Artigo: Estamos prontos para tomar o que é nosso

    Em momento de retrocessos para os trabalhadores, aprovação das cotas raciais na USP e UNICAMP mostra a força dos movimentos negros

    No último mês, nas duas universidades classificadas como as melhores da América Latina1, USP (Universidade de São Paulo) e UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), foram aprovadas as cotas raciais. A aprovação das ações afirmativas no formato de cotas na USP e UNICAMP aconteceu com 17 anos de atraso se comparada à primeira universidade brasileira a contar com algum tipo de cota em sua seleção2, 13 anos após a primeira universidade adotar cotas raciais3 e 5 anos após a aprovação da Lei nº 12.711/2012, a chamada Lei de Cotas4. É necessário destacar que a aprovação das cotas em ambas universidades estaduais aconteceu pela pressão dos movimentos negros organizados, como podemos ver neste texto e neste texto .

    As cotas têm sido aplicadas em diversos países do mundo como forma de corrigir as desigualdades no acesso a políticas públicas entre grupos sociais, considerando que alguns grupos sociais – especialmente brancos – foram favorecidos historicamente em detrimento de outros – como negros, indígenas e deficientes físicos. Considerando esses objetivos, precisamos refletir sobre os motivos que levaram as universidades que são responsáveis pela maioria de artigos científicos produzidos no Brasil5, a ir na contramão das politicas sociais que foram implementadas nas universidades brasileiras nos últimos 17 anos sendo consideradas polos de pesquisa, ciência e tecnologia no Brasil. A resposta a esta questão remete às origens da instituição escolar, ou seja, é um processo que vem sendo construído historicamente.

    A educação escolarizada surge na Europa no contexto de avanço da industrialização, que solicita uma mão de obra cada vez mais qualificada, gerando a necessidade de um sistema educacional que atenda os interesses sociais período. O propósito é uma qualificação da mão de obra para o trabalho industrializado que agora era realizado em grande escala, ao contrário do período anterior, baseado nas manufaturas. A formação de mão de obra é delineada não apenas a partir da necessidade de um progresso material, mas também intelectual e moral dos homens. A escolarização se torna cada vez mais necessária com a complexificação dos conhecimentos e a divisão social do trabalho. Ou seja, a escola nasce a partir de um necessário projeto de educação escolarizada para os trabalhadores. Na Europa, este processo acontece a partir do século XVII, já no Brasil ele só acontece entre os séculos XIX e XX.

    O projeto de escolarização no Brasil acontece em um contexto totalmente diferente do europeu. A economia no país era baseada na agricultura e a força de trabalho era quase que exclusivamente escrava. Isto quer dizer que a escola se institui no Brasil não como um projeto de formação de mão de obra, mas sim como um privilégio que diferenciava escravizados, e seus descendentes, do restante da população. O escravo, como um não cidadão, não tinha acesso à educação escolarizada. Ao contrário, aqueles que formavam a mão de obra no Brasil, eram proibidos de acessarem a educação escolarizada. A Reforma Couto Ferraz6, em 1854, proibia explicitamente a admissão de escravos nas escolas públicas. Também eram proibidos de estudar os que tivessem moléstias contagiosas e os que não fossem vacinados. Escravos libertos poderiam frequentar, entretanto a vinculação de negros a doenças e moléstias afastava os negros e negras o ambiente escolar. É importante lembrar que no século XIX os escravos compunham 15% da população no Brasil e que, portanto, não poderiam acessar a educação escolarizada. Já nas primeiras primeiras décadas do século XX a escolarização das camadas populares torna-se objetivo do Estado brasileiro, entretanto só foram integrados aqueles pertencentes aos setores ligados ao trabalho urbano. Pobres, os miseráveis e os negros permanecem fora dos objetivos da instrução pública promovida pelo Estado. Neste sentido, podemos dizer que a exclusão de negros, indígenas e pobres faz parte do projeto de educação escolarizada que surge na Europa no século XVII e que se consolida no Brasil no século XIX e inicio do século XX. Ou seja, a atual exclusão dos negros se configurou como prova da eficiência do modelo de escolarização da modernidade, em especial no Brasil.

    A educação escolarizada no Brasil foi sendo instituída como lugar de privilégio. Políticas públicas garantiram que a educação escolarizada, desde a educação infantil até a formação universitária, fossem garantidas como patrimônio econômico, político e cultural de determinado grupo social. A partir desta análise, conseguimos compreender os motivos pelos quais 85% dos alunos aprovados nos 5 cursos mais concorridos da USP são brancos7. Na UNICAMP, o número é semelhante. Na maioria dos cursos de graduação nestas universidades também não encontramos nenhum indígena! Podemos então afirmar que a composição étnica das duas principais universidades do país é consequência direta das políticas racistas e higienistas promovidas pelo Estado brasileiro.

    Neste sentido, a vitória da aprovação das cotas na USP e na UNICAMP deve ser comemorada não apenas como a ampliação da presença negra na universidade, mas como um forte golpe nas políticas racistas que estruturam as relações sociais e que se fortaleceram no estado de São Paulo nas sucessivas gestões do PSDB. Esta vitória também simboliza o fortalecimento dos movimentos sociais e, especialmente, dos movimentos negros. Novamente, negros e negras mostram que estão na vanguarda do movimento de transformação social. Em um momento de retrocessos para os trabalhadores no Brasil8, os movimentos negros mostraram que têm muita força para avançar nas conquistas.

    Por fim, a aprovação de uma política afirmativa com recorte racial é o reconhecimento da dívida histórica que o Estado brasileiro tem com a população negra. Essa dívida não será paga facilmente. Ela foi contraída ao sequestrar o povo africano, escravizá-lo, espoliar suas memórias e heranças, submetê-lo à miséria e indigência, matá-lo durante séculos. Assim, a política de cotas na graduação destas universidades é uma vitória que abre portas para outras lutas tanto na universidade, como fora dela. Na universidade, devemos lutar incansavelmente para a implementação das políticas de permanência e de cotas para contratação de professores e funcionários negros. Fora da universidade, as tarefas são ainda maiores, como a diminuição do índice de mortalidade da população negra, a melhoria das condições de moradia, de saúde e de trabalho. São tarefas duras por estarem ligadas diretamente ao combate ao racismo, mas cada vitória de negros e negras neste país prova que a ancestralidade nos trouxe até aqui com muita luta e que estamos prontos para avançar cada vez mais.

    (*) Carolina Pinho é doutora em educação pela Unicamp

    Notas da autora

    1. Dados disponíveis em https://www.timeshighereducation.com/world-university-rankings/latin-america-university-rankings-2016-results-announced
    2. Em 2000, a UERJ reservou uma cota de 50% em cursos de graduação, por meio do processo seletivo, para estudantes de escolas públicas.
    3. Universidade de Brasília (UnB) se propôs a estabelecer as ações afirmativas para negros no vestibular de 2004
    4. Lei Federal que reserva 50% de vagas das Universidades e Institutos Federais para estudantes de oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos.
    5. Veja mais informações em http://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/usp-e-unicamp-lideram-ranking-de-producao-cientifica-de-universidades-iberoamericanas/
    6. É como ficou conhecido o Decreto nº. 1331A, de 17 de fevereiro de 1854.
    7. FUVEST (2015)
    8. Desde 2016 o Brasil é presidido por Michel Temer que chegou à presidência da república através de um golpe institucional no governo eleito legitimamente em 2014. O governo ilegítimo tem encaminhado políticas opostas ao programa que venceu as eleições em 2014, como a Reforma da Previdência e Trabalhista.

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