Artigo | ‘Pantera Negra’ transforma extermínio do povo negro em tema pop

    Um dos melhores vilões do universo Marvel no cinema, Killmonger propõe um conflito atual: buscar a paz ou a vingança contra os colonizadores?

    “Filho, você não vai derramar uma lágrima por mim?”. “Não, pai. Aqui morre-se muito todos os dias.” Esta é a conversa do vilão Erik Killmonger, ainda criança, com o espírito de seu pai assassinado. Com diálogos assim, inseridos no universo fantástico de naves espaciais, lutas eletrizantes, cenários de tirar o fôlego e várias tiradas de humor, o recém-lançado filme Pantera Negra já é um marco no cinema. O longa de Ryan Coogler (Creed e Fruitvale Station – A Última Parada ) entretém ao mesmo tempo que escancara com propriedade os temas espinhosos do encarceramento em massa e do extermínio da população negra ao redor do mundo – temas que até agora frequentam o universo dos documentários, não da ficção.

    O corpo negro, sequestrado ao longo dos séculos, escravizado e violentado, assim como os corpos indígenas e dos demais povos não brancos, sempre foram vistos apenas como ferramenta descartável disto que chamamos de sociedade moderna. São corpos que podem morrer e ser mortos. Para existir a figura do conquistador e explorador, é preciso que exista a figura do explorado e conquistado, do periférico, do que vale menos. No passado de escravidão institucionalizada, esses sujeitos de pele escura podiam ser mortos quando não interessavam mais ao processo de produção. Hoje, o encarceramento em massa e o extermínio cumprem essa função.

    É a consciência deste processo que mobiliza a raiva do jovem Erik Killmonger, o vilão da história. Killmonger é filho de um wakandano, mas nasce e cresce num bairro de periferia nos Estados Unidos. Ele chega a Wakanda para confrontar T’Challa (Chadwick Boseman), o Pantera Negra, sobre que rei ele pode ser sem voltar os olhos para fora da bolha de prosperidade que é o seu pequeno país, sem fazer nada pelas irmãs e irmãos pretos oprimidos, encarcerados e assassinados pelo sistema capitalista por todo o planeta.

    Em entrevista ao jornal O Globo, o ator Michael B. Jordan, que já trabalhou com Ryan Coogler em outros filmes, diz que se inspirou em Cidade de Deus para alimentar o personagem. “Quando a gente fez Fruitvale Station vimos o filme [Cidade de Deus] várias vezes. E pensamos em como nós, frutos do gueto, conseguíamos entender, até sem som, os personagens do Rio de Janeiro. Fiz pesquisa para meu personagem vendo o filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund, e ele se tornou um de meus favoritos na vida. Quando Ryan disse que ele queria que os meninos da Cidade de Deus se vissem na tela em Pantera Negra ele resumiu de uma forma bem crua o sumo deste nosso papo”, afirmou o intérprete de Killmonger. O objeto de estudo e a construção de personagem encontram eco na realidade: Estados Unidos e Brasil ocupam no ranking de encarceramento, respectivamente, a 1ª e a 3ª posição. Nos dois países, são os jovens negros periféricos que aparecem nas estatísticas como os principais alvos de encarceramento e assassinatos pelo Estado.

    O pioneirismo do Pantera Negra

    Criado por Stan Lee e Jack Kirby, o Pantera Negra foi o primeiro super-herói preto mainstream das histórias em quadrinhos, fazendo sua estreia no número 52 da HQ Fantastic Four, em 1966. A história de T’Challa, o príncipe que vira rei de Wakanda, pequeno país afrofuturístico e tecnológico na África, aparece no momento marcante das grandes manifestações e luta por direitos civis nos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que a Marvel estava mal das pernas e precisava de novas estratégias de venda. Foi a mesma estratégia usada para a criação dos X-Men e demais personagens que defendem ideais de liberdade e diversidade.

    Com base nesse ideário criado pela HQ, o filme com direção, staff e elenco negros consegue passar essa atmosfera contestadora, bem como questionar o momento atual e trazer à tona temas que precisam ser discutidos. Atual e político, o blockbuster evidencia a sua profundidade numa trama cheia de reviravoltas, tão bem amarrada e precisa na abordagem dos conflitos sociais contemporâneos que muitas vezes fica difícil distinguir o vilão do herói. Os grandes conflitos e as buscas que movem de T’Challa e Killmonger são similares na dor, na perda e na dúvida sobre como construir um futuro melhor para negras e negros tendo em mãos os recursos tecnológicos que Wakanda desenvolveu, vale dizer, por ter sido sempre um território livre, nunca colonizado, e governado por sua própria população. Busca-se a paz ou a vingança contra os colonizadores?

    “Wakanda é uma espécie de utopia negra na nossa luta contra o colonialismo e o controle imperial de terras negras e pessoas negras por pessoas brancas”, disse Deirdre Hollman, fundadora do Festival Anual de Quadrinhos Negros, em entrevista ao The New York Times. O evento ocorre no Centro Schomburg de Pesquisa em Cultura Negra, no Harlem, em Nova York. “Para a imaginação negra, isso significa tudo.”

    Pantera Negra é um filme com protagonismo negro de verdade que precisa muito existir. Um enredo de ficção que dialoga com a população negra, que fala sobre nosso passado, quem somos atualmente e quem queremos ser no futuro. Mistura a densidade da crítica social de documentários como 13ª Emenda, de Ava DuVernay, e Eu Não Sou Seu Negro, de Raoul Peck, sobre texto de James Baldwin, e entretenimento plástico, tiradas de humor, adrenalina no melhor estilo tiro, porrada e bomba que um bom blockbuster deve ter. Vai ver que é massa!

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