Ensaio | O racismo na mídia

Ensaio inédito da historiadora Maria Beatriz Nascimento, de 1979, publicado com exclusividade pela Ponte, faz parte do livro O Negro Visto por Ele Mesmo, recém-lançado pela Ubu

Dias atrás, após passar numa estação de TV o seriado Roots [1977], eu observava uma criança preta assistindo na mesma estação ao seriado Sítio do Picapau Amarelo [1977-86]. Num intervalo do programa abordei a criança, perguntando-lhe qual o personagem de que ela mais gostava. Tinha em mente avaliar com ela a procedência de um tipo de programa como aquele, até que ponto ele era educativo. A criança preta enumerou quase todos os personagens, começando por Pedrinho, Narizinho, Emília, até o personagem João Carneiro. Com certa apreensão notei que ela não mencionara os personagens pretos Saci, Malazarte, Tio Barnabé e, para meu desapontamento, a Tia Nastácia, um dos personagens centrais. Perguntei-lhe então: você não gosta de Tia Nastácia? Ela ficou meio embaraçada e disse: “Ela tem medo de tudo, é meio boba”. Aparentemente não há nada de mais nessa observação, no entanto, quero chamar a atenção para esse ponto. Passados alguns dias estive na escola dessa criança (como é regra geral, na escola ela é minoria). Estava lendo distraidamente os cartazes didáticos fixados na parede de uma das salas de aula da 4ª classe. Por acaso deparei-me com um diálogo que fazia parte da fixação da matéria Comunicação e Expressão, ou seja, Português, a língua falada por brancos, pretos e índios no Brasil, fator de integração entre todos os povos que aqui habitam. No meio do diálogo entre Narizinho, Pedrinho e Emília tinha uma oração em negrito do autor que começava assim: “A negra, ainda tonta, olhou para o menino com expressão idiotizada e respondeu […]”. Imediatamente reportei-me à minha conversa com a criança que deve ter sido identificada, enquanto preta, com personagens de um seriado como esse ou de um livro didático, tão carregados de expressões negativas. Ela fazia de conta que esses personagens não existiam porque talvez não existam realmente na idealização que ela faz de sua própria imagem, do seu próprio grupo étnico.

No mesmo período, uma pessoa amiga me confidenciou que um seu sobrinho, menino branco, assistindo ao mesmo seriado, de repente corrigiu uma palavra dita pelo Tio Barnabé, dizendo irritado: “Por que ele só fala errado?”, e depois de alguns dias voltou-se para a tia e falou “já sei, Tio Barnabé fala errado igual a minha empregada, ele fala errado porque é preto”.

Essa criança branca teve condições, mais do que a criança preta, de relacionar a fantasia veiculada pela TV com uma realidade dela, na medida em que ela é branca. Não teve dificuldade de estabelecer um nexo entre esses dois planos, e o fez sem prejuízos emocionais, reproduzindo exatamente o conceito estereotipado no mesmo nível que lhe é transmitido pela TV. Ficou tão conformada com isso quanto a criança preta. Mas como esta, para aceitar estereótipos, teria que introjetar esse conceito negativo, ela fez de conta que esses personagens simplesmente não existiam. Ela teve mais perdas emocionais, porque esses estereótipos nem sequer passam como sendo o próprio preto. Ou seja, aqueles seres sem mobilidade no tempo e no espaço real (Saci, Tio Barnabé, Malazarte e Tia Nastácia) fazem parte de uma realidade imóvel que não corresponde à realidade dessa criança, enquanto ser preto. O “preto” veiculado pela TV não é uma realidade histórica, social e individual que corresponde à vivência de todos os componentes do grupo étnico a que pertence essa criança. São conceitos, ou melhor, pré-conceitos: tolo, dócil, servil, ignorante, medroso, fala errado.

A TV veicula uma ideologia aparentemente calcada num dado da realidade socioeconômica, que é o fato de grande parte dos pretos ainda hoje serem integrantes dos extratos sociais mais baixos da população. Entretanto, mesmo nesses segmentos sociais mais baixos, o indivíduo preto tem uma mobilidade interclasse. Nem todos os pretos estão necessariamente nas profissões do setor de serviços, nem todos são serviçais. Existem pretos operários, qualificados ou não, comerciários, funcionários públicos, profissionais liberais etc., e isso hoje como no passado. No passado tivemos pretos proprietários, políticos e também profissionais liberais, ao lado de artesãos livres e escravos. Portanto, o preto que transmitem os meios de comunicação, desde a literatura até a TV, só faz parte de um segmento de classe e, ainda assim, é referente a um passado histórico da sociedade brasileira. (Monteiro Lobato escreve sua obra nos primeiros anos deste século XX.) Por que, por exemplo, essa mídia não veicula essas figuras do passado que participaram de fato de uma realidade socioeconômica e política? Será que desconhecem? E por que desconhecem? Somente para refletirmos: por que a historiografia e a literatura esqueceram de registrar pelo menos os políticos pretos do final do Segundo Reinado? Aqueles como Patrocínio, Rebouças, o jornalista Luís Gama e mesmo os mestiços como Bocaiúva, Torres Homem, Maciel da Costa. Porque esses homens perderam sua face original. Esses homens foram decisivos na realidade histórica em transformação daquele século. No entanto, perderam seu significado histórico e foram incorporados como políticos, que episodicamente apareceram na cena histórica e hoje só podem ser conhecidos por aqueles que pesquisam em arquivos.

