Artigo | Crimes contra o patrimônio alimentam medo e populismo na segurança pública

Enfrentar furtos e roubos signfica dar prioridade às pessoas pobres, à população negra e às mulheres

Os recentes dados da PNAD Contínua: Vitimização e Sensação de Segurança de 2021, parceria do IBGE com o Ministério da Justiça, são inspiradores para um debate ainda adormecido no país e um dos desafios do novo governo: o papel dos crimes contra o patrimônio na segurança pública, as respostas a esse tipo de crime e o seu impacto sobre a percepção de (in)segurança da população. O Brasil precisa revisar urgentemente o modo como enfrenta esse problema.

Os chamados crimes patrimoniais são aqueles que atentam contra o patrimônio de uma pessoa ou organização. É objeto do crime, nesse caso, qualquer coisa que tenha valor: um carro, uma moto, uma bicicleta, um relógio ou jóia, um dinheiro tirado do caixa eletrônico, e cada vez mais recorrentemente, o celular, pelo seu alto valor, facilidade de comércio e pela possibilidade de multiplicar ganhos com fraudes bancárias.

Divulgada no início de dezembro, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua investigou, no quarto trimestre de 2021, a vitimização e a sensação de segurança, ouvindo pessoas de 15 anos ou mais. Analisando os dados de vitimização por furto e roubo em conjunto com os de sensação de segurança, é possível identificar o tamanho da conexão entre o aumento do medo das pessoas, o maior ou menor grau de segurança percebido e a condição de vítimas.

Cerca de 1,8 milhão de brasileiros foram vítimas de roubo, em 2021, o que equivale a 1,1% da população. Outra informação inicial que chama muito a atenção é o perfil racial das vítimas de roubos: 63,2% das pessoas que se declararam vítimas desse crime eram pretas ou pardas, enquanto 36,1% eram pessoas brancas. Esse indicador é muito relevante pois mostra que esse tipo de crime afeta uma parcela ampla da população. Se há alguns anos prevalecia a ideia de que o roubo afetava apenas a classe média, pessoas brancas moradoras de bairros nobres, agora temos a prova que se trata de um crime que atinge a população negra. E esse dado, aliado ao fato de que 38,6% das vítimas tinham até o ensino médio incompleto, ajuda a mostrar que esse crime se democratizou.

Outro número alarmante é que 71,6% dos que não sofreram roubos se sentiam seguros ao andarem sozinhos nas proximidades do domicílio, índice que cai a impressionantes 37,6% entre as vítimas. Em outras palavras, a vitimização reduz quase pela metade a sensação de segurança. No caso das vítimas de furto, os índices seguem praticamente o mesmo padrão: 71,4% das não vítimas de furto se sentiam seguras, ao passo que o das pessoas que foram vítimas de furto fora do domicílio foi de 49,3%.

Ainda segundo a pesquisa, as pessoas se veem sob maior risco nos crimes relacionados ao patrimônio, se comparados com os outros tipos: 40% afirmaram ter muita chance ou chance média de serem roubadas na rua; 38,1% no transporte coletivo; 37,2% de ter carro, moto ou bicicleta roubados; e 29,5% de ter o domicílio furtado ou roubado. Mais abaixo aparecem os riscos de agressão física e de assassinato, por exemplo, com cerca de 18% e 12%, respectivamente.

Com o medo de serem vítimas, os entrevistados mostram mudanças de hábitos, como evitar chegar ou sair tarde de casa, usar caixas eletrônicos à noite, usar celular em locais públicos, lugares com poucas pessoas ou usar relógio ou outro objeto de valor. Em todas as atividades evitadas por motivo de segurança, as proporções das mulheres que as evitavam são sempre maiores que as dos homens, sobretudo para chegar ou sair tarde de casa, ir a caixas eletrônicos à noite e usar celular em público.

Se pensarmos como parte da agenda de segurança pública para o futuro imediato, há dois aspectos essenciais. Primeiro: a descrição desses hábitos, os locais de risco apontados na pesquisa e outros indicadores como o perfil das vítimas (e do medo) demonstram que, ao contrário do que sugere o senso comum, crimes contra o patrimônio afetam especialmente as pessoas mais pobres. E, previsivelmente, mais ainda entre as mulheres. Enfrentar esse problema significa, portanto, dar prioridade às pessoas pobres, à população negra e às mulheres.

O segundo aspecto é que a falta de respostas aos crimes patrimoniais alimenta o medo e a sensação de insegurança, como os números deixam evidentes. Essa tendência detectada pela PNAD Contínua é reforçada por muitas outras pesquisas. Em abril de 2022, por exemplo, o Datafolha mensurou como a população residente nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro se sente em relação à segurança pública, e 90% dos entrevistados relataram que têm medo de serem assaltados na rua.

O medo, por outro lado, escancara a porta para os discursos populistas que se ancoram numa ideia de lei e ordem que muitas vezes atropela a racionalidade, o planejamento e as respostas ao crime baseadas em evidência e que realmente dão resultados. Não foi à toa que o país enfrentou, nos últimos quatro anos, uma política desmedida de incentivos à facilitação de armas nas mãos de civis e estímulo ao uso da força. Os dois casos convertem-se em mecanismos artificiais para uma falsa sensação de segurança.

Essa é uma agenda da qual o próximo governo não pode escapar e que necessariamente envolve o governo federal e as gestões estaduais e municipais — afinal, serviços públicos como iluminação pública, obras urbanísticas, parques, praças ou quadras de esporte, transporte coletivo, creches ou escolas públicas, e ainda postos de saúde são listados pela população ouvida na PNAD Contínua como fatores quase tão relevantes quanto um policiamento adequado. Não há mágica nas soluções, e a pesquisa do IBGE é um excelente subsídio para os gestores desenharem melhores políticas para lidar com os crimes contra o patrimônio e suas vítimas.

Carolina Ricardo é advogada e socióloga, mestre em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e diretora-executiva do Instituto Sou da Paz

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