Artigo | O genocídio negro, um ângulo do sistema penal brasileiro

    Estar em conformidade com o sistema penal carniceiro e genocida do Brasil é desconhecer a história do nosso país, analisa Adriana Chaves na coluna Abolição

    Desde o início, por ouro e prata

    Olha quem morre, então

    Veja você quem mata

    Negro Drama, Racionais MC’s

    Falar sobre o genocídio negro no Brasil é comprendê-lo como um projeto de dimensão histórica que começa com a colonização portuguesa e a escravidão transatlântica.

    É também compreender as diversas vulnerabilidades que conformam a vida da população negra no Brasil ao decorrer da história. Neste bojo, está a proibição do negro africano de falar sua propria língua e exercer sua cultura, a perseguição de religiões de matriz africana, a baixa escolaridade e pobreza que vitimizam essa população, bem como a negação da construção de uma identidade negra, até o extremo de todo o atrofiamento humano possível, ou seja, a série de mortes que acontece cotidianamente, que conforme Ana Flauzina (2006), são em grande parte produzidas pelo sistema penal. Segundo a professora, os sistemas penais latinos americanos têm sido compreendidos operando à margem da legalidade, pois longe de qualquer impedimento ou censura, têm a morte como seu principal produto. Esse fato revela a fragilidade do discurso legitimador de tais sistemas e nos permite qualificá-lo como prática genocida, podendo ser visualizada nas inúmeras mortes que sucedem por razões diversas em diferentes âmbitos da atuação e influência dos sistemas penais.

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    No Brasil, a ideia de uma “escravidão humanizada” tenta apagar as mazelas da escravidão da memória da população negra africana, bem como apontar um presente “sem causas, só de consequências”. Abdias do Nascimento, na obra O Genocídio do Negro Brasileiro, já denunciava o genocídio dos povos indígenas, o sequestro, o assassinato e a tortura de milhões de africanos como projetos inaugurativos do empreendimento colonial no Brasil, que nesta altura se resguardava na miscigenação como prova substancial de uma relação harmoniosa entre as raças.

    Histórias, registros e escritos
    Não é conto nem fábula, lenda ou mito

    Essas são questões que deveriam ser elucidadas em nossa história se não fossem os assombros do mito da democracia racial, que mascara o projeto de genocídio negro no Brasil. Trata-se de uma ideologia forjada pela elite dominante na metade do século XX, que, conceituada pela teoria do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, consagra a empatia inata do senhor português com o escravizado africano, afirmando a existência de uma harmonia racial no país. Fortemente influenciado pelo confronto racial do apartheid nos EUA, foi a solução brasileira para negar a discriminação racial no Brasil e impedir que o racismo fosse discutido no âmbito público. Na metade do século XX, a democracia racial está impregnada no discurso político do país, a exemplo do pronunciamento do ex-ministro do exterior Afonso Arinos, que, por um lado pressionado a dar uma resposta sobre desigualdade racial no país, e por outro com interesses econômicos e diplomáticos que visavam colocar o país como modelo democrático a ser seguido, declara o seguinte:

    “O Brasil se encontra em situação especial para servir de elo ou traço de união entre o mundo afro asiático e as potências ocidentais. Povo democrático e cristão, cuja cultura latina se enriqueceu com a presença de influências autóctones, africanas e asiáticas, somos eticamente mestiços e culturalmente mesclados […] Além disso, os processos de miscigenação facilitaram a nossa democracia racial”. ( A.A. de M. FRANCO apud NASCIMENTO, 2019).

    Percebemos que o ex-ministro, além de confirmar a existência de uma democracia racial no Brasil graças aos processos de miscigenação, afirma a existência de “uma cultura latina” que teria sido originada antes da cultura brasileira, na qual  africanos e indígenas teriam “enriquecido”. Essa afirmação de ar integracionista, na verdade, retira a existência dos povos e culturas indígenas antes da chegada dos portugueses, além de tratar a cultura negra africana como mera “colaboradora” de uma cultura euro latina predominante. Como podemos ver, a necessidade de controle e genocídio da classe dominante sobre esses segmentos chega a afirmações absurdas e erros cronológicos.

