Artigo | A candidata negra do PT à Prefeitura de Salvador e a continuidade de uma disputa de narrativa

    Na atual conjuntura baiana, a cultura militarista ganha força sob o protagonismo da militância petista que apoia ou silencia

    Major Denice Santiago, candidata à Prefeitura pelo PT, ao lado do governador Rui Costa, colega de partido | Foto: Reprodução/GOV-BA

    Na tarde da última sexta-feira (26/6), um evento na internet que diz muito sobre o atual contexto político da Bahia passou com pouco destaque pelas principais redes sociais. Era a coletiva virtual de imprensa do Partido dos Trabalhadores (PT) para apresentar a plataforma de campanha à prefeitura de Salvador, representada pela pré-candidata da Polícia Militar, Major Denice Santiago.

    A live, mediada pelo jornalista Yuri Silva, e com a presença de mais seis jornalistas de veículos como Bahia.ba, A Tarde, Radar Bahia, Metro1 e Política Livre, seguiu na metodologia de sabatina e tinha como assunto principal o recente lançamento de uma plataforma virtual de campanha do partido. A plataforma, ainda em processo de consulta, registrou-se como o primeiro movimento público e oficial da oposição na disputa eleitoral à prefeitura de Salvador, a Roma Negra, cuja população formada em 82,1% de pessoas negras (PNAD 2017), nunca teve em seu executivo um representante político democraticamente eleito, que fosse negro, ou negra, como a cidade.

    Pois então. Eis que o PT lança sua candidata ao desafio e teste de alçar o espaço de “primeira negra” – esta condição que, entre outros adjetivos, é tão desconfortável e profundamente conhecida por tanta(os) de nós, que por exemplo, viramos as primeiras da família a alcançar o diploma universitário, a carteira assinada, o emprego público, ou os intermináveis espaços que o racismo patriarcal nos alijou. Patrícia Hill Collins (2016) ao escrever sobre este lugar desbravado pelas mulheres negras na academia chamou de Outsider Within – sem tradução em português, a expressão fala sobre presença, pertencimento e reconhecimento de pesquisadoras negras neste lugar dominado pelos poderes brancos.

    A Major, esbanjando simpatia, começa falando sobre a importância de pensar o novo para a política soteropolitana e define sua pré-campanha como um movimento de paz e amor. Ao começar as arguições, ela cita a educação como agenda importante. Recusa-se a tecer críticas à gestão de ACM Neto, em seu segundo mandato como prefeito de Salvador. Brinca que seu principal diferencial em relação ao candidato do governo é seu belo sorriso. Elogia o colega de corporação Pastor Deputado Sargento Isidório ao ser questionada sobre a possibilidade deste também militar compor sua chapa como vice. Fala de sua amizade e confiança política no governador Rui Costa (PT-BA), largamente denunciado por suas falas racistas e seu alinhamento a políticas fascistas e conservadoras, sobretudo no campo da segurança pública.

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    Enquanto isso, em todas as redes em que a live foi exibida, fervilhavam comentários pedindo para que a candidata se posicionasse sobre a questão-problema da segurança, mas a metodologia escolhida para a coletiva não atendia às questões do público.

    Por duas vezes questionada sobre sua condição de outsider da política, a Major Denice Santiago fala de sua felicidade e privilégio de estar neste lugar, e consegue passar quase 1h de live sem mencionar a palavra racismo.

    Nesta minha jovem vida, experimentando alguns espaços como outsider e bebendo no conceito de Collins, nunca tinha visto uma auto compreendida outsider destacando seus sentimentos de felicidade, paz e amor pela condição. Muito pelo contrário, os relatos costumam ser de dor, pressão, angústia e responsabilidade pela escolha ou imposição de ser a “representante da raça”, deixando a tarefa mais complexa ao somar interseccionalidades (CRENSHAW, 2002).

    E falando em interseccionalidade, como uma mulher preta, oriunda do subúrbio ferroviário de Salvador, que alcançou o cargo de major em uma instituição profundamente racista e machista como a PM, ela é diversa e propaga suas tantas experiências ao falar de si. Atenho-me a refletir sobre dois lugares ocupados por ela: o de Mãe, e o de Policial. O primeiro porque toda sua comunicação e discurso da pré-campanha estão centrados neste lugar; o segundo lugar, o de PM, é a narrativa inevitável, por onde a Major construiu vida pública.

    O lugar de mãe de um jovem negro é sempre reforçado pela candidata em suas falas. Sabemos a importância que assume a maternidade em qualquer sociedade e fundamentalmente na nossa, tão repleta de aspectos culturais matrilineares, herdado das culturas africanas. Salvador é essa comunidade metrópole que atravessa a história na disputa interminável entre a resistência e os desejos de liberdade da gente descendente de tantas Áfricas sequestradas e saqueadas, e a ação minimamente planejada, articulada, cruel e genocida da branquitude baiana que se atualiza pelo controle de tantos corpos, mentes e culturas pretas.

    A maternidade acionada pela Major é a aposta do PT para tentar alcançar pela primeira vez a prefeitura da “Cidade das Mulheres”, narrativa construída na antropologia de meados do século XX, sobre a influência das mulheres negras, sobretudo do Candomblé, na sociedade soteropolitana.

