítima cooptada, ele é a base jurídica e metodológica do capitalismo).

    Assim, governos “progressistas”, entre aspas mesmo, jogaram o jogo das corporações transnacionais, o jogo dos bancos: promoveram o aumento da base de consumidores (de produtos e ideias), a chamada “inclusão pelo consumo”, também entre aspas.

    Aliada a isso esteve a promessa, parte por necessidade eleitoral, parte por convicção, de retorno aos velhos tempos, a um formato de trabalho e de vida que também já não existe mais, mas que não foi nem acessado, em nenhum momento, pelos excluídos de sempre. É irrealizável, um caldeirão de expectativas frustradas pronto para explodir. E, o que considero mais grave, tudo isso imerso na velha ideia de que o bolo primeiro precisa crescer para depois ser distribuído.

    Só que a renda ou a terra (aqui no sentido de chão, solo, lugar da vida) nunca serão distribuídas. Fazer isso de verdade seria atingir seriamente o funcionamento do capitalismo, sistema no qual poucos são proprietários das ferramentas da existência, e todos os outros pagam para existir.

    E então posso voltar à exclusão, que acho que agora dá para entender que não é a exclusão do capitalismo, mas a exclusão dos processos de produção e reprodução da vida. Os processos intelectuais e os práticos. As ideias de “espalhar o que sabemos”, “fracassar ao não esclarecer”, postas na provocação do começo desse texto, são ideias que só fazem sentido na chave do crescer o bolo e depois distribuir.

    Uma saída

    Minha percepção é de que a saída está na inclusão radical² de todos os excluídos disso que estou chamando de processos de produção e reprodução da vida. Considero que a inclusão radical está diretamente atrelada ao conhecimento, às artes e à educação popular.

    A educação popular a que me refiro é a autoconstruída e autogerida, não a das organizações que chegam em um território para supostamente levar a iluminação. Não se trata de uma alucinação futura; já está acontecendo. Ofereço aqui dois exemplos.

    A Aparelha Luzia, no centro de São Paulo, na Barra Funda, é um espaço de arte, educação e política negras. Autodefine-se como quilombo urbano. Virou ponto de encontro de intelectuais negros que vivem em São Paulo ou passam pela cidade, caso do neurocientista da Universidade Columbia Carl Hart.

    Aparelha Luzia abriga e cria ideias e práticas de educação construídas coletivamente. Recebe e acolhe gente de toda a Grande São Paulo, gente que vem de outros estados e países, turistas, imigrantes, refugiados. Mas acolhe mesmo, a ponto de colocar as melhores atividades e os shows mais concorridos em horários em que seja possível as pessoas voltarem para casa de transporte público. Que espaço de vivências pensa nessa questão tão elementar?

    São dois anos e meio de funcionamento apenas, e da Aparelha Luzia nasceu uma candidatura viável ao legislativo paulista. A fundadora, a educadora e artista Erica Malunguinho, acaba de ser eleita a primeira deputada estadual transgênera de São Paulo. Erica é um exemplo notável de intelectual que usa o conhecimento formal para a construção de um processo democrático de educação popular em mão dupla, que também força a abertura dos espaços da educação formal aos saberes populares.

    Outro exemplo potente está em Campinas. A Casa de Cultura Fazenda Roseira é um espaço agregador de movimentos sociais e culturais organizados em rede, um espaço que foi ocupado por estes grupos quando a fazenda histórica do século 19, abandonada, estava em processo de ser loteada para a construção de empreendimentos imobiliários.

    A Roseira recebe projetos de educação, culturas tradicionais, agroecologia, meio ambiente, religiões de matriz africana. Gestora cultural do espaço, a historiadora e doutora em Urbanismo Alessandra Ribeiro construiu sua trajetória intelectual junto com o grupo de jongo do qual é criadora, a Associação do Jongo Dito Ribeiro, que administra a Casa desde 2008. O contexto deu origem a um curso de pós-graduação: o lato sensu em matriz africana, com uma grade que mescla teoria e método da ciência formal e saberes tradicionais, sob coordenação de Alessandra, referência nacional em matriz africana, território e memória.

    Longo percurso

    Voltando à burrice, para terminar: ela não se confunde com a ignorância por desespero e falta de opção. É, antes, a postura dos que se beneficiam conscientemente da exclusão e lançam mão da violência para mantê-la. Caso daquela parcela do público de Roger Waters que comprou ingressos para algo que o artista nunca ofereceu em sua carreira: a performance de um bichinho adestrado num picadeiro bonito. Esse público, ao descobrir que algumas subjetividades não estão à venda por um punhado de moedas, reagiu com a violência de quem supõe que pagar bem é garantia de nunca ser contrariado.

    No curto prazo, a burrice está ganhando. Será preciso construir outros caminhos, apesar dessa eleição tenebrosa, e fazer isso no contexto de um cotidiano que tem tudo para se tornar muito mais violento. Construir conjuntamente, não “espalhar o que sabemos”. Como Erica, em São Paulo, e Alessandra, em Campinas, diariamente fazem junto das comunidades que as alimentam. É longo o percurso, sim, mas os movimentos de ressignificação da vida e da política é que são a verdadeira onda. A tal onda conservadora, violenta e excludente, é reação.

    1. Em show em São Paulo, Roger Waters é aplaudido e vaiado após citar Bolsonaro

    2. O senso comum usa a palavra radical no sentido de intransigente, repelidora do diálogo. Não é o caso aqui: ela refere-se à postura filosófica que busca compreender e criticar a raiz dos processos da sociedade; foi usada neste sentido na ideia de inclusão radical. Vale destacar que no contexto teórico e metodológico da crítica radical, o par inclusão/exclusão não faz sentido porque pressupõe que o Estado (e o capitalismo) poderia abrigar, de alguma forma, uma realização da totalidade do humano (inclusão), o que não é possível porque as relações no capitalismo são sempre mediadas pela mercadoria, como fato ou ideia, e não pela necessidade de reprodução da vida humana. Para uma referência sobre a crítica radical, ver Lefebvre, H. Metafilosofia. págs. 78-79.

    *Mônica Nobrega é jornalista e geógrafa

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