    Um bastardo, mais um filho pardo sem pai

    Segundo Flauzina, a partir de 1850 a imigração europeia será fomentada no Brasil: entre 1871 e 1920 o país vai receber cerca de 3.400.000 europeus, equivalente a quantidade de africanos que foram trazidos para o país, com a diferença que os brancos recém chegados tiveram moradia e empregos garantidos pelo Império. A política imigratória se justificou pela necessidade de mão de obra livre, argumento vexatório, já que havia um grande contingente de escravos recém libertos no país. Assim, não se tratava de suprir a falta de mão de obra, mas sim negar à população negra recém liberta o trabalho livre e qualquer outro modo de subsistência no país. Enquanto o número de trabalhadores livres crescia no Brasil, o número de desempregados ou “vadios”, na gíria policial, crescia, constituído massivamente pela população negra recém liberta, porém inscrita na miséria. A inferioridade negra para a elite dominante é bem ilustrada na expressão do médico eugenista Nina Rodrigues: “A raça negra no Brasil permanecerá para sempre como a base de nossa inferioridade como povo” (SKIDMORE, p. 219 apud NASCIMENTO, 2019).

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    Dessa forma a imigração europeia fazia parte do plano de branqueamento que entrava em curso no Brasil, em que a miscigenação, que antes era vista pela elite colonial como uma grande aberração, sendo consequência das práticas criminosas de estupro de mulheres negras e indígenas, passa a ser uma solução estimulada. Ela passa a ser entendida como uma possibilidade para a formação de uma raça superior, pois acreditava-se que as características brancas europeias seriam dominantes. Nesse sentido, será no aproximar de uma abolição, que inevitavelmente terá de ser realizada, que a elite dominante tomará a miscigenação e a imigração europeia em consonância com o plano de branqueamento, somando-se às inúmeras ferramentas de controle e extermínio para solucionar o problema da “mancha negra no Brasil”. Isto é, desaparecer com o grande contingente de população negra africana da formação demográfica brasileira.

    O branqueamento viria a salvar o Brasil da mácula da raça negra. Os europeus, considerados sensivelmente superiores, migraram majoritariamente para o sudeste e sul do país e tomaram o lugar de mão de obra livre. Esse empreendimento caminha até o século XX e aparece inclusive no Artigo 2º do Decreto-lei 7.967, assinado em 1945 pelo ditador Getúlio Vargas, que regulamentou a entrada de imigrantes europeus no país: “Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, a necessidade de preservar e desenvolver, a composição étnica da população, as características mais convenientes de sua ascendência europeia (…)”.

    “Sob a lógica desse processo, os negros do Brasil só têm uma opção: desaparecer. Seja aniquilados pela força compulsória da miscigenação e da assimilação, ou através da ação direta da morte pura e simples”
    Abdias Nascimento

    Sente o negro drama, vai, tenta ser feliz

    No entanto, não foi a miscigenação — em conformidade com o plano de branqueamento — a única política empregada para solucionar o problema da presença massiva negra africana no Brasil. Esse projeto de Estado chamado genocídio negro vai contar em todo seu percurso histórico com os braços, as veias e o sangue do sistema penal brasileiro. Essa cooperação pode ser observada desde a necessidade de controle de africanos escravizados e proteção de propriedades no sistema colonial, aos baculejos contra jovens negros e as ações de extermínio da Polícia Militar contra a população negra nas favelas nos dias de hoje, o que chamamos de “guerra às drogas”.

    Nilo Batista sugere a existência de quatro sistemas penais brasileiros periodizados em: colonial-mercantilista, imperial-escravista, republicano-positivista e contemporâneo. Contra o discurso da harmonia racial no Brasil, de acordo com Flauzina, o sistema penal colonial mercantilista pode ser caracterizado como sendo uma grande instituição de sequestro, que deslocou mais de 3 milhões de africanos forçadamente até o Brasil para serem submetidos ao trabalho compulsório, à tortura e ao controle extremo de seus saberes e praticas culturais. A tortura será um instrumento condicionador de africanos à escravidão e método eficaz de conter as resistências. Deste modo, o sistema penal colonial escravista está intimamente relacionado às práticas do ambiente privado, na relação entre Casa-Grande e Senzala, senhor e escravo, servindo à conservação de propriedades de terras e gentes, além de fundar as assimetrias raciais no país.

    Nos âmbitos da resistência escrava, um exemplo sobre como o sistema penal vai agir pode ser visto nas ações de dizimação de quilombos e insurreições, por capitães do mato, milícias e bandeirantes. Sobre o Quilombo do Campo Grande, Nascimento descreve que ele foi dizimado em 1759 pelo bandeirante Bartolomeu Bueno do Prado. Ao final da guerra, o “herói da história paulista’’ exibiu “cerca de 3.900 pares de orelhas arrancadas dos corpos ainda quentes dos africanos assassinados”. Os bandeirantes, na missão de expansão territorial, foram agentes efetivos do genocídio negro e indígena, não sendo exceções as inúmeras revoltas escravas que vão resultar em um verdadeiro mar de sangue negro.

