No Dia do Combate à Intolerância Religiosa é preciso lembrar que os ataques a terreiros são reflexo de um racismo estrutural que criminaliza e demoniza formas que divergem da hegemonia cristã ocidental, diz pesquisadora

Hoje, 21 de janeiro, Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, é um marco para a denúncia da violência, da discriminação e do racismo religioso que persistem no Brasil — e têm como alvo as tradições de matriz africana.
Segundo dados do Disque 100, o estado do Rio de Janeiro liderou o triste ranking de denúncias relacionadas ao racismo religioso. Além disso, tem sido palco de constantes violações de direitos humanos envolvendo terreiros, com casos emblemáticos de violência extrema. Em 2017, na Baixada Fluminense, testemunhamos o horror de mães de santo sendo obrigadas, sob a mira de armas, a destruir seus assentamentos de orixás e a engolir fios de contas, em atos de humilhação que chocaram o país.
No primeiro semestre de 2024, o aumento de 80% nas denúncias de racismo e intolerância religiosa em comparação ao mesmo período de 2023 reforça a urgência de medidas concretas por parte das autoridades públicas.
Os ataques a terreiros não são eventos isolados: são o reflexo de um racismo estrutural que criminaliza, demoniza e busca formas aniquilares de existir e resistir que divergem da hegemonia cristã ocidental. Historicamente, o Estado e a sociedade brasileira estigmatizaram os ritos e símbolos das religiões afro-brasileiras, ligando-os à criminalidade e ao “mal”. Esse processo, longe de ser um resquício do período colonial, é continuamente ajustado e perpetuado por uma lógica capitalista e racista.
Na contramão de um projeto de morte
Apesar de toda a violência, os povos de matriz africana continuam contribuindo de maneira significativa para a cultura, espiritualidade, memória e ciência brasileiras. Os terreiros, espaços de educação libertadora e fortalecimento comunitário, têm papel central na formação de pessoas, na preservação de saberes tradicionais e na criação de alternativas sustentáveis e inclusivas. São lugares de resistência, na contramão de um projeto de morte, seja dos corpos ou dos saberes.
Em resposta ao contexto de violência, diversas instituições, movimentos e iniciativas tem se dedicado a produzir dados, a propor políticas públicas de acesso e proteção e visibilizado as narrativas, memórias e histórias das pessoas que são alvo constante dessas violências. O ISER (Instituto de Estudos da Religião) tem se debruçado há décadas a realizar e apoiar pesquisas e projetos que atuem pela defesa dos direitos humanos, pela democracia, pela liberdade religiosa, pela convivência entre diversas confessionalidades — que têm muito mais em comum do que alguns líderes movidos a discursos de ódio pregam — e por políticas preventivas e reparatórias que garantam dignidade e segurança.
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A trajetória dos povos de matriz africana nos ensina que negociar a existência é parte essencial da luta por direitos. É necessário considerar que o que chamamos de intolerância religiosa no Brasil e que atinge, historicamente, espiritualidades e tradições de matriz africana, é racismo. O racismo que se perpetua por dentro das nossas instituições, no imaginário coletivo e também nas ações e subjetividades de milhares de pessoas, causando o apagamento criminoso da memória e da história que revelam as infinitas contribuições do continente africano para a filosofia, matemática, física, química, ciência, dentre outras dezenas áreas de conhecimento.
O mundo tem uma dívida impagável com as diversas contribuições dadas pelo continente africano e suas diásporas, bebemos dessa fonte e dos múltiplos saberes, ferramentas e tecnologias criadas a partir de corpos pensantes e sensíveis, que foram reduzidos a potência de sua força física nos livros didáticos.
Não à toa, a educação, a formação das pessoas, principalmente crianças e jovens, é uma arena em disputa nesse país. Em novembro de 2024, presenciamos o apedrejamento de uma professora negra, em sala de aula, por estar cumprindo a lei e ensinando a sua turma sobre a cultura afro-brasileira. Sueli Santana foi chamada de “bruxa”, “macumbeira” e “diabólica” no município de Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador. A mesma Salvador que realiza festas como o Dia de Iemanjá, em dois de fevereiro, que atrai turistas do mundo todo.
Em diversos estados do Brasil, principalmente nas áreas de periferia, pais e mães de santo não conseguem sequer abrir um terreiro, por medo do varejo de drogas ilícitas, da milícia ou da própria polícia, dos vizinhos e de outros grupos que disparam ameaças constantes. O que restringe a liberdade não só de credo — mas também de ir e vir, de estar no mundo, de existir. Paralelamente, temos falado cada vez mais sobre essas violações de direitos e exigido respostas do Estado.
A quem interessa, principalmente nas áreas de maior vulnerabilidade social, onde as forças institucionais chegam muitas vezes apenas com a coerção física, que pessoas majoritariamente negras, com crenças distintas, não cooperem entre si, como historicamente temos diversos exemplos em nossas comunidades, mas se vejam como potenciais inimigos e disputem violentamente os territórios?
Isso já vem ocorrendo em outras dimensões faz décadas e, mais recentemente, o argumento religioso tem ganhado muita força. Como dizem alguns especialistas, o racismo é mesmo o crime perfeito porque faz pessoas negras se odiarem e matarem-se entre si de muitas formas.
Valorizar o legado de quem o construiu
O racismo religioso é um entrave a implementação de conquistas históricas do movimento negro educador — como nos ensinou Nilma Lino Gomes —, como a lei nº 10.639 (2003), atualizada na lei nº 11.645 (2008), onde a obrigatoriedade do estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fica refém das Fake News e de atitudes extremistas e violentas.
Se falar acerca da história negro africana no Brasil é “coisa do diabo”, “macumba” (aqui no sentido pejorativo que se atribui) e “doutrinação religiosa”, então toda a história do Brasil, incluindo seus maiores recursos e riquezas, é um erro. Porque foi erguida com a grande contribuição dos corpos, das mentes, das peles, dos jeitos de agir e das espiritualidades negras e indígenas. Não há democracia plena enquanto não houver o direito de existir, porque apenas se beneficiar dos legados, sem contar e valorizar as tantas vidas que os produziram, não é civilidade, é roubo.
Reafirmamos nosso compromisso com a valorização e a defesa das tradições afro-brasileiras, que, apesar de toda perseguição, continuam sendo pilares fundamentais da cultura e da identidade nacional. É hora de transformar o discurso em ação e garantir que o Brasil seja, de fato, um país para todas as pessoas.
Carolina Rocha é historiadora, doutora em sociologia e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER).