Artigo | ‘A estrutura faz com que a bifobia seja algo cotidiano’

    Para marcar o Dia da Visibilidade Bissexual, a jornalista Jessica Gomes convida os leitores para uma análise sobre a vivência de pessoas bissexuais e o preconceito que elas enfrentam diariamente

    Ilustração Junião / Ponte Jornalismo

    Se descobrir como bissexual, em uma época em que não existia tanta discussão sobre sexualidade nas rodas de amizade, foi primeiramente descobrir o que eu não era. O primeiro passo acontece quando a normatividade hétero te puxa e você percebe que não é somente aquilo que te faz perder o ar. O segundo passo é aquele em que “o mundo homossexual” te leva, e você percebe que está na estrada, mas seu caminho não é aquele. Enfim, vem a sensação de não pertencimento, porque no final das contas, nós, bissexuais, só somos aceitos no mundo monossexual se estivermos obedecendo suas regras.

    Para entendermos melhor sobre bissexualidade, primeiramente é bom falar sobre algo que é o “comum” em nosso sistema social: a monossexualidade. Se parece uma palavra nova, na realidade é nada mais do que o termo que engloba orientações sexuais voltadas para apenas um gênero, como lésbicas, héteros e gays. A não-monossexualidade, ou monodissidência, surge quando tratamos de orientações sexuais que não se prendem na atração a apenas um gênero, como a bissexualidade.

    Nos anos 80, o desconhecimento que imperava sobre os corpos LGBTQIA+, fez com que  o HIV fosse nomeado como “peste gay”. Bissexuais se tornaram, de maneira pejorativa, “as pontes do HIV para o mundo heterossexual”. Em 2020, nas redes sociais ainda vemos monossexuais dentro da sigla LGBTQIA+ chamando mulheres bissexuais de vetores de doença e acusando-nos de trazermos riscos às outras mulheres porque nos relacionamos também com homens cisgêneros.

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    Ao pautarmos agressões específicas contra bissexuais, utilizamos o termo bifobia. Se sob a estrutura monossexual somos invisíveis, inclusive para outres que compartilham da mesma sigla LGBTQIA+, a necessidade de especificarmos nossas dores é porque, no final de contas, a violência vem de todos os lados, inclusive de aliados. Nossa existência não pode ser pautada com base apenas em com quem nos relacionamos pontualmente, assim como nossas lutas não podem se tornar relevantes apenas quando estivermos nos relacionando com monossexuais visíveis. 

    Acontece que a invisibilidade se inicia no processo de identidade, quando bissexuais muitas vezes só são aceitos ao intercalarem pessoas de diferentes gêneros a cada relação. Nos dá um sentimento de que precisamos fazer um infograma no qual a porcentagem entre as pessoas que nos envolvemos tem de estar equivalente para todos os gêneros, e assim, nossa “carteirinha bissexual” não seja confiscada.

    Quando falamos de heterossexualidade compulsória no meio LGBTQIA+, dialogamos sobre dores. As vivências de quem queria explorar sua sexualidade sem poder, porque a sociedade forçava essas pessoas a escolherem o único caminho hétero, cisgênero, obedecendo suas normas. Lésbicas e gays ao relatarem sobre isso, dentro da comunidade LGBTQIA+, têm apoio, compreensão – afinal é um momento em que todos compartilham essas dores, onde nos vemos forçados a nos envolvermos por conveniência social durante anos, muitas vezes até chegando a casar.

    Essas mesmas pessoas, ao saberem de alguém que se identifica como bissexual e que relata nunca ter se relacionado mais seriamente com alguém do mesmo gênero, a consideram um “falso bissexual”, esquecendo completamente o quanto a heterossexualidade compulsória também pesa em nossos ombros. Bissexuais, enquanto estiverem dentro de um relacionamento com pessoas de gênero oposto, são excluídos da comunidade que deveria acolhê-los. A causa de compaixão das outras sexualidades, para bissexuais, é munição para sua descredibilidade e invisibilidade.

