Artigo | Erros de PMs no Ceará nascem da criminalização da greve

    Situação não teria se tornado tão violenta se policiais militares pudessem se sindicalizar e organizar uma greve dentro da legalidade

    Ilustração Junião / Ponte Jornalismo

    O Movimento Policiais Antifascismo vem a público se manifestar sobre a grave situação que ocorre no estado do Ceará. Importante ressaltar que todo o processo se inicia com a tentativa de negociação de reajuste salarial dos servidores da área de segurança pública, que através de suas entidades representativas se reuniram com o governo estadual e aceitaram uma proposta de reajuste. Ocorre que uma parcela dos policiais militares não aceitou a proposta acordada e iniciou um movimento grevista.

    A greve foi decretada por um grupo de policiais militares, na tentativa de reviver o movimento grevista de 2011, o qual teve adesão de uma quantidade muito superior de policiais do que o atual movimento. Por conta de uma menor adesão dos policiais, os grevistas passaram a radicalização das ações, não havendo nenhum elemento que possa apontar a participação de grupos paramilitares, conhecidos como milícias, nas ações dos grevistas.

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    Evidentemente que os excessos e abusos que possam ter sido cometidos pelos grevistas deverão ser observados, mas a vinculação da greve ao “poder das milícias” é uma ficção que tem por objetivo tão somente criminalizar o movimento. Com a ação catastrófica do poder político local, na cidade de Sobral, que resultou nos disparos contra o senador licenciado Cid Gomes (PDT), o governo do Ceará solicita o apoio da intervenção federal, através da Força Nacional e do Exército, se pondo de joelhos ao governo federal e abrindo um campo favorável a política intervencionista e violenta do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

    A luta dos policiais é legitima e é uma resposta aos descasos que o governo do Ceará vem tendo contra os servidores públicos daquele estado. Inclusive fazendo coro com a aplicação de uma reforma da previdência que ataca a todo funcionalismo público cearense. O pedido de aumento salarial na realidade é somente uma solicitação de adequação após mais de cinco anos sem reajustes.

    O que demonstra que muito do que assistimos agora poderia ter sido evitado se o governador, Camilo Santana (PT), estivesse ao lado do servidor público do estado. Isso implica dizer que o governo do Ceará é parte integrante do problema. É preciso lembrar que a tentativa de negociação não teve a participação adequada das bases da polícia militar.

    E isso acontece porque para os militarizados a associação sindical é proibida por lei. Como não podem se sindicalizar, os policiais não têm ferramentas para sua representação adequadas. Surgem aí as associações, com interesses incertos, na tentativa de representar os trabalhadores policiais. Estas, no entanto, não têm poderes sindicais e sofrem sob o julgo das estruturas militarizadas que contaminam/oprimem essas entidades. Algumas, por exemplo, não permitem aos soldados que opinem ou votem, deixando as decisões nas mãos exclusivas dos oficiais.

    Esses, por sua vez, possuem melhores ferramentas de negociação em razão dos seus postos de comando, o que não acontece com os soldados. E, para piorar, as representações nesse caso foram tuteladas por pessoas com interesses ainda obscuros. A grande maioria dos militares, os praças, não têm ferramentas para reclamar seus direitos.

    Seus direitos reclamados só se fazem vistos quando suas manifestações atingem níveis extremos, tais como greves, fechamento de quartéis e, nesses momentos, uma minoria aproveita a situação para cometer abusos. Abusos que são condenáveis e que são repetidamente denunciados por este movimento. Tais abusos são as sementes do fascismo que lutamos para combater e que estruturam o terror contra o povo brasileiro.

    Terror que se reflete em execuções e torturas, dentre outros crimes. Note-se que as polícias militares e polícias civis são proibidas de fazerem greve. O que pode parecer uma ótima ideia tem consequências graves. A greve regulamentada por lei permite o domínio de suas proporções pelo Estado. A greve legal tem controle e limite de porcentagem de participantes, estabelece funcionamento mínimo etc.

    É uma ferramenta política legítima e que permite uma base de negociação forte e coerente. Como a greve é ilegal, a luta legítima dos policiais por seus direitos, pela possibilidade de garantir uma vida digna a si e aos seus familiares, é criminalizada. Como se os policiais não fossem cidadãos, não fossem trabalhadores. Mas eles são.

