Como a anulação da condenação de Daniel Alves na Espanha afeta todas as mulheres vítimas de violência sexual e é exemplo de um sistema que, em nome de formalismos legais, acaba por ignorar a voz de quem mais precisa ser ouvida

A anulação da condenação de Daniel Alves não é apenas uma reviravolta judicial, é um cartão vermelho para todas nós — cartão esse que teria que ser dado a Daniel Alves e todos estupradores. Quando o sistema, que deveria proteger as mulheres, falha em reconhecer a gravidade de uma violência sexual, a mensagem é clara: silenciar a verdade e perpetuar a impunidade. E isso é assustador. O cartão vermelho que recebemos da justiça em casos emblemáticos como esse sempre aumenta a subnotificação.
No caso, trata-se de um milionário poderoso, mas a realidade no Brasil é que, seja para homens ricos ou pobres, menos de 2% dos casos de violência sexual no país tem seus abusadores condenados — e isso não acontece por se tratarem de falsas denuncias de estupro. A maioria dos casos são arquivados em fase de inquérito, onde as vítimas sequer têm advogados (a defensoria pública não atua em fase de inquérito em violência contra mulher).
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Muitas pessoas tampouco sabem da necessidade da contratação de um(a) advogado(a) na fase de inquérito. A delegacia, sozinha, por vezes faz uma investigação superficial em casos de violência sexual. Aqui no Brasil é raro dispormos de testes de DNA, como ocorreu no caso Daniel Alves, ainda mais sem requerimento do Ministério Público ou de um advogado. Casos de violência sexual já são mais difíceis de comprovar por sua natureza — ocorrem em ambientes privados e geralmente sem testemunhas oculares. E esse caso por si só tem algo que a grande maioria não tem, um réu milionário.
Impactos no Brasil
A anulação da condenação de Daniel Alves não é um mero episódio jurídico, mas exemplo gritante de um sistema que, em nome de formalismos legais, acaba por ignorar a voz de quem mais precisa ser ouvida. Em um país onde a cultura misógina, machista e patriarcal permeia desde o ambiente familiar, a internet até as instituições que deveriam garantir a proteção das mulheres, tal decisão se transforma em um alerta sombrio para todas as vítimas de violência sexual que já se vem na lama pela cultura do estupro e do silenciamento.
Quando a justiça falha em reconhecer o peso dos relatos e em valorizar a coragem daqueles que rompem o silêncio, o resultado é um retrocesso que reverbera por toda a sociedade, amplifica a subnotificação, enfraquece a aplicação da lei “não se cale” ou “não é não”, e até o valor da palavra da vítima na sociedade e na justiça.
Medidas legislativas como o protocolo “No Callen” e a lei “não é não” representam avanços significativos na tentativa de garantir tratamento digno e respeitoso às vítimas. No caso Daniel Alves, a lei foi um grande marco no Brasil, mas sua aplicabilidade tem caminhado a duras penas com a falta de vontade de governos e municípios.
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Essas iniciativas, idealizadas para preservar provas e oferecer um ambiente seguro e acolhedor para a vítima — sem julgar antecipadamente o agressor — são importantíssimas para o combate à violência de gênero. E podem sofrer falta de incentivo, adesão e fiscalização depois da anulação da sentença de Daniel Alves. Esperamos que não!
Para muitas mulheres, denunciar uma violência sexual é enfrentar um labirinto de obstáculos. Não se trata apenas de reunir provas, mas de lutar contra o estigma que recai sobre o ato de expor o próprio sofrimento. A dependência emocional e financeira em relação ao agressor, aliada a uma sociedade que minimiza a gravidade dos abusos, cria um ambiente onde o silêncio é imposto e, muitas vezes, internalizado.
Esse cenário é agravado pela revitimização durante os processos judiciais, quando o depoimento da vítima é desencorajado e questionado de forma implacável ou a vítima não é acolhida. Foi o que ocorreu no recente caso da servidora de Goiás assassinada menos de 24h depois de sair da delegacia da mulher: ela enviou áudios para uma amiga reclamando do atendimento frio e com pouca ajuda vindo da delegacia.
‘Inconsistências’ só da vítima?
O caso de Daniel Alves e de tantos outros abusadores impunes levam as vítimas a sentir que, ao falarem, estão sujeitas a mais humilhações, dúvidas e injustiça. Assim, a denúncia, que deveria ser um ato de libertação e busca por justiça, transforma-se num processo doloroso que, além de não acolher, expõe ainda mais a vulnerabilidade da pessoa vitimada.