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    Por conta de bissexuais “terem a opção” de se envolver com pessoas do gênero oposto, e se camuflarem em algum aspecto dentro de uma perspectiva heteronormativa, vemos experiências em que, antes de se revelarem lésbicas ou gays, pessoas não-heterossexuais se identifiquem com a bissexualidade, uma identidade vista como “mais suave”. Isso faz com que a sociedade conclua que todos que se reivindicam bissexuais na realidade estariam passando por uma fase, já que várias pessoas enxergam nessa sexualidade uma “passagem” para sua orientação definitiva. Elas acham que estão compartilhando a mesma experiência quando alguém fala sobre bissexualidade, e que a mesma história vai se repetir, concluindo que no final das contas não é uma definição, mas sim um período de experiência.

    Presumir que se assumir bissexual seria mais tranquilo é algo violento, porque na realidade bissexuais estão sofrendo dentro de suas famílias. Se assumir bissexual é ter uma constante pressão de que, caso haja uma inicial aceitação familiar, ela seja pautada em apenas querer que você se envolva com alguém do outro gênero. Isso sem contar o voto de silêncio para não se falar mais sobre o tema. Existem casos extremos em que a bissexualidade é considerada em decisões judiciais, como guarda de filhos, sob o pretexto de que poderia “confundir a criança”, já que a mãe ou o pai não teria se decidido sobre com quem se envolvem.

    Uma coisa pela qual lutamos durante anos é pela a possibilidade de nos relacionarmos com quem quisermos, da maneira que quisermos. O problema é que boa parte das vezes o “não quero me relacionar com você” em relação aos bissexuais vem carregado de bifobia. O “não” para homens bissexuais vem carregado de teorias de que na realidade eles ainda estariam no armário, ou em uma vida dupla. O “não” para mulheres bissexuais vem cheio anulação sobre suas escolhas e também sob um olhar de que, no final, são pessoas que não devem ser levadas a sério. Pessoas não-binárias bissexuais já têm sua identidade negada pela perspectiva binarista de gêneros, ao se posicionarem também enquanto bissexuais, entram numa invisibilidade mais profunda, e ainda despertam a atenção sob um olhar fetichista.

    Esse “não” também traz a ideia de que existiria uma promiscuidade bissexual. Essa promiscuidade seria tão forte que não respeita acordos, relacionamentos e amores. Algo que só existe na cabeça de quem enxerga  bissexuais como incapazes de autocontrole. Ainda que bissexuais entrem em acordos não-monogâmicos, inúmeras vezes essas conversas prévias sobre as regras do relacionamento vêm carregadas com vetos por conta da bifobia.

    Vemos homens héteros muitas vezes “liberando” mulheres bissexuais com qual se relacionam para ficar somente com outras mulheres, como se as atrações em relação ao mesmo gênero não tivessem a mesma relevância, ou até por uma questão de fetiche. Esses fetiches, que podem soar como algo leve, fazem com que mulheres bissexuais sofram violência de seus companheiros, até mesmo por eles quererem forçar situações com outras mulheres, por exemplo.

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    Essas violências vêm acompanhadas de um discurso que também traz a problemática da bifobia, pois há uma desculpa de maior desconfiança já que “é o dobro de ciúmes, se fosse uma pessoa monossexual a preocupação séria com apenas um gênero”. Essa mescla de teorias, juntamente com o discurso que nos associa com a promiscuidade, faz com que bissexuais tenham de ouvir, inclusive de estranhos, questões sobre possíveis insatisfações, pois, se nos atraímos por vários gêneros, então obviamente sentimos necessidades de nos relacionar com todos ao mesmo tempo, né?

    Toda essa a estrutura faz com que a bifobia seja algo cotidiano, mas não levado a sério. Inúmeras vezes somos desacreditados porque “ninguém é espancado por ser bi”. Quando falamos de violência muitas vezes o ponto de atenção não deve ser a maneira pela qual ela se expressa, mas sim seus resultados. Por coincidência o mês em que discutimos a visibilidade bi também é o Setembro Amarelo, campanha brasileira de prevenção ao suicídio e sobre a discussão sobre saúde mental. Discutir essas questões é também preservar a vida de bissexuais.

