Artigo | Como a prisão de Fuminho pode impactar o PCC

    Apontado como articulador da morte de lideranças da facção paulista, Gilberto Aparecido dos Santos pode ter muito o que dizer sobre o que está por trás desses crimes

    No dia 13 de abril, a prisão de Gilberto Aparecido dos Santos, conhecido como Fuminho, foi amplamente noticiada na imprensa brasileira. Fuminho estava foragido desde o final dos longínquos anos 90, quando cumpria pena na agora extinta Casa de Detenção de São Paulo, o famigerado Carandiru, passando quase duas décadas no anonimato, completamente desconhecido do grande público.

    Essa situação mudou em fevereiro de 2018, quando seu nome foi atrelado à execução dos principais nomes do Primeiro Comando da Capital (PCC) em liberdade, conhecidos como Gegê do Mangue e Paka.

    O assassinato de ambos numa área remota, próxima ao município de Aquiraz, 32 km de distância da capital do Ceará, Fortaleza, surpreendeu autoridades públicas, policiais, especialistas, jornalistas e até mesmo os próprios criminosos.

    Sabia-se, porém, que o duplo homicídio não decorria da guerra entre as facções – conflitos violentos envolvendo PCC, Comando Vermelho (CV) e Família do Norte (FDN) que, à época, estava no auge e tinha como palco justamente alguns estados do Nordeste, como o próprio Ceará.

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    De resto, ninguém parecia saber o que realmente poderia ter acontecido. Ou melhor, quase ninguém. Algumas pistas começariam a aparecer alguns dias depois, quase 3 mil km de distância do local do crime, na Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, região oeste do Estado de São Paulo, onde cumpria pena a cúpula do PCC.

    O imbróglio envolvendo essas mortes estendeu-se por meses. Na sequência, houve uma série de outros assassinatos, supostamente, dos executores de Gegê e Paka. Dentro das prisões controladas pelo PCC, primeiro decretou-se o luto pelas mortes de seus integrantes em liberdade.

    Depois, quando surgiram as informações de que o próprio PCC tinha decretado sua morte em decorrência de traição e desvio de dinheiro, o luto se transformou em comemoração.

    Contudo, se os homicídios haviam sido decididos pelo “PCC”, alguma coisa havia saído dos trilhos, haja vista que não parecia haver unanimidade ou consenso quanto a essa informação.

    Importante lembrar que na dinâmica de funcionamento do PCC todas as decisões que envolvem homicídio, necessariamente, têm um caráter colegiado e a decisão é feita a partir de um consenso entre os integrantes da cúpula da organização.

    Ainda mais quando se considera que tratava-se, simplesmente, dos dois principais nomes da facção em liberdade, a decisão pela execução só poderia se dar nessa instância e de uma forma que não deixaria dúvidas quanto ao seu caráter justo e correto. Isso implicaria apresentar provas das acusações imputadas aos dois decretados. Não parece ter sido o que ocorreu.

    Aqui é que podemos situar a relação de Fuminho com tudo isso e, além disso, por que a sua “presença” neste imbróglio era importante e poderia sinalizar alguns caminhos para compreender o que ocorrera.

    Da mesma forma, essa história toda é importante para analisar eventuais impactos de sua prisão. De acordo com as poucas informações que se tem, Fuminho teria sido um dos executores das mortes de Gegê e Paka, ao lado de outros integrantes da facção paulista, a maioria dos quais atuava na região do Porto de Santos.

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    No lapso de tempo que envolveu a notícia da morte da dupla, o repúdio do PCC e a posterior justificativa do próprio PCC para o duplo homicídio foram assassinados vários dos executores que atuavam no Porto.

    Pressionado e questionado sobre o ocorrido, em meio a um banho de sangue que prometia se espalhar feito rastilho de pólvora no seio da maior organização criminal do país, no início de abril de 2018, Fuminho emite um “salve” assegurando que houvera o “aval”- autorização da cúpula do PCC – para os assassinatos e estaria disposto a comprovar.