A anulação da condenação de Daniel Alves pelo Tribunal Superior de Justiça Catalã vem para desafiar, de maneira contundente, os paradigmas do direito penal em matéria de violência sexual. À luz do princípio “in dubio pro reo”, o na dúvida em favor do réu, a decisão evidenciou como inconsistências — muitas vezes inerentes ao relato de vítimas submetidas a ambientes hostis — podem ser exploradas para subverter a efetividade da justiça.
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É imperativo compreender que pequenas variações no depoimento ou a ocultação de algum fato pela vítima, não significa ausência de violência — mas reflexos do trauma, dificuldade de falar e medo da revitimização sistêmica a que são submetidas as mulheres.
Ao aplicar o “in dubio pro reo” o tribunal catalão optou por priorizar a versão do réu, sobretudo diante de inconsistências identificadas, como o exame de DNA que supostamente encontrou vestígios de sêmem na boca da vítima que, embora não corroborem de forma inequívoca o seu relato, se apresentam como um dos elementos da versão apresentada pelo acusado.
Em duas das versões, o réu chegou a negar qualquer contato sexual com a vítima. Já a vítima se manteve firme em todos seus relatos, com um conjunto probatório que corrobora com sua versão dos fatos — como laudo psicológico mostrando seu abalo, câmeras de vídeo, lesões pelo corpo e testemunhas indiretas. E nega o sexo oral consensual dito pelo réu somente em uma das suas últimas versões dada às autoridades.
Segurança jurídica X proteção à vítima
Essa decisão, que em tese privilegia a segurança jurídica em detrimento da proteção das vítimas, reflete uma realidade na qual o poder econômico e a influência frequentemente se sobrepõem à busca por justiça. No Brasil, apesar de a palavra da vítima possuir especial relevância probatória, ainda enfrentamos desafios significativos para que o sistema não se torne refém de interesses que perpetuem a impunidade.
A análise de um caso tão complexo exige não apenas rigor técnico, mas também sensibilidade e uma abordagem que coloque a dignidade da vítima no centro do debate. É fundamental que os operadores do direito compreendam que a variação no depoimento não desqualifica a narrativa, mas sim reflete a vulnerabilidade de uma pessoa que foi submetida a uma experiência traumática.
A revitimização, muitas vezes agravada por interrogatórios invasivos e procedimentos judiciais insensíveis, deve ser combatida com a implementação de protocolos que resguardem a integridade física e psicológica das vítimas. Além disso, um consentimento inicial não permite que posteriormente a mulher seja estuprada. E a dificuldade de contar com testemunhas que queiram falar sobre os fatos criminosos, ainda que seja obrigatório por Lei, é grande.
Perspectivas de avanço
O caso Daniel Alves ilustra um retrocesso preocupante na proteção das vítimas de violência sexual, não somente pela anulação da condenação, mas pelo sinal negativo que a decisão envia à sociedade e pela jurisprudência que se forma.
Para reverter esse quadro, é urgente que o sistema de justiça avance na capacitação de seus agentes e na implementação de medidas que garantam um tratamento digno e humanizado, para que decisões como essa não reflitam em mais subnotificação de crimes e abram as porteiras para que o estuprador continue nos violentando, com a certeza que nada lhe acontecerá.
É tido como um marco no combate à violência de gênero a Patrulha Maria da Penha no Estado de São Paulo, mas pouco se fala que a Guarda não é remunerada para se capacitar para tal atendimento e há apenas uma mulher para cada quatro guardas. As próprias assistidas queixam-se do tratamento revitimizador que muitas vezes lhe é imputado pelo próprio guarda quando homem ou da vergonha em ter que relatar um momento traumático a alguém que talvez não o compreenda.
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A solução para esse impasse não reside apenas na elaboração de leis e protocolos, mas em uma profunda revolução feminista. É imperativo que a sociedade invista em educação de raça, classe e gênero desde as primeiras etapas da formação, promovendo debates e informação em toda sociedade. Operadores do direito, policiais e demais agentes envolvidos na condução dos processos judiciais precisam ser constantemente capacitados para lidar com a complexidade dos casos de violência sexual, tratando cada relato com a sensibilidade e o rigor que ele exige.
A educação em gênero, iniciada desde as instituições escolares e reforçada nas políticas públicas, é imperativa para desconstruir estereótipos que alimentam o preconceito e a desconfiança em relação ao relato das mulheres, que reflete em um retrato de culpabilização. Cada dúvida semeada no depoimento de uma vítima tem o potencial de desestimular futuras denúncias de outras mulheres, perpetuando esse ciclo de violência e omissão.
Juliana Valente, advogada criminalista, é especialista em violência de gênero e direitos humanos e integrante da frente feminista de juristas — DeFEMde.