    E, como são, acabam por servirem de cobaia para mais autoritarismo e restrições de direitos a outras classes trabalhadoras: professores, servidores, correios, industriais, petroleiros, estudantes etc. Se é possível reintegrar a posse de um quartel sem mandado judicial, utilizando arbitrariamente a força, então por que isso não seria aceitável com outros manifestantes? Se é crime fazer greve na polícia, então qual é a dificuldade de se estender tal medida a todos, aumentando o estado policial e a restrição de direitos? Recordemos que não faz muito tempo que a Polícia Civil foi tolhida do direito à greve.

    Há, sim, erros cometidos pelo movimento grevista e estes devem ser apurados. Os erros de alguns, entretanto, não são os erros de todos os policiais que ali militavam e militam por direitos. Mas frisamos que esses erros nascem de uma estrutura que criminaliza o direito básico de manifestação que ataca a liberdade do cidadão policial. Vêm de um cenário em que os governos ignoram às pautas de todos os policiais, inclusive os militares. A violência sofrida por esses policiais deve ser sempre lembrada e o governo deve assumir sua responsabilidade na situação. Portanto, a negociação é fundamental.

    Fica nítido que a situação poderia ter sido atenuada se o governo negociasse em tempo oportuno, se os policiais pudessem se sindicalizar e pudessem organizar uma greve dentro da legalidade. Condenamos a ideia de trazer a força nacional apenas para oprimir os cidadãos do Ceará, sejam eles policiais ou não. Trazer outras forças para agir como se as polícias do estado fossem incapazes de negociar, como se recusassem a debater e definir os rumos para o seu estado. A criação de um estado policial que restringe o direito dos trabalhadores e utiliza forças policiais para controlar as manifestações da população é condenável. O movimento dos policiais antifascismo sempre condenou tal prática, sendo as vítimas policiais ou não.

    Afirmamos que as atitudes de violência devem ser responsabilizadas, após o devido processo legal e sem o uso de ferramentas restritivas de direitos básicos. Dentre eles a errônea ideia de usar os regulamentos disciplinares para colocar todos os policiais em um mesmo patamar, pelo fato de entrarem em greve depois de anos de invisibilidade por parte do governo do Estado. Condenamos a ação truculenta e irresponsável do senador Cid Gomes de avançar por sobre a corrente de pessoas que ali resistiam. Este se utilizando de uma retroescavadeira avançou sobre os manifestantes e tal atitude poderia ter resultados gravíssimos, talvez mortes, já que no local estavam cidadãos adultos e crianças.

    O momento exige calma, reflexão e o controle das emoções. Atitudes impensadas podem piorar, e muito, a situação que já é delicada. Assim como lamentamos profundamente o desfecho onde o mesmo senador foi cruelmente alvejado. Temos a certeza de é condenável a ameaça à comerciantes, a criação de clima de terror. Assim como, também, é condenável avançar sobre grevistas com um trator. De ambos os lados estão seres humanos. E não acreditamos que tais medidas sejam adequadas para resolver o presente conflito.

    Há ainda muitas questões que precisam ser esclarecidas, mas o foco do debate deve ser as formas de evitar a repetição de acontecimentos similares. Evitar que policiais cheguem ao ponto de desespero que se percebe agora no estado do Ceará. Precisamos ouvir os policiais militares para evitar situações como esta, para evitar que se manifestem comportamentos fascistas em nossa sociedade como um todo. Comportamentos que propõem o mesmo de sempre: a ameaça, o medo, a violência.

    O movimento levanta novamente a bandeira de que a desmilitarização é condição básica de garantia dos direitos humanos dos policiais. E medida preventiva quanto ao que vem acontecendo no estado do Ceará. 

    Lembramos ainda que o cidadão que ocupa a cadeira da presidência da República foi aposentado por suspeitas de planejamento de um atentado terrorista. Claramente percebemos que a estratégia do caos pode ser utilizada para fins políticos.

    Enquanto os policiais saem prejudicados e criminalizados, é possível que o governo federal veja isso com bons olhos, uma forma de expandir o autoritarismo. Não podemos concordar com a escalada da violência e da restrição de direitos como solução para o que ocorre no Ceará. Nos solidarizamos com os policiais militares que reclamam seus direitos de forma legítima. Forma que lhes é tirada por um arbítrio que foi reforçado na ditadura militar. Lamentamos profundamente os ferimentos do senador Cid Gomes. Nos condoemos com a população cearense que merece segurança e respeito aos seus direitos e que deve ser o foco de todas as ações que serão tomadas nos próximos dias.

    * Coordenador do Movimento Nacional dos Policiais Antifascismo em São Paulo.

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