Eu não gostaria de me expressar através dessas figuras, porque pode-se pensar que estou caindo no mesmo diapasão da história oficial, que é escrita levando em conta os vencedores. Mas eu raciocino que se esses homens foram representantes da comunidade negra nos extratos mais altos da comunidade brasileira, isso demonstra que essa sociedade — apesar de extremamente rígida no que tocava à mobilidade social devido ao regime escravagista, onde a divisão de classes era, grosso modo, escravos na base e senhores no topo do sistema — não pode ser compreendida monoliticamente. Nenhuma sociedade, mesmo aquelas organizadas segundo critérios tribais, pode ser considerada como um bloco único, sem flexibilidade, estática. Quanto mais uma sociedade complexa como a sociedade brasileira dos oitocentos.

A escravidão é vista como onipresente no sistema socioeconômico da época, mas ao lado dessa escravidão conviveram outras formas de relações de produção, e eu nem vou falar nos quilombos. Essa divisão inflexível que nós estamos acostumados a traçar faz parte de modelos de análise empreendidos pelas ciências para uma melhor compreensão daquele mundo. Basta dizer, segundo Hasenbalg (1988), que “uma parcela majoritária da população de cor tinha uma experiência prévia na condição de livre” (p. 121) quando houve a Abolição do Estatuto Servil em 1888. Aos libertados pela Lei de 13 de maio de 1888 devem-se acrescentar aqueles libertados nos anos anteriores, e eu acrescentaria nos séculos anteriores, pois a possibilidade de os pretos se alforriarem no Brasil foi, segundo os cientistas da escravidão do Novo Mundo, uma particularidade do sistema brasileiro. Eu não estou querendo dizer que em termos de valor a escravidão no Brasil foi melhor ou pior. O que eu quero reforçar é que o recurso de serem livres conseguido pelos pretos durante o regime escravagista teria contribuído para uma maior penetração dos pretos nos espaços sociais, até chegar ao ponto de serem integrantes da liderança nacional às vésperas da passagem para a República.

Em outra medida, homens pretos livres, embora tenham permanecido em grande parte em ocupações não muito longe das do escravo, muitos entre eles puderam contribuir em outros níveis. Para exemplificar, em 1821, antes da Independência, alguns pretos e mestiços faziam parte das Juntas Governativas que aqui se haviam instaurado com a Revolução Constitucionalista portuguesa, principalmente na Bahia e em Pernambuco. Antônio Rebouças, pai de André Rebouças, foi um desses pretos.

Portanto não procede, como explicação da mecânica das relações entre pretos e brancos no Brasil, a fixação de um modelo interpretativo apoiado na ideia de que a escravidão ainda hoje mantém sua herança discriminatória como justificativa para os pretos permanecerem nos extratos mais baixos da população, por não terem se ajustado ao novo sistema econômico, devido ao despreparo técnico em que se encontraria a massa de ex-escravos após 1888. Isso é um mito que a ciência forneceu ao próprio sistema.

Quando os próprios estudos científicos fundamentam que as desigualdades interétnicas seriam o resultado de um processo inacabado de mobilidade social por parte desses segmentos pretos e mestiços, o que se pode esperar da ficção da TV, que só trabalha com mitos?

O aspecto a que quero chegar após essa análise, procurando o porquê da cristalização dos pretos nos extratos sociais mais pobres da sociedade, diz respeito à ideologia. Eu vejo a ideologia como responsável pelas distorções da realidade do passado e do presente.

Esses homens a que me referi, pretos e mestiços, líderes da comunidade brasileira nos séculos anteriores, já viviam num mundo em que a ideologia do branqueamento determinava um projeto civilizatório; ela (a ideologia) quer levar em conta que os povos de cor, negros e índios, não sejam considerados como formadores em todos os graus e todos os níveis da civilização brasileira. Essa tarefa ficou mais fácil, na medida em que muitos desses homens, assim como aqueles que não atingiram sua importância na sociedade do século passado, se miscigenaram ou, em muitos casos, empobreceram, e seus descendentes não tiveram como manter sua história. Neste último caso específico, temos o exemplo do próprio Patrocínio, retirado da arena política devido à perseguição e aos banimentos que lhe impôs o governo de Floriano Peixoto. E depois empobrecido.

Texto inédito, datilografado, elaborado para o painel Relações Inter-Raciais, promovido pela Casa de Cultura de Israel no Rio de Janeiro, com presença anunciada da historiadora Beatriz Nascimento, do antropólogo Roberto DaMatta e do sociólogo Manuel Maurício de Albuquerque (Jornal do Brasil, Caderno B, 4 jun. 1979).  Este ensaio foi publicado em 2022 pela Ubu Editora no livro O negro visto por ele mesmo, organizado por Alex Ratts. Membros do Tamo Junto, programa de apoio à Ponte, têm desconto na compra de livros da Ubu e mais editoras.

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