    Num trecho do longo texto, ele escreve: “Quando a ordem veio de W2 [Penitenciária onde estava presa a cúpula do PCC] ninguém discutiu apenas cumpriu pois esse é o procedimento pelo certo […] Eu tenho provas que recebi as ordens escrita e confirmada para fazer a situação do GG e do PAKA”. O salve termina contundente: “Meu decreto [ordem para matar] tem que ser anulado, e se a ordem do GG e do Paka era errada ou falsa, o decreto tem que ser em cima de quem passou a ordem irmão. É esse o papo”. O decreto do Fuminho realmente parece ter sido anulado, contudo, em situações que ainda não foram de todo explicitadas.

    De fato, alguém que estava na Penitenciária de Venceslau 2 parece ter dado a ordem para que Gegê e Paka fossem mortos. Ao que indicam as informações que se têm sobre o imbróglio que se formou, porém, essa decisão não seguiu o procedimento amplamente disseminado pelo PCC para garantir justiça, igualdade e “democracia” nas suas decisões: o debate.

    De 2018 para cá, parece ter se colocado panos quentes sobre essa situação. Foragido do Brasil há muito tempo, Fuminho parece ter estabelecido suas bases na Bolívia e, de lá, construído uma sólida rede de proteção e de acesso à pasta base de cocaína. De acordo com autoridades, ele era um dos principais fornecedores de cocaína para o PCC.

    A partir de meados de 2018, passou a estar nas manchetes de jornais em decorrência de uma acusação feita por autoridades públicas brasileiras: seria responsável pelo financiamento, pela organização, logística e pela execução de um ousado plano de resgate de membros da cúpula do PCC, especialmente, de Marcola.

    Não nos cabe aqui apontar a veracidade ou não dos miraculosos planos que as autoridades brasileiras tornaram públicos, através da imprensa, em diversos momentos dos últimos dois anos.

    Neste texto cabe situá-los dentro dos planos de análise da relação Fuminho/PCC e dos efeitos que a sua prisão pode produzir. Neste sentido, é importante considerar a relação antiga que Fuminho tem com Marcola, há muitos anos considerados o principal nome da facção paulista.

    O fato é que parece haver entre eles uma relação de confiança, construída através de vínculos pessoais de lealdade e que, ao longo do tempo se constituiu como base das relações econômicas que Fuminho estabeleceu com o PCC, se tornando um de seus principais fornecedores, e dos compromissos que assumiu junto à facção, como, por exemplo, a execução do duplo homicídio de Gegê e Paka e o plano de resgate de Marcola e cia.

    Este aspecto das relações pessoais é fundamental para situar de forma mais apropriada as relações de Fuminho com o PCC. Um equívoco que é sistematicamente cometido nas informações que circulam sobre o caso é dizer que o Fuminho era um “líder do PCC”. Ele sequer é batizado no PCC.

    A despeito das décadas de parceria e de “correr junto” com o PCC através da construção de um canal de fornecimento de cocaína estável e de estar disposto a assumir empreitadas arriscadas, como as que já mencionamos, Fuminho é um “companheiro leal”do PCC – como, aliás, ele próprio se define no salve de 2018 anteriormente citado.

    Isso é importante para compreender melhor um aspecto da dinâmica do PCC que muitas vezes é mal compreendido. A filiação ao PCC, num processo que se denomina batismo e que transforma companheiros em irmãos, é essencial para conformar a forma através da qual a organizações se configura e se estrutura em termos de suas dinâmicas organizacionais.

    Contudo, isso não significa que as relações estabelecidas se encerrem no vínculo produzido através do batismo. Ao contrário. O vínculo através do batismo implica compromissos econômicos e profissionais que não necessariamente um empresário bem sucedido, como parece ser o caso de Fuminho, tem interesse em criar – a não ser que ele seja preso e, então, as pressões e as demandas próprias do sistema prisional muitas vezes produzem a necessidade ou a conveniência do batismo.

    Mas, não era o caso do Fuminho que fugiu da prisão num momento em que o PCC ainda dava os primeiros passos no sistema carcerário.