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    Em um contexto de condições sub-humanas e de extrema repressão, agravada por uma crise financeira devido ao baixo preço do açúcar e do algodão que o país passara durante o Imperio, as insurreições e revoltas serão frequentes, bem como serão fundamentais às organizações socioculturais e políticas negras (irmandades, nações e confrarias) responsáveis por promover liberdade da escravidão a maioria da população negra africana antes de 1888. Neste sentido, a escravidão cada vez menos rentável propiciou um terreno fértil para uma explosão de revoltas escravas, a exemplo da Revolta dos Malês de 1835, em Salvador. Os insurrectos, prestes a conquistar o sonho da liberdade, serão assassinados cruelmente, com o auxílio da Fragata Baiana. Neste contexto, segundo Flauzina, o rumo do sistema penal imperial se dará através da necessidade de controle no ambiente público, dada a grande quantidade de negros libertos que ocupavam os centros urbanos, somada ao famoso “medo branco”, que vai assombrar a elite dominante de uma possível grande revolta negra.

    Um exemplo clássico, dentre as várias reformas que vão acontecer no âmbito dos códigos criminais, é a criminalização da vadiagem pelo art. 295 do Código Criminal do Império, contra negros livres, desempregados nos centros urbanos. Segundo Flauzina, esta será nada menos do que a criminalização da liberdade e da existência negra, eternizada em nosso país. E a essa forma de controle será indispensável a agência policial, que finca os pés no sistema penal com a reforma do Código de Processo Penal em 1841, responsável por transferir poderes da magistratura para a autoridade policial. Este é o início do autoritarismo policial, que, junto ao plano de branqueamento em curso, deu segurança à elite dominante para abolir a escravidão em 1888.

    Pra quem vive na guerra, a paz nunca existiu

    Conforme Flauzina, o Decreto nº 145, de 11 de junho em 1893, vai determinar “a prisão correcional de mendigos válidos, vagabundos ou vadios, capoeiras e desordeiros em colônias fundadas pela União ou pelos Estados”; “o Decreto nº 3475 de 4 de novembro de 1899”, nega “o direito à fiança aos réus vagabundos ou sem domicílio”. O pós abolição configura a marginalização institucionalizada da população negra. Por isso será o racismo que também fundamentará os âmbitos institucionais do sistema penal republicano que, fortemente embasado pela criminologia positivista, tratará de lançar os olhos sobre o indivíduo que comete o crime, com o objetivo de estudar a causa do crime e desenvolver soluções que o combatam, dessa forma a intervenção corporal através das ferramentas de violência e tortura continuaram a ser fomentadas.

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    A partir do Código Penal de 1940, Flauzina entende que a atividade do jurista estará concentrada na elaboração e na interpretação de leis penais, sendo feita uma assepsia no texto legal, retirando as leis expressamente racistas, mas preservando determinado conteúdo a serviço da democracia racial. Dessa forma o positivismo jurídico formará o sistema de criminalização primária, enquanto o sistema de criminalização secundária abarcará a criminologia positivista e elencará a ação policial como principal agência, que, orientada a exercer praticas punitivas e letais em direção a corpos negros, dará continuidade aos propósitos tão antigos de extermínio da população negra.

    Ajude a Ponte!

    Como Flauzina nos orienta, ao compreender o pacto social, bem como os destinatários desse sistema genocida, o racismo fundamentará a característica genocida dos sistemas penais brasileiros. E os destinatários, parte ainda mais acusadora desse empreendimento, serão acessados nos números que conferem a população negra como majoritária encarcerada no país, bem como nos índices de pobreza. Dessa forma, se o mito da democracia racial nos impede de afirmar um genocídio vigente no país, os aspectos históricos  da formação desses sistemas, bem como a cor negra que inunda as celas do sistema carcerário, denunciam e desmistificam as ideologias e fatos que o sustentam. Estar em conformidade com esse sistema penal carniceiro e genocida é desconhecer a história do nosso país e compactuar com o genocídio negro.

    Referências bibliográficas

    FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto
    genocida do Estado brasileiro. 2006. 145 f. Dissertação (Mestrado em Direito)-Universidade de
    Brasília, Brasília, 2006.
    NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado/Abdias Nascimento-3.ed.- São Paulo: Perspectivas, 2016.
    NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo: documentos de uma Militância Pan Africanista/ Abdias Nascimento; com prefácio de Kabenguele Munanga; e texto de Elisa Larkin Nascimento e Valdecir Nascimento.— 3.ed.rev. – – São Paulo: Editora Perspectiva; Rio de Janeiro : Ipeafro, 2019.

    Adriana Chaves é artista interdisciplinar e pesquisadora em relações étnico-raciais. Atualmente, é bacharelanda em Humanidades na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro Brasileira – UNILAB

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