Artigo | A prisão do fascista e o genocídio do povo negro: em memória de Marielle Franco

Professora de direito Aline Passos diz que o discurso de “vitória da democracia” com a prisão do deputado Daniel Silveira não encontra respaldo num país que mantém sua população negra sob profunda opressão

Votação na Câmara dos Deputados pela manutenção da prisão de Daniel Silveira | Foto: Michel Jesus / Câmara dos Deputados

Brasil chegou a vez

De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês.

(Estação Primeira de Mangueira, 2019)

Um fascista foi preso. Viva a democracia!

Viva?

Daniel Silveira, deputado federal (PSL-RJ), foi preso após realizar uma série de ameaças e insultos às instituições democráticas por meio de vídeos publicados em suas redes sociais.

A decisão do ministro Alexandre de Moraes, que decretou a prisão de Daniel, assim como várias manifestações de deputados que votaram a favor da manutenção da medida no plenário da Câmara dos Deputados, falaram da necessidade de preservar as instituições democráticas de ataques como os que Daniel perpetrou.

O que significa preservar as instituições democráticas para quem lê a história e a política brasileiras por meio do conceito de genocídio do povo negro? O que nos diz a decisão que colocou Daniel Silveira e o fascismo de um lado e Alexandre de Moraes e democracia do outro?

O ministro que decretou a prisão do fascista é conhecido por ser também um aguerrido comandante da guerra às drogas. Seu vídeo ceifando pés de cannabis é um clássico da televisão e da internet brasileiras. Como principal discurso criminal contemporâneo, a guerra às drogas é um dispositivo do genocídio do povo negro que nos informa que morreu um traficante na “troca de tiros” para que não possamos enxergar que quem morreu foi mais um jovem negro assassinado pela polícia.

Aliás, o sistema de justiça criminal, cujo fundamento é o racismo, existe para nos dizer, o tempo todo, que o Estado brasileiro prende e mata criminosos para que não possamos dizer que ele prende e mata pessoas negras. Neste sentido, o funcionamento da justiça criminal se liga ao mito da democracia racial e o atualiza incessantemente. Que democracia racial poderia ser enunciada se, antes, fosse possível dizer, com todas as letras, que o sistema de justiça criminal, e portanto, o Estado brasileiro, é uma máquina genocida do povo negro?

Então, quando falamos em preservar as instituições democráticas, e dentre elas, os grandes tribunais que condenam o tráfico e absolvem a letalidade policial, onde estamos localizando o fascismo? O que entendemos como fascismo? Que instituições querermos preservar e por quê? Se o fascismo está de um lado e do outro está a democracia, o genocídio do povo negro, onde fica?

Daniel Silveira é um fascista. Essa definição é inegociável. Não sei se um dia poderemos esquecer a cena que ele protagonizou ao lado de outros fascistas quebrando a placa de rua em homenagem a Marielle Franco. Mas, afinal, quem mandou matar Marielle e Anderson? O que as instituições democráticas têm a nos dizer sobre isso? Estamos desde 14 de março de 2018 aguardando respostas.

O fascista não foi preso por quebrar a placa de Marielle, por mais que nos dê alguma satisfação pensar assim. Ele foi preso para preservar as instituições democráticas que nos impedem de conhecer quem matou Marielle. Quem poderá dizer que o judiciário brasileiro não combate o fascismo depois da prisão de Daniel Silveira? Como poderemos dizer que esse judiciário promove um genocídio se ele até prende fascistas? Ao que tudo indica, na prisão do fascista jaz a possibilidade de memória e reparação para muitas Marielles.

Pensadores e pensadoras da branquitude afirmam constantemente que ela consiste em um pacto narcísico, tácito e, por isso mesmo, silencioso. O fascista espalhafatoso não serve a este pacto. Ou não serve por muito tempo. Daniel Silveira quebrou a placa de rua em homenagem a Marielle. Em seguida, ele se elegeu deputado. A sua imagem com a placa quebrada é indelével nas nossas mentes e nos nossos corações. Por isso mesmo, a partir de certo ponto, o fascista fanfarrão anabolizado se torna dispensável e impertinente ao projeto do fascismo que habita o estado democrático de direito e se materializa no genocídio da população negra, no encarceramento em massa, nos “confrontos entre policiais e traficantes” e nos arquivamentos dos autos de resistência. Este projeto, mobilizado em grande medida pelos tribunais deste país, depende do silêncio e do esquecimento.

Apenas a título de exemplo, vamos a alguns dados empíricos. Em pesquisa realizada na Universidade Federal de Sergipe (UFS), o então estudante de Direito, Victor Carvalho, analisou uma amostra de 227 habeas corpus (HCs) impetrados em janeiro de 2017 perante o Tribunal de Justiça de Sergipe, conhecido por suas premiações junto ao Conselho Nacional de Justiça. Os resultados foram: 52,88% dos HCs sequer foram admitidos para julgamento, 42,31% foram negados e 4,81% foram deferidos. Quem precisa de AI-5 quando premiados tribunais deste país podem negar cerca de 95% dos habeas corpus encaminhados a eles em um mês, sem estardalhaço algum? Quem são, em amplíssima maioria, os pacientes destes HCs que rogam aos tribunais a restituição de sua liberdade? Que cor eles/elas têm? Alguém arrisca?

Não é por outro motivo que as instituições democráticas ousam nos deixar há três anos sem respostas para os assassinatos de Marielle e Anderson. O pacto da branquitude procura apagar da nossa memória o genocídio que fez de Marielle mais uma vítima, mais uma perda, mais uma dor. Corpos negros e periféricos como o dela desaparecem das casas, das ruas, das comunidades e da história, menos pelas mãos de fascistas histriônicos, e mais pela chancela de sóbrios e democráticos magistrados.

Para honrar as lutas do nosso povo e avançar em pautas de memória, reparação e direitos humanos, é preciso expor o quanto de fascismo é necessário para construir e sustentar o mito da democracia racial brasileira. É preciso, para além de toda discussão a respeito da desejável e aguardada cassação do mandato do fascista Daniel Silveira, que não permitamos que o ministro Alexandre de Moraes, o STF e as demais instituições preservadas pela prisão do fascista deixem de nos responder: quem mandou matar Marielle e Anderson? E por quê?

Aline Passos é doutoranda em Sociologia pela UFS e professora de direito e processo penal.

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