Artigo | Livro revela estratégias de sobrevivência e sociabilidade nas prisões brasileiras

“As prisões funcionam como caixas de ressonância de nossa estrutura social. As características econômicas, sociais, raciais e de gênero dos presos revelam sintonia entre o que se passa fora e o que é mantido nos muros”

Nos últimos anos, atingidos pelas ações conservadoras e restritivas dos direitos humanos de um governo que no plano federal promoveu ações insidiosas, racistas e preconceituosas contra os mais pobres da população brasileira, os segmentos tradicionalmente visados pelos entes públicos responsáveis pela condução de ações/ou políticas públicas no campo da segurança, não apenas pelas eventuais ações criminais cometidas por alguns indivíduos de origem pobre, mas porque, historicamente, no Brasil, as populações pobres, periféricas e negras são objetos constante de desconfiança e controle dos braços repressores do estado brasileiro.

O que dizer do mandado coletivo de busca e apreensão? A que público se destina, aos ricos residentes em condomínios de luxo ou aos pobres moradores de morros e favelas?

Não bastasse o quadro de narrativas e práticas opressivas que encurralam as comunidades pobres brasileiras sob óticas estigmatizantes e reducionistas, as ações policiais mais letais, notadamente nos grandes centros urbanos do país, entre elas as chacinas, largamente praticadas pelas polícias contra moradores de localidades pobres, exprimem olhares e práticas repressivas contra os que historicamente são tratados como marginalizados.

Além das ações estatais que produzem cenários absurdos, há intervenções pontuais e que muitas vezes não merecem nem atenção nem destaque midiático, mas que geram o que muitos estudiosos têm chamado de genocídio da população negra brasileira, pela decisão do Estado de se fazer ausente nas localidades pobres, muitas das quais desprovidas de postos de saúde e de postos de policiamento, entre outros. Assim, essas populações ficam entregues à própria sorte. E, por vezes, conflitos cotidianos e banais, que poderiam ser facilmente resolvidos com intermediação, na ausência desta, acabam por aumentar o quadro de letalidade.

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Outrossim, os baixos índices de resolução dos homicídios brasileiros, que em sua maioria atingem indivíduos pobres, atestam o baixo apreço por mortos cuja cor da pele é negra e a moradia se situa nas periferias de nossas cidades.

Tal quadro, aqui suscintamente apresentado, é uma das maneiras que nossas elites encontraram para controlar as populações pobres e socialmente marginalizadas das benesses do sistema capitalista. A essas formas, junta-se outra, igualmente perversa e repressiva: a prisão.

As prisões funcionam como caixas de ressonância de nossa estrutura social. As características econômicas, sociais, raciais e de gênero dos presos revelam sintonia entre o que se passa fora e o que é mantido nos muros das prisões brasileiras. Ao mesmo tempo, como instituição a prisão não apenas pune e mantém controle sobre a vida dos condenados, mas também produz efeitos sobre a vida dos que estão fora, como uma espécie de ameaça latente, sempre possível de ser efetivada, caso se ouse seguir caminhos criminosos, especialmente se o pertencimento social localizar o sujeito na parte de baixo da pirâmide social. Para esses, ao contrário do que ocorre com os que estão situados na parte superior da pirâmide, não há moratória social.

Os efeitos da prisão se estendem muito além do tempo que um indivíduo cumpre como condenado. Claro que tais efeitos são relativizados se o indivíduo é privilegiado, e dependendo do tipo de crime cometido, ele será visto como um alternativo, como alguém ousado e resistente, capaz de resistir às durezas da prisão e podendo recomeçar sua vida de outra maneira. Foi o que ocorreu, por exemplo, com Edinho, filho do ex-jogador Pelé, e ele próprio ex-jogador, condenado por associação com o tráfico de drogas e por lavagem de dinheiro, que mereceu uma reportagem num dos principais portais da internet do país. Mas, se a marca social de origem for de pobreza e de abandono social, muito provavelmente o indivíduo verá cair sobre si as marcas do controle e do estigma social que apontam o ex-preso como um indesejado, um perigoso permanente.

Os estudos presentes no livro Tramas e resistências, lançado pela Editora Telha, parceira da Ponte, produzem análises que consideram as marcas pretéritas dos indivíduos que lotam nossas prisões, ao mesmo tempo que refletem sobre as consequências da prisão nas vidas deles e de seus familiares, como pessoas marcadas para viver carregando bolas de ferro invisíveis atadas aos seus pés. E, sem renunciar à dimensão processual que marca a vidas dos indivíduos e das prisões, os capítulos que compõem este livro trazem abordagens que se dedicam a estudar as tramas, as complexidades, os arranjos, as artimanhas, as resistências, as formas de empoderamento, a formação de territórios no cotidiano prisional, o comércio de drogas e a criação de estatuto da prisão, com suas “leis” para reger o dia a dia.

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O livro é composto por nove capítulos, que foram escritos por 11 autores(as): “Aprendizado, resistências e empoderamento no chão da prisão”, de Vanderlan Silva, um dos organizadores da coletânea; “Comércio das drogas e a proibição do crack na Penitenciária Regional de Campina Grande Raimundo Asfora – Serrotão”, de Valdeci Feliciano Gomes, igualmente organizador da coletânea; “O isolamento social em instituições de privação da liberdade: Reflexões sobre os impactos da pandemia de Covid-19 no CEA”, de Alessa Cristina P. de Souza; “A Pandemia da Covid-19 nas prisões brasileiras: entre os desafios e a negação de direitos”, de Hilderline Câmara de Oliveira; “As prisões e os arquivos prisionais: A vida e a morte no Presídio Regional do Serrotão em Campina Grande (1990-2012)”, de Helmano de Andrade Ramos;  “As tramas da geografia do cárcere: o complexo Penitenciário do Serrotão, que território é esse?”, de Amaro Freire Ameztegui Rosales e Eugênia Maria Dantas;  “Práticas de resistências à mecânica opressiva no cotidiano prisional do Serrotão”, de Charles Targino; “O outro lado do espelho: desconstituindo a ideia do caos prisional feminino em Campina Grande”, de Auristela Cristina de Moura Camêlo Costa; e “A lei paralela no presídio do Serrotão: do “inquérito à sentença”, de Max Sandro Francelino de Souza e Valdeci Feliciano Gomes.

O livro é um convite a todos e a todas que se interessam pelos dramas de nossa sociedade, construídos e sentidos nas prisões, embora não restritos a elas, pois o que ali ocorre tem ressonância sobre amigos, familiares e sobre o conjunto da sociedade, com impactos e consequências distintas.

Vanderlan Silva é antropólogo. Professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Docente do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da mesma universidade. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Paris (Paris V – Sorbonne).

Valdeci Feliciano Gomes possui graduação em História pela Universidade Federal de Campina Grande (2001), graduação em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (2010), especialização em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estadual da Paraíba, mestrado em sociologia pela Universidade Federal de Campina Grande (2008), mestrado em Direito pela UNESA /CESREI. Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Atualmente é professor de Direito.

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