    E ao ouvir tanto apelo à sujeita “mãe”, que aparece inclusive no título da campanha, mencionando Salvador como a “mãe de todos”, é inevitável não me lembrar do rosto do pequeno Micael Silva, de 11 anos, com seus olhos tão vivos e seu cabelo platinado ao estilo “lôro pivete”, do tipo que quase todo menino nosso, hoje em dia, sonha em pintar. Lembro-me das palavras e do choro de sua mãe, dona Joselita, ao contar revoltada como o menino foi criminalizado, após ter sido assassinado por policiais militares, no último dia 14 de junho, no Vale das Pedrinhas, no Nordeste de Amaralina, nesta mesma Salvador.

    Micael Silva de 11 anos foi assassinado pela Polícia Militar no Nordeste de Amaralina

    “Mãe de Todos”? Não foi mãe. Foi algoz de cada um dos jovens negros assassinados pela polícia ou em consequência da política de segurança pública do estado gestado pelo PT da Major. A mesma política de segurança pública da Bahia que concede aos seus agentes prêmios por número de mortes, e que no mês de março alcançou o 1º lugar dos estados Brasil em crimes de homicídio em 2020, segundo o Monitor da Violência do G1. A mesma política que gesta a Polícia Militar que, há 10 anos, protagoniza o ranking nacional de número de homicídios.

    A entrevista seguia no tom paz e amor anticríticas, até que uma corajosa e polida pergunta de uma jornalista quebra o silêncio ao questionar sobre uma possível intenção da campanha de desvincular a Major Denice da sua imagem de militar, concluindo com uma segunda pergunta sobre como a Major pretende tratar a questão da violência contra a população negra. E, já próximo do fim, a live chega em seu ponto alto.

    Ao finalmente falar da polícia, a Major nega possível intenção da campanha inviabilizar sua relação com a corporação, visto que dos seus 49 anos de vida, 30 foram dedicados à instituição. Ela aciona seu projeto da Ronda Maria da Penha e os bons serviços públicos que esta ala da polícia desenvolve. Em suas palavras: “estes agentes batem na porta das mulheres, conversam sentados no sofá, e quando eles saem, elas sentem saudade que eles voltem, por se sentirem extremamente seguras pela existência daquela unidade”.

    A questão é que essa polícia encantada narrada por Major Denice não dialoga com a realidade de 3º lugar nacional em número de feminicídios ocupado pela Bahia. Nem com os relatos de não acolhimento às mulheres vítimas de violência doméstica que procuram as DEAMs do estado durante a pandemia, ou antes desta. Nem com o número de óbitos de mulheres pós denúncia e sob a ação de medidas protetivas. Foi a última pergunta da coletiva.

    Leia também: O que é necropolítica. E como se aplica à segurança pública no Brasil

    Olhando de maneira mais ampla o contexto, o outro nome de candidato que já conhecemos vem do ecossistema de Netinho Grampinho (ACM Neto), cuja complexidade da política é tradicionalmente de direita, propaga e defende a baianidade no entrelaçamento da também genocida herança coronelista, e o afeto pela cultura negra do estado é numa relação do chamado “duplo vínculo”, na perspectiva que vem sendo analisada pelo querido professor Muniz Sodré (2018). Mas isso é assunto pra outro texto.

    Chamo atenção para refletirmos o significado de uma cidade como a nossa eleger uma mulher negra militar para prefeitura e sob a centralidade da supremacia branca do Partido dos Trabalhadores (PT), o maior da esquerda na América Latina, como foi bem lembrado pela Major na live.

    Em um contexto em que o mundo inteiro se levanta para denunciar a necropolítica e o descaso com as Vidas Negras, em confronto ideológico com o crescimento da direita fascista no mundo. Em um período de crescimento do militarismo na política brasileira, inaugurado pela extrema direita, que ao chegar à presidência e às tantas casas legislativas deu no que deu.

    Na atual conjuntura baiana, a cultura militarista ganha força sob o protagonismo da militância petista que apoia ou silencia. E neste debate há silêncios ainda mais incômodos do que o da Major em relação a real situação da segurança pública no estado.

    Referências de texto não faltam contando os tantos episódios de denúncia e tentativas de diálogos do Movimento de Mulheres Negras da Bahia com o Estado, denunciando a violência racial. O Julho das Pretas deste ano que tem como tema “Em Defesa das Vidas Negras, pelo Bem Viver” é o exemplo mais recente.

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    Aquela frase “perguntar não tira pedaço”, que muitos de nós ouvimos das mulheres negras mais velhas de nossas famílias testando nossa sinceridade cai bem agora: Quais narrativas os setores da esquerda da Bahia seguirão tecendo sobre o cenário político de Salvador?

    E os movimentos negros e feministas do Brasil atentos e se posicionando sobre a situação da política na nossa cidade, desde meados do ano passado, quais narrativas seguirão tecendo?

    E nós, profissionais da comunicação, cidadãos comprometidos com o acesso ao direito à informação, sobretudo os negros, da Mídia Negra e da Comunicação Antirracista, quais narrativas seguiremos tecendo?

    Aprendemos que o silêncio também mata. E cá, em cada esquina, viela, em cada lar de periferia dessa meca negra do Atlântico Sul, tem Vidas Negras seguindo a teia das narrativas contra-hegemônicas, revoltadas, entristecidas e desesperadas.

    Salva-dô.

    * Alane Reis é jornalista, editora da Revista Afirmativa e militante do Odara Instituto da Mulher Negra.

    Artigo publicado originalmente na Revista Afirmativa

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