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    Neste sentido, os processos que descrevemos no texto indicam que a relação que Fuminho mantinha com o PCC se estabelecia através de contratos comerciais (fornecimento de cocaína) e de relações pessoais, notadamente com Marcola. Embora seja plausível a existência de outros vínculos de confiança com outros membros da cúpula do PCC, especialmente aqueles que cumprem pena desde os anos 1990, não temos informações precisas acerca disso.

    Dado esse contexto, qual o efeito que a prisão de Fuminho em Moçambique e sua rápida chegada ao Brasil, em 19/04, pode produzir? Do ponto de vista econômico, certo é que a sua prisão produzirá prejuízos para a sua própria rede de negócios, a depender da capacidade e da confiança devida ao seu eventual “herdeiro”. As redes criminais contam com a possibilidade de prisão de maneira muito clara, de forma que, ao menos as redes mais sólidas, precisam sempre contar com um substituto para assumir a frente dos negócios. Neste sentido, difícil acreditar que haverá interrupção de suprimento de cocaína, seja no âmbito da própria rede do Fuminho, seja para o PCC.

    No caso do PCC, embora o Fuminho fosse um importante fornecedor, nem de longe ele era o único. Fuminho tinha seus negócios próprios, sem exclusividade com o PCC, da mesma forma que também o PCC nunca comprou exclusivamente dele. Assim, improvável que sua prisão tenha impacto significativo no fluxo de drogas para o grupo paulista. Por outro lado, vale lembrar que a relação de lealdade e confiança com Marcola era a base principal da relação entre Fuminho e o PCC.

    Nesse sentido, sua prisão pode ter impacto significativo nos eventuais planos e compromissos pessoais assumidos, como o plano de fuga mencionado. Também é certo que haverá muita gente – policiais, autoridades, os próprios criminosos – interessados em saber com mais detalhes o que exatamente ocorreu no episódio envolvendo Gegê e Paka.

    Finalmente, importante aqui situar um ponto em que pode haver uma intersecção entre o vínculo econômico que liga Fuminho ao PCC e os vínculos pessoais de lealdade e confiança que o vincula ao episódio ainda controverso, da morte de Gegê e Paka.

    Em maio de 2017, Gegê e Paka comunicaram às lideranças do PCC a respeito do progresso realizado na criação de um canal de exportação de cocaína para a Europa (chamada de “tomate”), próprio do PCC – ou seja, da facção e não de seus membros ou dos companheiros – através do Porto de Santos. Na mensagem, fica clara a importância do esquema que tentavam criar: “acreditamos que esse progresso a anos estamos lutando para que a família se envolvesse, e graças a Deus hoje isso está se tornando uma realidade”.

    Ao mesmo tempo, lembramos que a morte da dupla teria sido arquitetada pelo mesmo grupo que atuava no Porto de Santos, ao lado de Fuminho que, por sua vez, já mantinha um importante canal pessoal de exportação para a Europa. É de se perguntar, afinal, quem seria mais diretamente prejudicado pela eventual consolidação do canal de exportação próprio do PCC.

    O funcionamento do PCC como uma ampla rede criminal azeitada por lealdades, disciplina e compromisso com a “ética do crime” se apoia numa articulação coerente e frágil entre o econômico e o ideológico para legitimar sua atuação nas “quebradas” e nas “prisões”. Essa é o ponto central da força do PCC no mercado de drogas. O caso envolvendo Fuminho, Gegê, Paka e Marcola ainda lança sombras sobre a base fundamental que estrutura e legitima a dinâmica de sua atuação.

    A situação parece ter sido momentaneamente contornada, mas não sem deixar cicatrizes e trincar o vidro que sustentava a confiança na cúpula do PCC. Resta saber se o retorno de Fuminho às prisões brasileiras poderá espatifar de vez um vidro cuja blindagem já vinha sendo minada e, neste sentido, impulsionar de uma vez por todas, uma importante transformação no núcleo de poder que há décadas concentra os processos decisórios do PCC.

    Camila Nunes Dias é uma das principais pesquisadoras do PCC no Brasil, professora da UFABC (Universidade Federal do ABC) e autora de “Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil” (Todavia), com Bruno Paes Manso, “PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência (Saraiva)”.

    O texto foi publicado originalmente no Fonte Segura, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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