    A falta de estudos nacionais sobre a violência relacionadas a bissexuais só mostra o quanto nossa bifobia está tão enraizada que torna o B uma das siglas com menos relevância, até mesmo para pesquisas. O LGBTI Equality Network, do Reino Unido, fez uma pesquisa com bissexuais em 2015 onde 66% das pessoas entrevistadas se sentiam pouco ou totalmente excluídas da comunidade LGBTQIA+ e 69% tinham os mesmos sentimentos relação a heterossexuais. O não-lugar, o não pertencer trazem um sentimento de solidão. Quando falamos sobre solidão, não é apenas a de não se relacionar com outros, mas sim se sentir parte de uma comunidade, que teoricamente sofre nas mãos das mesmas pessoas.

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    Estamos ainda em uma época de pandemia, onde LGBTQIA+ estão muitas vezes presos dentro de casa com familiares que reproduzem ódio, e no caso de bissexuais, até com parceires que invisibilizam suas identidades. Uma pesquisa feita pelo coletivo #VoteLGBT, que ouviu mais de 10 mil pessoas através de um questionário online, mostra que lidar com a saúde mental é a maior preocupação para 47% das pessoas bissexuais e pansexuais, o que é uma maioria em relação às outras siglas (44% das lésbicas e 34% dos gays).

    O MAP (Movement Advancement Project), dos Estados Unidos, fez uma pesquisa sobre como a bissexualidade é a letra da sigla LGBTQIA+ com o maior número de pessoas, mas é mais invisível. Da comunidade LGB somos 52% da comunidade, em relação a 31% de gays e 17% de lésbicas. Dados dessa mesma pesquisa mostram que quase 1/3 dos estudantes bissexuais do ensino médio já tentaram suicídio. Se pensarmos também sobre violências domésticas, 61% das mulheres bissexuais sofrem violência das pessoas com que se relacionam, contra 44% das lésbicas e 35% das mulheres héteros. Quase metade dos estudantes bissexuais são vítimas de agressão sexual, em comparação com 1/3 de gays e lésbicas.

    Definitivamente vocês nunca vão ver pessoas espancando outras gritando “BISSEXUAIIIS”, mas não estarmos dentro de gritos só mostra o quanto estamos morrendo através dos silêncios. A importância da visibilidade bi é porque estamos cansados do silêncio, queremos nossas vozes ouvidas. Ser bissexual é ser chato por natureza, porque precisamos falar o que somos, precisamos reforçar nossa identidade para que nos olhem, pois se não falamos logo nos encaixam enquanto monossexuais. Inúmeras vezes você vai ouvir “não acho necessário definir”, “é melhor não nomear”, “é muito apego a nomenclatura”, mas isso só existe quando se discute bissexualidade. Assim como todas as movimentações LGBTQIA+, nosso nome precisa ser gritado, informado e associado a ações de resistência.

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    A dúvida sobre o que escrever em relação a esse dia me bateu forte, mas a minha decisão foi dizer o óbvio, pois a realidade das pessoas bissexuais não é algo que vemos facilmente em séries ou em produções culturais. E ainda quando vemos, somos pessoas vilãs, manipuladoras, sociopatas, onde apenas nossos desejos são prioridades. Também aparecemos como seres que vivem a bissexualidade, mas nem dialogam sobre o tema, utilizando frases como “eu gosto de pessoas”. Isso quando também aparecem as mulheres bissexuais, que são relacionadas a uma super-sensualidade, juntamente com a erotização da sua orientação.

    A obviedade sobre bissexualidade e bifobia é novidade, inclusive dentro de uma bolha que até então sabe da nossa existência, e não por nossa culpa, mas sim por uma cegueira relativa de quem não quer nos enxergar. Bissexuais estão por aí, nas redes e espaços acadêmicos produzindo nossas próprias histórias e narrativas, porque além de frases como “não somos uma fase” e “não estamos aqui para servir de fetiche pra você e seu namorado”, existimos para quebrar todo o seu ideal monossexual que suspeita da nossa existência só porque não se enxerga em nossas vivências.

    Jessica Gomes é jornalista, produz conteúdo no coletivo Levante Negro e colabora na produção do podcast 1001 Crimes. Em suas redes dialoga sobre negritude e questões LGBTQI+ com foco em bissexualidade.

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